Originalidade e revisita a procedimentos anteriores

Chamam-me revolucionário, mas não inventei nada.
No máximo, apresentei coisas antigas de uma nova maneira.
Não há nada de novo na arte.
Os meus encadeamentos musicais, entendidos tão diversamente, não são invenções.
Todos, eu já os ouvira. Não nas igrejas. Em mim mesmo.
A música está em toda parte.
Não está reclusa nos livros. Está nos bosques, nos rios e no ar.

Claude Debussy (1862-1918)
(“Monsieur Croche” et autres écrits. Gallimard, 1987))

O terceiro artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº14, 1990) versou sobre Le langage pianistique des deux dernières Sonates. O ano de 1915 foi crucial para Debussy. Já a sofrer de um câncer que o levaria à morte em 1918, compõe algumas das suas mais importantes obras: En Blanc et Noir para dois pianos, a Sonata para violoncelo e piano e, creio eu, a sua mais importante composição para piano, os 12 Études. Não sem razões, Debussy escreve ao seu editor Jacques Durand após findar os Estudos: “escrevi como um louco ou como aquele que deve morrer no dia seguinte”, frase que inseri no post anterior. Essas três composições foram criadas entre junho e Outubro de 1915, sendo que a Sonata para violino e piano foi composta durante um período mais longo, Outubro de 1916 a Abril de 1917. No que concerne às duas Sonatas mencionadas, deveriam integrar o projeto de Six Sonates pour divers instruments, que só não chegaram a termo mercê do progressivo e irremediável mal que o acometeu. Intermediando essas duas, Debussy compõe a Sonata em trio para flauta, viola e harpa, no final de 1915.

É comum que autores em todas as artes relembrem criações anteriores quando de obras posteriores, máxime no caso de proximidade temporal menor. Sob outro aspecto, da juventude da idade madura à plena maturidade, no âmbito das artes o compositor pode, ao longo da existência, sentir diferenças no tratamento da sua escrita, o que o leva a se distanciar diametralmente de suas criações do passado. No blog sobre Debussy e Scriabine, menciono as transformações plenas na escrita do compositor russo durante toda a sua trajetória (18/10/2025).

A presença precisa em 1915 de títulos abstratos, retomando, sob outra égide, a praticada de 1880 a 1901, estaria a revelar prioritariamente, da parte de Debussy, sua preocupação formal. No longo período que se estende até 1915, a técnica pianística estaria mais voltada à resultante sonora, parte dela consequência da atração do compositor pela poesia, mormente nos andamentos mais moderados. São inúmeros os “achados” sonoros decorrentes da incessante busca da “beauté du son”. No que concerne aos andamentos rápidos, os esquemas são menos variados, testemunhando provavelmente, por parte de Debussy, a necessidade de aplicar procedimentos que lhe eram familiares e que se adaptavam bem às suas mãos de pianista. Debussy não tinha uma técnica pianística transcendental, evitando situações que pudessem ser embaraçosas quando das raras apresentações públicas ou privadas.

Nas duas obras capitais para piano solo e dois pianos, os 12 Études e En Blanc et Noir, respectivamente, Debussy busca em princípio utilizar modelos da técnica pianística nos seus limites possíveis. Não escreveria ao seu editor Jacques Durand, a respeito dos Études: “Esteja certo de que meus dedos param às vezes diante de certas passagens. Sinto necessidade de retomar a respiração como após uma ascensão… na verdade, esta música paira sobre os cimos da execução! Haverá belos recordes a alcançar” (28/08/1915).

Da Sonata para violoncelo e piano, que precede em pouco mais de um mês o início da criação dos Études, Debussy “extrai” alguns modelos técnico-pianísticos para certos Études: Pour les huit doigts, Pour le agréments, Pour les notes répétées e Pour les sonoritées oppósées. Observa-se que a linguagem pianística idiomática de Debussy contém fórmulas e modelos que, conservando uma estrutura bem próxima, apresentam, contudo, ligeiras modificações em função da textura musical em permanente renovação, máxime nos andamentos mais lentos, quando são explorados modelos como organização dos acordes, planos sonoros contrastantes, justaposição de ritmos diferenciados. Não obstante, Debussy escreve sobre o manuscrito da Sonata para violoncelo e piano: “Que o pianista não se esqueça jamais que não deve jamais lutar contra o violoncelo, mas o acompanhar” (Léon Vallas, Claude Debussy et son temps, 1958).

