Navegando Posts em Artes

Haverá esperanças neste mundo tão conflitante?

Cada um de nós emergirá, ao fim do Ano Novo,
ou maior ou menor; ou então,
absolutamente não teríamos crescido,
permanecendo em completa inércia,
exatamente aquilo que agora somos.
Porém, para aqueles dentre nós que sentem fervor,
qual o significado do Novo Ano? Não poder ter esta significação?
Somos semelhantes a viajantes,
penetrando, em nossa longa jornada,
por um país novo e desconhecido,
onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam.
Jiddu Krishnamurti (1895-1986)
(“Mensagem de Ano Novo”)

Após o blog anterior, em que narro um Natal inesperado em Paris no ano 1958, ao verificar imagens para o referido post deparei-me com duas já mencionadas em outros blogs muitos anos atrás, mas que no presente têm muito a ver com a situação que se abre a partir do início de 2023.

Creio que, das visitas que realizei a tantas catedrais francesas, portuguesas e belgas com o desiderato de compreender o resultado gravado nas pedras de tantas criações extraordinárias relativas à história da cristandade, uma visita ficou indelével, a da Cathédrale d’Autun, em França, na Borgonha Romana. Denominada Église Saint-Lazare, foi construída entre os anos 1120-1146, mercê da visita de peregrinos que se prostravam diante das relíquias de São Lázaro, irmão de Maria Madalena e amigo de Jesus. Tem um magnífico tímpano realizado por Gislebertus, fato raríssimo àquela altura o escultor legar aos pósteros a autoria. Os inspirados capitéis no interior da Catedral têm igualmente Gislebertus como autor. Nessa visita em 1960 ficaram gravadas perenemente duas imagens, a dos peregrinos no majestoso portal e a de Saint-Joseph pensif, no interior do templo. Adquiri as duas estampas e não raras vezes, ao longo das décadas, elas me levam à reflexão.

Passaram-se pouco mais de quinze anos após essa visita à Cathédrale d’Autun quando, em viagem à Pouso Alegre, em Minas Gerais, parei num restaurante da estrada para tomar café e, ao passar por várias barracas de artesãos populares, uma delas chamou-me a atenção. Fiquei surpreso ao ver um rústico presépio em terracota, que imediatamente acionou minha memória. Tratava-se das figuras de José, Maria e a de Jesus no berço. São José levava a mão direita ao queixo. Qual a razão? 850 anos após a construção da Catedral d’Autun, novamente me deparava com a mesma postura de São José no templo da Borgonha, neste, a mão direita a sustentar a cabeça do Santo, sendo que o braço se apoia sobre perna esquerda, no de terracota amparado na mão esquerda. O mais extraordinário foi ouvir do artista popular mineiro, figura simpática que, com simplicidade, respondeu à minha pergunta referente ao porquê dessa mão no queixo. Coçando a cabeça e a sorrir considerou que a posição da mão significava o problema que o Santo estava a trazer para o mundo e que poderia ter sido o que São José pensou, completaria.

Aquelas palavras têm transcendência e certamente atravessaram centenas de anos, pois Gislebertus, com toda a sua genialidade, poderia ter pensado de maneira similar. O notável Auguste Rodin (1840-1917) criaria a escultura definitiva de “O Pensador”, mão direita a apoiar a cabeça e o cotovelo sobre a a perna esquerda…

As imagens de São José pensativo e a dedução do artista popular levam-me a pensar no alcance da frase. Iniciaremos um novo ciclo a partir do começo de 2023. Sob o plano mundial, entre tantas escaramuças internas em inúmeros países, sobressai a guerra Ucrânia-Rússia, insanamente provocada por um tirano, brevemente a completar um ano de bárbaras contendas, com cenários dantescos de destruição e mortes. No plano interno, a troca de poder traz incertezas e encontra um Brasil dividido. Quanto ao nosso torrão natal, há nítida degeneração em áreas como costumes; moralidade; lhaneza; decadência nítida da imprensa escrita – inclusive em termos de redação; programas televisivos em que o supérfluo e a degenerescência comportamental imperam, mormente nos reality shows; o desprezo pela cultura erudita; a não confiabilidade na classe política; o quase absoluto desaparecimento do respeito às religiões e crenças; a corrupção como a mãe de todos os vícios que, hélas, deverá prosseguir, pois majoritariamente anulada em breve tempo.

