Navegando Posts em Cotidiano

Intervenção cirúrgica quando necessária

O estudo de piano necessita prolongados esforços.
Esses não implicam lutar contra a natureza.
Uma mão normal é feita para tocar piano
e todo pianista que não compartilha dessa convicção
é indigno de sua arte.
Marguerite Long
(“Le Piano”)

Há males que afligem o instrumentista e nos tempos atuais o digitador. Tratei desse tema em dois posts quando de duas cirurgias a que fui submetido nos polegares, a temida Rizartrose. O processo evolutivo até chegar à intervenção durou anos. Nas mãos de um cirurgião de ponta, Dr. Heitor Ulson, competente especialista de cirurgia da mão, essas intervenções que podem deixar sequelas transcorreram seguras e logo por mim esquecidas (vide blog “Cirurgia da mão – Rizartrose”, 09/10/2010).

Heitor Ulson, professor aposentado da UNICAMP, é primo irmão de minha mulher Regina. Em 1982, ao observar a básica não utilização da passagem do polegar na opera omnia para piano do grande compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915) e sabendo que o músico tivera problemas sérios em sua mão direita aos 18 anos de idade, transmiti ao médico minha hipótese, ou seja, que o mal que acometera sua mão direita obrigando-o a tratamento intenso poderia ser a causa da quase absoluta ausência da passagem do polegar nos longos segmentos em que essa flexão se tornava imperativa. Scriabine compensou essa ausência através de grande abertura das mãos, o que possibilitava o percurso total do teclado, por vezes, metaforicamente, à maneira de um caranguejo. Em artigo publicado nos “Cahiers Debussy” (“Quelques aspects comparatifs dans les langages de Debussy et Scriabine”, Paris, Centre de Documentation Claude Debussy, nouvelle série, nº 7, 1983), inseri posicionamento do Dr. Ulson que aventou a possibilidade de que Scriabine tivesse sido acometido de tendinite, conhecida como Mal de De Quervain, nome dado às propostas do médico suíço Fritz de Quervain (1868-1940) relativa à inflamação da bainha em torno dos tendões que controlam o movimento do polegar. Acredito que nenhum outro compositor que escreveu obras para piano e que permaneceu na história nesses dois últimos séculos escreveu abstendo-se de arpejos ou escalas percorrendo o teclado com a passagem necessária do polegar. O “diagnóstico” tardio no caso de Scriabine de uma possível tendinite de De Quervain sustentada pelo Dr. Ulson teve guarida nos meios musicais em França e na União Soviética.

Pela segunda vez submeto-me à cirurgia do denominado dedo em gatilho, bem mais simples do que aquelas reservadas à Rizartrose, sendo a primeira no final dos anos 1990. Dr. Ulson foi o cirurgião. Àquela altura, tão logo após os sintomas procurei-o e a cirurgia ocorreu logo a seguir.

Se busquei o Dr. Heitor Ulson já nos primeiros sintomas de um primeiro dedo em gatilho, o mesmo não ocorreu presentemente. Com a pandemia e o confinamento deu-se aquilo verificado em incontáveis casos de acometidos pelos mais diversos males que não buscaram visitar médicos ou hospitais. Os sintomas do dedo em gatilho no anelar da mão esquerda tiveram início em Março. A evolução foi lenta, sem trégua. Só entrei em contato com o Dr. Ulson em Outubro quando dores e a trava da articulação do anelar impediram-me da prática pianística. Nesse período final, o dedo em gatilho só voltava a ficar esticado com o auxílio da outra mão a trazer bem lentamente o dedo afetado à posição normal provisória, diga-se, para que a dor fosse menos intensa.

Solicitei ao Dr. Heitor Ulson um comentário sobre o dedo em gatilho e suas implicações. Gentilmente me enviou suas apreciações:

“Queixas dolorosas associadas a movimentos de flexo-extensão dos dedos são comuns, ocorrendo preferencialmente em grupos etários mais avançados, ou mesmo, em mais jovens, no geral relacionadas a esforços repetitivos ou em processos inflamatórios de fundo reumatológico. Esses bloqueios das articulações interfalangianas causam dor e o paciente refere incapacidade da ação de extensão ativa do dedo, necessitando da outra mão para abrir o mesmo, ocorrendo dor aguda a cada vez, em seguida da imediata extensão. Esses sintomas e sinais se assemelham ao clique repentino ao acionar-se um gatilho de arma, daí o termo ‘dedo em gatilho’ tirado da língua inglesa trigger finger. A história clínica, com duração de algumas semanas, fala em favor de tratamento incruento, por imobilizações temporárias, de órteses digitais dorsais, podendo ser associadas a infiltrações locais de anestésicos, com ou sem corticosteróides, aplicações de calor local, movimentação suave para prevenir-se rigidez articular, e precedidas de massagem de retorno venoso e linfático, em casos de edema importante.

O tratamento cirúrgico visa liberar o bloqueio dos tendões flexores que não conseguem deslizar dentro do canal ou túnel fibroso que se tornou ‘apertado’, pelo fenômeno inflamatório original (tenossinovite estenosante). No geral, a região tendinosa mais afetada é pela estenose da polia digital A1, correspondendo às pregas palmares distal e à digito-palmar.

