Cahiers Debussy (nº31, 2007)
A mais pura melodia do coração de Debussy.
Gabriele d’Annunzio (1863-1938)
(referência à Chouchou)
A única carta então conhecida de Claude-Emma, carinhosamente nomeada Chouchou pelo pai, Claude Debussy (1862-1918), filha do casamento do compositor com Emma Bardac, foi destinada a Raoul Bardac, seu meio-irmão, filho do primeiro matrimônio de Emma, dias após a morte do compositor. Publicada no volume dedicado às cartas de Debussy e de figuras importantes das artes e da cultura ao notável músico, constitui reunião hercúlea do ilustre musicólogo e bibliotecário François Lesure (1923-2001) e figura maior no que concerne a Debussy na segunda metade do século XX. Com o falecimento de Lesure, os especialistas colaboradores, Denis Herlin e Georges Liébert, finalizaram a magnífica coletânea de missivas (“Correspondances” 1872-1918, Éditions Gallimard, 2005, 2.331 pgs).
Na carta a Raoul Bardac, impressiona a maturidade de Claude-Emma que, aos 12 anos de idade (30/10/1905 – 14/07/1919), revela os momentos finais do seu ilustre pai, dele se aproximando encorajada pelo compositor Roger Ducasse (1873-1954): “Imediatamente compreendi que era o fim. Logo que entrei no quarto, Papai dormia e respirava regularmente, mas de maneira abreviada. Dormiu até às 10 ¼ da noite e, docemente, angelicamente, dormiu para sempre. O que se passou após eu não posso lhe contar. Uma torrente de lágrimas queria escapar dos meus olhos, mas eu impedi imediatamente por causa de mamãe. O resto da noite, na grande cama de mamãe, não consegui dormir um minuto. Veio a febre e meus olhos secos interrogavam as paredes e eu não podia acreditar na realidade!!!..”. A extensa carta revela a previsão apontada pelo poeta e dramaturgo italiano Gabriele d’Annunzio (1863-1938), que captara tempos antes a precocidade de Chouchou, augurando-lhe futuro promissor.
De interesse alguns segmentos de uma carta de Debussy à Chouchou, quando de sua estada em S.Petersburgo para apresentação de suas obras: “Minha pequena querida Chouchou, teu pobre pai está em falta com você pelo fato de não ter respondido a sua tão gentil carta. Não me queira mal… É muito triste estar privado após tantos dias sem ver a bonita figura de Chouchou, de não mais ouvir suas canções, suas risadas efusivas, enfim, todo o barulho que faz de você criança insuportável algumas vezes, mas encantadora na maioria delas. O que será do Sr. Czerny, que tem tanto talento? Você sabe: aquela música de balé para pulgas?”.
Como vai o velho Xantô? (o cão de estimação). Está bonzinho? Continua sempre a destruir o jardim? Eu te autorizo a corrigi-lo… Não creio ser possível te esquecer um segundo sequer. Muito ao contrário, eu não penso senão no dia em que a verei novamente. Nessa espera, pense no carinho do seu pai que te envia mil beijos… Seja gentil com sua pobre mãezinha para que ela não fique triste”. (11/12/1913).
Se Children’s Corner (1909) foi dedicada a Chouchou, La Boîte à Joujoux (1913) o foi não nominalmente, mas estava presente no pensar de Debussy durante a criação do ballet pour enfants.
Foi em São Paulo, em 1980, que eu conheci o empresário Gérard Killick, filho de Ada Killick (1898-1978). Ele me contactou após ter lido na imprensa o meu interesse pela obra de Debussy, mercê dos quatro recitais em São Paulo (MASP), quando apresentei a integral para piano do notável compositor. Fixamos um encontro em seu escritório e, após uma conversa amigável, ofereceu-me um pequeno rolo em papelão, precisando que doravante seria eu o guardião das três cartas escritas por Claude-Emma, Chouchou, e enviadas à sua mãe Ada Killick, jovem professora de piano, pouco mais de um mês após a morte de Debussy. Gérard me contou que sua mãe nasceu na França e morreu em Ubatuba. Segundo Gérard, ela jamais esqueceu os momentos de convívio quando das aulas de piano em casa de Debussy. Ada Killick estudou em duas escolas antes de ingressar no Conservatório de Paris. Provavelmente algum professor do estabelecimento recomendou a jovem ao compositor. Poucos meses antes da morte (25/03/1918), Debussy escreve à professora agradecendo o seu trabalho, mas desobrigando-a doravante (24/10/1917). As cartas de Chouchou à Ada Killick testemunham que ela continuava a orientá-la.