Aos 84 anos assisto à inegável decadência nas áreas apontadas. Se a tecnologia avança a passos largos para o bem e para o mal, se mentes esclarecidas e sérias buscam o aprimoramento do país, estas raramente encontram respostas dignas. Não podemos deixar esperanças fenecerem.

A todos os leitores que me honram com sua atenção semanal, desejo que 2023 lhes possibilite crescer, emergindo maiores ao final de mais uma etapa, como nos propões Krishnamurti.

Two images 900 years away in time led me to reflect on why a master sculptor in the 12th century and a rural artisan in the south of Minas Gerais came up with the idea of depicting the figure of Saint Joseph with his hand on his chin. The Romanesque sculptor Gislebertus in France and a rustic countryman who carved in his spare time had the same idea. From the popular artist I heard that the hand on the chin would reflect Saint Joseph’s thought “what trouble have I brought into the world!” It makes we think that possibly the medieval sculptor might have had the same idea. Thinking about troubles, I make some observations about a marked decay of civilization in numerous areas.

Recordações de Bóris Pasternak

Scriabine era um criador visionário e um místico.
Tudo o que criava, vivia, sentia, pensava
instalava-se a partir de uma experiência interior de caráter místico,
pois essencialmente incomunicável na realidade e que, entretanto,
ele se esforçava em transmitir,
tanto em sua obra musical como em seus escritos poéticos,
em suas teorias, seus projetos e em suas conversas
com aqueles que poderiam compreendê-lo.

Marina Scriabine (1911-1998) – musicóloga e filha do compositor

Neste ano comemoram-se duas efemérides de relevantes compositores, o sesquicentenário do compositor russo Alexandre Scriabine e o centenário de Gilberto Mendes, este, tema dos dois posts anteriores. A respeito de Scriabine, ao longo dos blogs desde 2007 reiteradas vezes escrevi neste espaço sobre o importante contributo do compositor e pensador russo na música como um todo.

Estava a reorganizar os meus livros quando me deparo com uma pequena publicação com nome sugestivo. Tratava-se de “Nanico – homeopatia cultural”, criação do prezado amigo e editor Cláudio Giordano. Neste em especial, nº 13, de Junho de 1996, há um artigo extraído de “An Essay in Autobiography” escrito por Bóris Pasternak (1890-1960), autor do célebre “Doutor Jivago” e Prêmio Nobel de Literatura em 1958. Recordo-me de ter conversado com Giordano, que imediatamente se interessou em vê-lo publicado, com tradução cuidadosa de nossa dileta amiga Regina Maria Pitta.

Pensei retransmiti-lo aos leitores, 26 anos após, por motivos precisos. A publicação do excelente “Nanico” era restrita e o texto de Pasternak, sendo revelador de alguns aspectos essenciais nesse cotidiano vivido pelos dois personagens, possibilitou uma maior abrangência sobre o já vasto material literário e analítico a respeito de Scriabine.

Devido à dimensão dos posts, divido o texto de Pasternak em dois, inserindo num terceiro aquele que vem logo após, igualmente publicado no mesmo número e de minha pena.

“Na primavera de 1903, papai alugou uma dacha perto de Maloiaroslavets, no caminho da ferrovia Briansk (agora conhecida como Linha Kiev). Coincidiu que Scriabine fosse nosso vizinho. Até então não o conhecíamos muito bem. As duas casas, algo distantes, ficavam ao lado de uma clareira numa colina. Chegamos, como de hábito, pela manhã bem cedo. O sol, filtrando-se pelos galhos baixos que se debruçavam sobre nosso telhado, penetrava pelas janelas. Dentro, embrulhos foram abertos e alimentos, roupas de cama, frigideiras e baldes surgindo. Escapuli para a mata.