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violoncelo e piano, na gravação histórica (1961) do violoncelista Mstislav Rostropovich (1927-2007), tendo ao piano o compositor e pianista Benjamin Britten (1913-1976):

https://www.youtube.com/watch?v=UC1H73551gE

No artigo publicado nos Cahiers Debussy (nº15) apresento 31 exemplos musicais, salientando a presença do passado tanto remoto como recente, assim como a revisita ao lúdico expresso em criações anteriores, máxime após o nascimento da filha Claude-Emma, a sua Chouchou.

Em La Boîte à Joujoux, parte do tema do post anterior, observa-se o nítido sentido lúdico instaurado em 1913 nesse verdadeiro catálogo do gênero. Detectam-se, nos dois movimentos médios das Sonatas, “lembranças” de La Boîte à Joujoux. Alguns elementos das Sonatas lembram esquemas do Ballet pour enfants, outros são, dir-se-ia, transplantados. Um dos interesses do artigo em pauta residiu na integração do timbre do piano aos do violoncelo e do violino, permitindo até uma avaliação nos aspectos voltados à interpretação e à análise, no desiderato de melhor apreender o timbre no conjunto das obras para piano de Debussy. Tem interesse um comentário de um dos intérpretes da Sonata para violoncelo e piano, Louis Rosoor, que fez inserir nos seus programas comentário de Debussy sobre o segundo andamento da Sonata, a Sérénade: “Pierrot acorda com um sobressalto, sacode o seu torpor. Ele corre para fazer uma serenata à sua amada, que, apesar das suas súplicas, permanece insensível. Ele consola-se do seu insucesso cantando uma canção de liberdade”. Saliente-se que Pierrot e a boneca são personagens essenciais de La Boîte à Joujoux. Em carta ao seu editor Jacques Durand, de 17/10/1916, Debussy protestou com veemência desse abuso de confiança.  Na Sérénade, há “vestígios” de La Danse de Puck (Préludes, 1º livro) e Hommage à S.Pickwick Esq. P.P.M.P.C. (Prèludes, 2º livro). Verifica-se que é nos movimentos intermediários das duas Sonatas que mais acentuadamente se realiza a impregnação do mundo infantil.

Clique para ouvir, de Debussy, a Sonata para violino e piano, na gravação histórica (1940) do violinista Joseph Szigeti (1892-1973) e do compositor e pianista Béla Bartok (1881-1945):

https://www.youtube.com/watch?v=6_wM5R6ZCBU

Numa época dolorosa da existência, física e moralmente, as reminiscências de Debussy testemunham de maneira significativa a sua vontade desse retorno ao universo lúdico através das ideias encontradas no seu código pianístico. Escreve: “Se devo desaparecer proximamente, quero ao menos tentar fazer o meu dever”. E logo após: “Confesso que perco dia após dia a minha paciência colocada um pouco à prova; é de se perguntar se esta doença não é incurável” (03 e 08/06/1916). Essas confissões não revelariam a consciência da morte próxima e a necessidade de regressar aos valores do passado? Os últimos anos de produção não teriam se caracterizado por uma releitura autocrítica de procedimentos nos quais foi pioneiro? O caráter lúdico, exposto em uma estrutura formal quase clássica, não estaria obedecendo à tradição observada em tantos compositores no sentido de uma re-visitação aos modelos tradicionais? Jean Chantavoine e Jean Gaudefroy-Demombynes observam que “a maioria dos grandes compositores românticos evoluíram, como Goethe, do romantismo ao classicismo ou a uma espécie de neoclassicismo do romantismo”. (“Le Romantisme dans la musique européenne”, 1955). Logicamente, sem ser um romântico, Debussy não teria realizado esse retorno aos modelos mais tradicionais? Esse regresso às formas que frequentou, o estabelecimento de um vasto catálogo de expressões musicais mais abstratas e mais frequentemente utilizadas, ou mesmo o recurso ao seu próprio catálogo idiomático da técnica pianística não testemunham em Debussy uma derradeira concentração? De acréscimo, o piano não foi sempre, antes de qualquer outro, o seu instrumento íntimo, como o foi, como exemplo, para Chopin, a quem ele dedica sua obra maior e testamentária para o instrumento, os 12 Études?

Seria possível entender que foi entre 1915 e 1917, com En Blanc et Noir, a Sonata para violoncelo e piano, os Estudos e a Sonata para violino e piano, que Debussy melhor elaborou o seu código pianístico, mercê igualmente de uma percepção outra do timbre instrumental.

In 1915, Debussy, already suffering from the illness that would lead to his death in 1918, composed some of his essential works: En Blanc et Noir for two pianos, Sonata for Cello and Piano, 12 Études, and, between 1916 and 1917, Sonata for Violin and Piano. He drew on a piano idiom that he had used throughout his career, particularly models taken from some of his Préludes and La Boîte à Joujoux.