As três cartas adquirem importância por serem as últimas conhecidas de Chouchou Debussy, pois escritas posteriormente à enviada ao seu meio-irmão Raoul e redigidas pouco mais de um mês da morte de Debussy. As missivas confirmam a opinião de Gabriel d’Annunzio sobre a precocidade intelectual de Chouchou, ratificada por figuras como André Caplet (1878-1925), compositor e regente, e o poeta e novelista Paul-Jean Toulet (1867-1920). Chouchou morreria em 1919, vítima de difteria mal diagnosticada. Inéditas em França até 2007 (Cahiers Debussy, nº 31), foram inseridas como apêndice em meu livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982).
A primeira, escrita um mês após a morte do pai (28/04/1918), demonstra um estilo fluente e caligrafia segura: “Minha mãe está muito cansada para lhe escrever. Ela própria pede que a desculpe e me encarrega de lhe dizer que, como tenho de partir na quarta-feira, se estiver bem, não poderei ter aulas nem na segunda nem na terça-feira, pois estarei muito ocupada, como pode imaginar. Ela solicita que, assim que receber esta carta, tenha a bondade de lhe enviar o valor das minhas aulas (que ela vos enviará por vale postal).
Com os meus melhores cumprimentos, receba, prezada mademoiselle, a sincera amizade de
Chouchou Debussy”.
80, Ave. du Bois de Bologne
A segunda carta (30/05/1918) é plena de abnegação e preocupação filial quanto ao sofrimento físico e emocional que atravessa sua mãe, esquecendo-se ela mesma dos seus: “Mamãe está muito doente. Não fomos a Annecy como tínhamos planejado. Ela teve uma recaída do seu terrível reumatismo, que ainda a afeta, infelizmente! Tivemos tanto, tanto que fazer com todos esses últimos e terríveis acontecimentos que não tive um minuto, querida mademoiselle, para lhe escrever e dizer que a carta que enviou à mamãe se perdeu e, por isso, ela não sabe mais o que lhe deve. Mamãe tem tantas coisas em que pensar e lembrar! Portanto, seria muito gentil da sua parte me dizer o valor das minhas aulas.
Espero, querida mademoiselle, que esteja bem de saúde e lhe envio meus melhores cumprimentos e acredite na minha sincera amizade.
Sua
Chouchou Debussy”
A terceira carta foi escrita no denominado mandat-lettre, na horizontal e na horizontal sobre a vertical, A data do mandat mostra-se ilegível, percebendo-se apenas o ano ‘18’. Foi enviada pela própria Chouchou (“Mlle. Debussy”): “Prezada Mlle., acabei de receber notícias suas. Acredito lembrar-me de que Mlle. comprou para mim 8 fr. 80c. em músicas, perfazendo um total de 59 fr. 80 c. Mamãe está um pouco melhor e nós partiremos amanhã à noite, com Françoise, Madeleine e minha irmã (Trata-se de Dolly, meia-irmã de Chouchou), para Arcachon. Eu vos escreverei. Desculpe-me a caligrafia. Toda a minha amizade, Chouchou”.
Gérad Killick, ao me oferecer as cartas dizendo que eu seria guardião da preciosa correspondência, propiciou-me, anos mais tarde, doá-las ao Centre de Documentation Claude Debussy por intermédio do seu presidente, musicólogo François Lesure. Ao ser publicada a correspondência de Debussy mencionada acima sem as cartas em pauta, imediatamente a ilustre musicóloga Myriam Chimènes me contactou para que as apresentasse em artigo para os Cahiers Debussy.
O conhecimento dessas missivas apenas ratifica a mentalidade apurada de Chouchou Debussy, sua afeição imensa pelo pai e seus cuidados em relação à situação física e emocional de sua mãe, Emma. O artigo foi também a minha derradeira contribuição para os Cahiers Debussy.
The Cahiers Debussy (No. 31, 2007) published the last three known letters written by Chouchou Debussy, the composer’s daughter, to her piano teacher Ada Killick. Her son Gérard gave me the letters in 1980, saying that I would be their guardian from then on. Years later, I donated them to the Centre de Documentation Claude Debussy in Paris.