Deus, quão pulsante aquele bosque matinal! A luz do sol trespassava-o por toda parte. Sombras trêmulas embalavam seu cimo num vaivém e do emaranhado de galhos vinha aquele sempre inesperado, sempre estranho chilrear de pássaros, que começa com chamados altos, abruptos e, extinguindo-se gradualmente, repete, em sua insistência, a alternância fugidia de luzes e sombras na distância. E acompanhando a sucessão de luzes e sombras e o cantar e agitar dos pássaros pelos galhos, fragmentos da Terceira Sinfonia ou Divino Poema, composto ao piano na casa ao lado, propagavam-se e ressoavam através da mata.

Senhor, que música! Sucessivamente a sinfonia ruiu como uma cidade bombardeada e foi reconstruída, renascendo dos destroços. Seu sistema, arduamente elaborado, enchia-a até transbordar e era novo – como era nova a floresta, respirando vida e frescor, vestida de primavera naquela manhã de 1903 – não 1803, lembre-se! E assim, como na mata não havia uma única folha artificial, também a sinfonia era livre de profundidade falsa, de retórica solene, nada que soasse como Beethoven, ou Glinka, ou Ivan Ivanovich ou como a Princesa Maria Alexevna; ao contrário, seu trágico poder empinava o nariz em triunfo a tudo o que fosse respeitável e majestosamente decrépito e enfadonho, mostrando-se perniciosamente ousada, livre, frívola e essencial como um anjo caído.

Espera-se, do homem que componha tal música, que conheça a si próprio e que, em horas de lazer, seja tão tranquilo e luzente como Deus descansando no sétimo dia; e tal ele provou ser. Scriabine e meu pai frequentemente caminhavam pela estrada que passava não muito longe de nossa casa. Às vezes eu os acompanhava. Scriabine gostava de tomar impulso e depois saltar pela estrada como se, a qualquer momento, fosse deixar o chão e planar no ar. De um modo geral, desenvolvera formas várias de leveza extrema e movimentos ágeis, parecendo prestes a alçar voo. Em seu caráter, essa habilidade manifestava-se no charme bem educado e na maneira mundana de adotar um ar superficial, evitando assuntos sérios em sociedade. Mais surpreendentes eram seus paradoxos durante esses passeios pelo campo.

Conversavam, ele e meu pai, sobre o bem e o mal, a arte e a vida. Ele atacava Tolstoi e pregava o homem superior e amoral de Nietzsche. Concordavam apenas quanto à essência e aos problemas do fazer artístico; discordavam em tudo o mais. Na época eu contava doze anos. Metade de suas discordâncias estavam além de minha compreensão. Mas Scriabine conquistou-me pelo frescor de sua mente. Idolatrava-o. Concordava sempre com ele, mesmo ignorando o que queria dizer. Logo ele partiu para a Suíça, onde acabou ficando por seis anos.

No outono sofri um acidente que nos manteve no campo mais tempo do que o normal. Papai pintava a tela Pastagens Noturnas. Era uma cena de meninas de uma vila próxima, Bocharovo, cavalgando ao crepúsculo, a conduzir cavalos em direção aos prados úmidos ao pé de nossa colina. Uma tarde acompanhei-as, mas meu cavalo desembestou e, quando pulou um riacho, caí e quebrei a perna. Fiquei com uma perna mais curta do que a outra e, em consequência, fui dispensado do exército em todas as convocações.

Mesmo antes daquele verão arranhara um pouco o piano, conseguindo juntar alguns poucos sons de minha autoria. Agora, após meu encontro com Scriabine, desejava ardentemente compor. Naquele outono comecei a estudar teoria da composição, dedicando-me a ela durante meus seis anos restantes na escola. Trabalhei com o admirável Engel, crítico musical e teórico, e mais tarde com o professor Glière.

