Um tema complexo

Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda.
Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte.
Que seja feliz é o que eu lhe desejo;
mas, se o não for, também não verterei uma lágrima.
Guerra Junqueiro (1850-1923)

Tenho recebido mensagens de interesse voltadas à criação musical, máxime após os dois últimos blogs sobre os Concertos para piano e orquestra de Ravel. Ao longo dos anos abordei perifericamente o tema, complexo na realidade, mas sujeito a várias interpretações.

Os questionamentos sobre a origem do pensamento criador na esfera da composição têm inúmeras vertentes, a depender de tantos fatores: geográficos, sociais, psicológicos, culturais e outros mais. Numa breve síntese das perguntas recebidas, tem-se: O que leva um músico a compor? Quando propenso a compor já há na mente do compositor ao menos um esboço daquilo que almeja? Outras questões levantadas sobre a temática enfatizam a curiosidade dos não músicos quanto às mais diversas obras dos compositores mais ventilados.

Preliminarmente, o ouvinte de uma composição sabe o nome do seu criador, mas dificilmente pensa na  origem originária da obra por dois motivos básicos: o quase desinteresse pela causa primeira e por uma razão que subsiste numa área subjetiva,  porque a criação finalizada já não pertence ao seu autor, pois de amplo domínio público. Esse ouvinte estaria interessado na criação que está a penetrar nos seus sentidos. Títulos formais, como Sonata, Sinfonia, Concerto, Suíte e outros mais, podem provocar no ouvinte leigo uma menor atenção se comparados aos que conduzem à imaginação do ouvinte. O título da super conhecida Sonata ao luar, de Beethoven, não é do compositor, mas sugestão do crítico e poeta alemão Ludwig Rellstab (1799-1860). Todavia, corroborou a enorme difusão da Sonata op. 27 nº 2 - quase una fantasia. Incontáveis títulos de criações de autores consagrados advêm de sugestões de terceiros, neles se enquadrando editores das composições com fins de uma maior divulgação.

Na história da música, as fontes que impulsionam o músico a compor são inúmeras e, em muitos casos, o compositor é igualmente um intérprete. Em cada fase histórica, até mais recentemente, o compositor, ao criar, seguia critérios ditados pelas técnicas da escrita musical e formas vigentes. Distinguiam-no as próprias qualidades individuais. Praticando formas do período, Haydn (1732-1809), Mozart (1756-1791), Beethoven (1770-1827) e Schubert (1797-1828) são facilmente detectados pelos estilos personalíssimos na utilização da básica forma sonata consagrada. Os compositores mencionados a utilizaram em suas criações, dando a ela interpretações diferenciadas, sem que a espinha dorsal fosse rompida, pois cada um adaptou a sua linguagem à forma existente. Serviam-se da harmonia, “formação e encadeamento dos acordes segundo as leis da tonalidade” (“Dicionário de Música”. Tomás Borba e Fernando Lopes-Graça, 1956).

O compositor belga André Souris (1899-1970) observa que “o compositor pode romper o feitiço do estilo que o seduziu inicialmente e empenhar-se com todas as suas forças para o superar, como foi o caso de Debussy em relação a Wagner. Mas é importante notar aqui que o gênio revolucionário de Debussy só conseguiu desenvolver-se apoiando-se nos mesmos dados que ele se propôs a combater. Ou seja, Debussy permaneceu wagneriano à medida que se tornou antiwagneriano” (Conditions de la musique (1976).

Valho-me de outras frases de Guerra Junqueiro: “Não faço versos por vaidade literária. Faço-os pela mesma razão por que o pinheiro faz resina, a pereira, peras e a macieira, maçãs: é uma fatalidade orgânica. Os meus livros imprimo-os para o público, mas escrevo-os para mim” (Prefácio à segunda edição de “A velhice do Padre Eterno”.

O impulso que leva à criação é tantas vezes insondável. O tempo de duração de determinada obra é algo rigorosamente individual. O magnífico Oratório Messias, de G.F.Haendel (1785-1959), encomendado pelo mecenas e escritor Charles Jennens (1700-1773), autor de vários libretos para os oratórios do compositor, com destaque para o Messias, foi composto em apenas 24 dias (1741).

Clique para ouvir, de G.F Haendel, a célebre Aleluia, extraída do Oratório Messias, interpretada pelo Royal Choral Society e a Royal Philharmonic Orchestra conduzida por Richard Cooke.

https://www.youtube.com/watch?v=IUZEtVbJT5c&t=2s

Moussorgsky (1839-1981), após a morte de seu grande amigo Viktor Hartmann (1834-1873), visitou várias vezes a exposição de aquarelas e pinturas dedicada ao pintor. Sob impacto, recolheu-se ao seu quarto e em 12 dias, sem dele sair, compôs uma das obras-primas da literatura pianística mundial, os “Quadros de uma Exposição” (1874). Sobre a gestação, escreveria ao seu amigo confidente Vladimir Stassov (1824-1906): “Hartmann ferve como ferveu Boris (ópera Boris Goudonov); os sons e as ideias estão suspensos no ar; eu os absorvo, eles me preenchem, mal conseguindo rabiscá-los no papel. Agora estou a escrever o nº 4, as ligações estão boas (nas promenades). Quero fazê-lo o mais rápido e melhor possível. A minha fisionomia aparece nos intervalos. Até agora, acho que está a correr bem (Junho de 1874)”. Nos “Quadros de uma Exposição”, o termo francês promenade (passeio) indica o caminhar de Moussorgsky pela mostra dedicada ao amigo.

Quanto ao impulso que leva à composição, pode ele ter vários motivos: encomenda, vontade de compor, entusiasmo, depressão… Claude Debussy (1862-1918) escreveria ao amigo Robert Godet aos 14 de Outubro de 1915, logo após concluir a sua última grande obra para piano, os 12 Études: “Escrevi como um louco, ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”. No dia 21 de Março de 1918, quatro dias antes da morte após longo sofrimento, recebe a visita do pianista Ricardo Viñes (1875-1943), que atende a um pedido de Debussy interpretando os Estudos, que são ouvidos com profunda perturbação.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les huit doigts, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk&t=10s

As causas que levam à criação a partir de um estímulo, seja ele qual for, ou da ausência dele, corroborando o que escreve acima Guerra Junqueiro, “fatalidade orgânica”, são incontáveis. O notável compositor brasileiro Henrique Oswald (1852-1931) compôs “Il Neige!” sob o impacto do movimento dos flocos de neve, uma das peças icônicas do repertório brasileiro para piano, pois primeiro prêmio num Concurso promovido pelo jornal Le Figaro, em 1902. Concorreram 647 peças vindas dos vários cantos do mundo. No júri, Gabriel Fauré, Camile Saint-Saëns e Louis Diémer.

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, Il Neige!, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=n0RxYeQbBbo

I have received several messages from readers who are curious to know the origin of musical creation in the mind of a composer. It is a complex subject, but I will briefly mention some of these origins or inspirations.