Distanciamento do sentido etimológico
Mas quem pretende prever o destino do cedro que,
de semente em árvore e de árvore em semente,
de crisálida em crisálida se transforma?
Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)
(“Citadelle”, cap. XX)
Torna-se evidente que o mundo está a viver uma fase acelerada em direção contrária ao significado preciso da palavra Paz. Lideranças não se entendem, voltadas preferencialmente a egos exacerbados. Se alhures guerras entre países e conturbações ocorrem, no Brasil é o esgarçamento das relações entre os Poderes, impulsionado pela acelerada disputa político-ideológica, que contamina mentes e decisões. Não mais temos harmonia entre os três Poderes, disposta na nossa Constituição de 1968, esvaiu-se, poder-se-ia dizer, quase que por completo. Reza a nossa Constituição, em seu artigo 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Subentende-se autonomia de cada Poder e respeito entre eles. É tão claro esse artigo, assim como o conteúdo da nossa Magna Carta criteriosamente gestada. Em sendo pianista, comparo-a com as partituras dos grandes mestres. Podemos interpretá-las, mas jamais maculá-las.
Essas premissas se fazem necessárias, máxime após a leitura recente do pensamento de Antoine de Saint-Exupéry sobre a paz em Citadelle (cap. XVII), que confesso ser o meu livro de cabeceira há décadas. Na opinião de uma das responsáveis pela edição do livro, sua irmã Simone de Saint-Exupéry, trata-se de “…obra densa e profunda que aborda todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”.
No que concerne à Paz, o escritor e piloto Saint-Exupéry, distante daquilo que hodierna e vulgarmente se apregoa sobre o termo, interpreta-a idealisticamente, com parcimônia, sem arrogância. Citadelle compreende uma experiência de ordem moral e seu personagem central é alegórico, um Senhor, verdadeiro guia espiritual, que transmite em monólogos seus conhecimentos existenciais, onde respeito, humanismo e justiça estão voltados à construção de uma sociedade ideal.
Recolhi alguns trechos que entendo essenciais para a compreensão do pensar de Saint-Exupéry sobre o tema:
«Não imponho a paz. Se me limitar a subjugar o meu inimigo, estou a alimentar o seu rancor. Trata-se de oferecer a cada um, para que se sinta à vontade, uma roupa à sua medida. E a mesma roupa para todos. Pois toda a contradição não passa da ausência de gênio”.
“A paz é árvore que demora a crescer. Tal como o cedro, precisamos absorver muitos nutrientes para construir sua unidade…
Edificar a paz é construir um estábulo grande o suficiente para que todo o rebanho possa nele dormir. É construir um palácio vasto o necessário para que todos os homens possam nele se reunir, sem abandonar nada de suas bagagens. Não se trata de amputá-los para que caibam nele. Construir a paz é conseguir que Deus empreste o seu manto de pastor para receber os homens em toda a extensão dos seus desejos. Assim como a mãe que ama seus filhos. Um deles tímido e terno. O outro, ardente por viver. E o outro talvez corcunda, frágil e indesejado. Mas todos, na sua diversidade, comovem o seu coração. E todos, na diversidade do seu amor, servem à sua glória. Mas a paz é uma árvore que demora a crescer. É preciso mais luz do que eu tenho. E nada ainda é evidente. E eu escolho e recuso. Seria demasiado fácil fazer a paz se os três fossem semelhantes”.
Está-se a viver no Brasil um clima de incertezas, incompreensões e falta de entendimentos, dir-se-ia chaga que se instalou e que destrói quaisquer possibilidades de que a paz e a harmonia prevaleçam. Será impossível chegarmos a uma paz que perdure se em nosso país persistir um clima realmente beligerante extremado. Artigos em jornais e revistas, assim como programas televisivos e redes sociais, estão eivados de posições antagônicas, tantas delas fora dos limites ponderáveis. Homens públicos nos três Poderes se exacerbam em suas colocações. Em entrevistas, determinados “líderes” destilam ódio em relação aos seus opositores. Péssimo exemplo, mormente para as novas gerações, que apreendem o que de pior pode haver para as suas formações cívicas. A moderação e a temperança parecem ter perdido a validade. Sem elas, continuaremos num caminho destinado ao impasse. Falta-nos a observância interpretativa desses termos, tão bem expressa em um Dicionário referencial: “Temperança é a virtude que em todas as acções da nossa vida reprime o excesso, e nos contém dentro dos limites da razão, e da lei: é propriamente o ne quid nimis do antigo oráculo. A moderação rege e governa as nossa acções; faz que vamos pelo justo e direito caminho, não nos desviando para os extremos; indica-nos os limites que não devemos transgredir. E a temperança retifica os desvios, cohibe os excessos, reduz-nos ao caminho, à linha do nosso dever” (“Diccionario da Língua Portugueza”, por Antonio de Moraes Silva, Rio de Janeiro, Litteraria Fluminense, 1891).
The world, troubled by wars and misunderstandings, is going in the opposite direction to the meaning of the word peace. Brazil is experiencing a period of ideological exacerbations and fierce disputes. When will we return to Harmony between the three Powers, as stated in our Magna Carta of 1968? The present circumstances brought back to my mind Saint-Exupéry’s ideas on peace expressed in his greatest work, “Citadelle”.
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