Ninguém tinha a mínima dúvida sobre minha vocação. Meu caminho estava traçado. Meus pais ficaram encantados com minha escolha profissional; a música seria meu destino e toda sorte de ingratidão para com eles, cujos sapatos eu era indigno de desamarrar, qualquer desobediência, negligência ou excentricidade minha passou a ser perdoada por esse motivo. Mesmo se flagrado às voltas com algum problema de fuga ou contraponto em classe, um livro de música aberto na carteira em plena aula de Matemática ou Grego, ou quando boquiaberto como um paspalho se algo me era perguntado, toda a classe vinha em minha defesa e os professores toleravam meus defeitos. E, ainda assim, desisti da música.

Desisti dela no exato momento em que tudo fazia crer estar no caminho certo e congratulações choviam sobre mim. Meu deus retornara; Scriabine voltara da Suíça trazendo suas últimas composições, entre elas O Êxtase. Foi recebido em triunfo por toda Moscou. No auge das festividades visitei-o, mostrando-lhe minhas peças. Sua reação superou todas as expectativas: escutou-me, aprovou-me, encorajou-me e abençoou-me.

Ninguém conhecia, porém, minha angústia secreta e, tivesse ela sido revelada, não me teriam acreditado. Eu progredia como compositor, mas tocava pessimamente e lia música como uma criança aprendendo a soletrar. A discrepância entre meus temas musicais, originais e difíceis, e minha falta de habilidade técnica transformou a alegria de um dom natural num tormento, até que não mais pude suportá-lo.

Como pôde tal coisa acontecer? Havia algo intrinsicamente errado em minha atitude, algo que merecia castigo. Eu tinha a arrogância adolescente, a presunção niilista dos tolos, que desprezam tudo o que parece acessível, tudo o que pode ser ‘obtido’ com aplicação. Considerava o esforço pouco criativo. ‘Na vida real’, pensava, tudo deve ser miraculoso e predestinado, nada planejado, deliberado, desejado.

Esse foi o lado negativo da influência de Scriabine em mim. Tomei-o como mestre supremo, sem imaginar que apenas ele podia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas a ele próprio. Desentendi-o infantilmente, mas as sementes de seu pensar haviam caído em solo fértil”.

Bóris Pasternak se dedicaria aos estudos musicais de 1904 a 1910. Compôs algumas obras. No belo Prelúdio nº 2 a influência de Scriabine é evidente.

Clique para ouvir, de Bóris Pasternak, “Prelúdio nº 2”, na interpretação de Eldar Nebolsin:

https://www.youtube.com/watch?v=y8nzjPhTXzY

No próximo post publicarei a segunda parte deste texto, na qual Pasternak avalia obras de fases distintas de Scriabine.

While rearranging my bookshelves I found a small publication edited by Cláudio Giordano in June 1996, “Nanico, cultural homeopathy”. It contained a testimonial by the famous Russian writer Boris Pasternak about his relationship with composer Alexandre Scriabine. His childhood memories remained intact. Pasternak’s account is worth reading, but due to its length I chose to divide it into two parts, the second to be posted next week.

Distinção necessária entre duas intervenções

Por um lado, o artista furta o seu tema ao tempo,
tornando-o acessível a todos em todos os momentos;
por outro lado,
salva-o ainda da corrente do tempo
na medida em que faz convergir
num só instante o que foi beleza em instantes sucessivos.
Agostinho da Silva
(“Conversação com Diotima”)

Mensagens recebidas a respeito do tema do último post, no qual abordo alguns aspectos dos limites da interpretação, tecem referências às transcrições, tantas vezes confundidas como gênero arbitrário, pois a interferir numa criação já sedimentada e destinada a um ou mais instrumentos ou voz. Seis leitores me escreveram sobre a busca empreendida e a localização do pianista que gravou a integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), adicionando improvisações e… saudado pela crítica (vide blog anterior). Comento a seguir algumas diferenciações claras entre transcrição e arbitrariedade.

A transcrição é uma categoria de gênero musical. Ao longo dos últimos séculos, determinadas composições para instrumento solo ou conjunto deles, ou mesmo para corais, despertam o interesse de outros compositores, pósteros ou coetâneos, que adaptam tal obra para destinação que lhes apetece. Composições de Antonio Vivaldi (1678-1741) para violino(s) e orquestra de câmara foram transcritas para cravo e conjunto de câmara por J.S.Bach (1685-1750). Criações para órgão ou coral de J.S.Bach foram magnificamente transcritas para piano por excelsos músicos, como Franz Liszt (1811-1886), Ferrucio Busoni (1866-1924), Alexander Siloti (1863-1945), Wilhelm Kempff (1895-1991), entre outros; os “Quadros de uma Exposição” de Modest Moussorgsky (1839-1881) para piano tiveram transcrições para grande orquestra realizadas por Maurice Ravel (1875-1937), Dmitri Shostakovitch (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986). Uma extensa lista demonstra a frequência a essas leituras — ampliadas ou não — de obras preferencialmente bem conhecidas. A transcrição não transgride, mas sim oferece uma outra possibilidade de leitura e, consequentemente, de audição. Nosso ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016) transcreveria para piano solo, a meu pedido para a coletânea que idealizei, duas obras instrumentais: “Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Doroty Lamour” e “O Pente de Istambul”. Resultaram.

Devido a certos purismos que vigoraram durante décadas no século passado, as transcrições, mormente para piano solo, basicamente desapareceram dos repertórios e muitos pianistas foram cúmplices, seguindo os ditames de puristas e desviando-se do gênero. Presentemente, e é alvissareira a retomada, elas regressam e penetram o repertório dos pianistas. Deve-se o fato à abertura, positiva ou não, que se processa nas artes como um todo. O mesmo ocorreu com a obra dos compositores que, nos séculos XVII e XVIII mais acentuadamente, depositaram suas ideias em criações para cravo. Um verdadeiro anátema foi lançado aos que executavam ao piano – durante décadas no século XX – a obra dos clavecinistas franceses, de J.S. Bach ou de Domenico Scarlatti, para mencionar os mais visados. Essa “condenação” dos puristas visava outorgar unicamente aos cravistas a interpretação desse fantástico repertório. O notável musicólogo francês François Lesure (1923-2001) fez coro aos que assim não pensavam e acredito que, com suas palavras autorizadas, colocou um ponto final à inconsistente posição: “O tempo do Barroco integrista passou, o uso de instrumentos de época cessou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”. Presentemente, e é promissora a retomada, transcrições e composições para cravo interpretadas ao piano regressam aos repertórios, sem barreiras censuradoras, e penetram o repertório dos pianistas.

Clique para ouvir, de Bach-Kempff, o coral “Awake, the voice is sounding”, na interpretação de J.E.M.:

(239) Bach-Kempff – Awake, the Voice is Sounding – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Por vezes é o próprio compositor que realiza uma outra versão para determinada obra. Gabriel Fauré (1845-1924) escreveu sua “Ballade” originalmente para piano, transcrevendo-a posteriormente para piano e orquestra, transcrição muito mais ventilada do que a original. Esta compõe meu CD dedicado a Fauré (Gabriel Fauré, Works for piano, De Rode Pomp, 2009). Outros autores assim procederam, oferecendo “possibilidades” outras às criações para um só instrumento. O também compositor francês François Servenière (1961-), num caminho inverso, compôs em 2008, “Promenade sur la Voie Lactée”, para flauta, piano, coro, harpa e orquestra de câmara, criação inspirada em Le Petit Prince, de Saint-Exupéry, autor que nos é caro. Ao ouvir, entendi que a bela composição se daria muito apropriadamente se transcrita para piano solo. Em 2018, François Servenière gentilmente escreveu a versão pianística, gravada por mim na Bélgica em 2019, a integrar o CD “Retour à l’Enfance” (ESOLEM, França, 2020).

Clique para ouvir, de François Servenière, “Promenade sur la voie Lactée”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ

Sob outra égide, não poderiam ser consideradas “transcrições” todas as adaptações que cenógrafos e estilistas realizam nas últimas décadas para as óperas de antanho? Não ocorre o mesmo com os textos teatrais, que hodiernamente também têm cenografias e roupagens atualizadas? Aceitas, elas proliferam nos teatros do planeta. Não obstante, a partitura musical e seu libreto, para as óperas, assim como o texto literário para as peças teatrais, permanecem na essência inalterados. Não seria a âncora mencionada no post anterior que mantém a autenticidade das obras erigidas pelos notáveis compositores e dramaturgos, a possibilitar as flexibilizações das montagens nos tempos atuais? As “transcrições” visuais, tanto para a ópera como para a peça teatral, não representariam o olhar do presente, que será certamente descartado em futuras encenações com projetos diferenciados? Essas “transcrições” não seriam alternativas em constantes mutações às tradicionais encenações que, através da perpetuação da traditio, vigoram e não deverão certamente desaparecer? Todo novo olhar tem algo estimulante desde que a  partitura e seu libreto, assim como o texto literário na dramaturgia, permaneçam inalterados. O espírito humano tem essa necessidade do descortino.

A arbitrariedade ocorre quando um intérprete transgride ao adicionar à partitura destinada a um instrumento arranjos ou improvisações, numa pretensa vontade de provocar a “atualização” de obra finda, geralmente consagrada. É um simulacro que, como tal, torna-se caricato. Ao mencionar a obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada por pianista de sucesso em países que mais cultuam a música erudita ou de concerto e, hélas, exaltado pela crítica, assevero que a integral para teclado de Rameau é uma das maiores contribuições da música em todos os tempos e as arbitrariedades do pianista, todas elas fora do contexto, são aquilo que, no post anterior, denominei um acinte.

Antolha-se-me que, na esfera erudita, seja em concerto ou em gravação, o sumário acréscimo em partitura finda desrespeita a criação. Contrariamente, na música contemporânea alguns compositores delegam ao intérprete a possibilidade de participar. Estou a me lembrar dos três “Estudos para Edu”, do ilustre compositor e teórico Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), a mim dedicados e nos quais expressamente o músico dava-me a liberdade de, durante a apresentação, improvisar trajetórias por ele escritas seguindo uma orientação cronométrica. As linhas retas que compõem o traçado e as sinalizações numéricas do autor determinam a orientação ao intérprete que, apesar da liberdade “criativa”, tem de se adequar às durações de tempo e a obediência da tessitura, entre outras indicações propostas por Koellreutter. Os três Estudos fazem parte da coletânea que idealizei em 1985 com término fixado em 2015 a abranger 30 anos do Estudo para piano nas fronteiras dos séculos XX-XXI. Recebi 85 Estudos de compositores de vários países. Apresentei os de Koellreutter no Festival Música Nova de 1991, em Santos e São Paulo.

No Youtube há vários exemplos de obras consagradas que são pervertidas através da introdução até de bateria com ritmos “alienígenas” em relação à criação original. Certamente ainda assistiremos à ascensão desmesurada do arbítrio nas artes. O notável compositor Camargo Guarnieri (1907-1993), ao ouvir a execução de uma sua obra para violoncelo, foi ao camarim e ouviu do intérprete palavras entusiasmadas, a dizer que alterara o final e indagando se ele apreciara. Após impropérios ditos pelo criador da composição, o violoncelista ainda ouviu “se quiser assim agir, vá compor”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “Danse Sacrée – Danse Profane” para harpa e orquestra de cordas, na versão para piano solo realizada pelo seu editor Jacques Durand (1865-1928), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6YnkC0idEgw

I have received numerous messages regarding the previous post. In this one, I address some aspects regarding transcription and arbitrariness, two distinct poles.