O procedimento cirúrgico pode ser preferencialmente realizado sob anestesia local, com o paciente acordado para a demonstração clínico-cirúrgica imediata a pedido do cirurgião, da liberação completa da flexão-extensão do dedo, no caso, o anelar da mão esquerda”.

No pós-operatório o uso precoce dos dedos auxilia a rápida recuperação das funções que, nos casos crônicos, necessita de Terapia da Mão mais especializada para uso de órteses específicas complementares para a extensão da interfalangiana proximal”.

Para cada atividade motora moléstias podem advir. As várias modalidades esportivas apresentam males tipificados para determinada prática específica. Futebol, vôlei, basquete, tênis, entre tantas outras, têm males que se apresentam para cada categoria. Não é diferente em relação à prática pianística. Dedo em gatilho, Rizartrose, Mal de Dupuytren, Túnel do carpo, Mal de De Quervain, tendinites em suas várias manifestações, artrite reumatoide, artroses… podem ocorrer a depender das individualidades. Assim como Pelé que atravessou a fabulosa carreira sem um problema grave a atormentá-lo, muitos são os pianistas que chegaram à idade avançada sem um problema físico sequer.

Excelente o atendimento do Hospital Samaritano, local da cirurgia. A recuperação se faz. Após alguns dias já consegui estudar piano levemente e ao escrever este post volto à quase normalidade. E continuamos…

Owing to the pandemic, I have postponed a medical consultation about a progressive problem, the trigger finger. When it became almost impossible for me to flex the left-hand ring finger, due to a strong pain when stretching, I consulted the competent Dr. Heitor Ulson, who had already operated on my two thumbs for Rizarthrosis, ten years before. Dr. Ulson’s text explains the evolution of the disease and justifies the surgery, when necessary.

Quando referência ao passado se faz necessária

Os idosos gostam de dar bons preceitos,
para consolo de não mais estarem em condições de dar maus exemplos.
La Rochefoucauld (1613-1680)
(Les Maximes)

Foram muitas as mensagens. Todas saudando a sequência de blogs que se prolonga, sobremaneira durante esta pandemia, nos quais grandes intérpretes de antanho são justamente reverenciados. As colocações dos leitores têm de ser devidamente entendidas. Friso sempre sobre o acesso ao YouTube basicamente diminuto quando das interpretações dos grandes mestres do passado. Meus blogs visam prioritariamente salientar segmentos da cultura erudita, clássica e humanista, que presentemente respira ofegante frente a essa civilização do espetáculo a acentuar, sempre de maneira ascendente, vertentes culturais que sem serem populares numa acepção de raiz,  associam-se às correntes  que, ou sopram acima do equador ou aqui nascem, amplamente amparadas pela grande mídia. Admiro profundamente as manifestações culturais genuínas do povo, autênticas, sem máculas, pois tem-se fonte permanente de inspiração a tantos compositores, artistas plásticos, poetas e escritores que perduraram na história.

Assiste-se nessas últimas décadas a um conjunto de formas impactantes nas artes e na música mais acentuadamente.  O surgimento meteórico de um personagem vem acompanhado profusamente por associação de acessórios como efeitos de luzes, imagens, gestos improvisados, ritmos e tentativas de cantos, vestuário “criativo”, não apenas a descaracterizar ainda mais uma espécie de “mensagem musical”, mas possivelmente com outras finalidades. O eleito ídolo pela mídia e por legião de adeptos é seguido em seus cantos e imitado em seus gestuais. Consequência natural.

Chamou-me a atenção entrevista recente de uma cantora pop a uma colunista de veículo de grande circulação em São Paulo. Uma só frase colocada em destaque evidencia a compreensão distinta de valores e que certamente será assimilada como verdade pela legião seguidora da entrevistada, presente em várias áreas. Dizia ela que “o elitismo cultural é cafona”.

A banalização que tende a enroupar a decadência dos costumes e a acentuar a mutação constante do que é aceito no momento para padrões sempre mais ousados, tem tido por parte da mídia a guarida ampla. Fiquei a pensar no “conteúdo” da longa entrevista que revela pensamento a enfatizar distorção a causar impacto.

A palavra cafona a rotular a elite cultural tem como sinônimos, entre outros termos, brega e chinfrim e poderia ser interpretada ainda mais pejorativamente na entrevista, dependendo do próprio conceito de elite assim expresso no Caldas Aulete: “minoria mais apta, ou mais forte, dominante no grupo. (Usado no pl. tem sentido mais genérico e refere-se às minorias culturais políticas ou econômicas em cujas mãos está o governo do Estado)”. Parcela pequena da elite cultural professa o humanismo, as artes, a música erudita e a literatura. Mario Vargas Llosa define a atualidade como “civilização do espetáculo” e aponta para o declínio da cultura erudita.  O ideal seria que a cultura humanística permanecesse perene, divulgada e assimilada pelas várias camadas sociais e fosse preocupação dos detentores de decisões.

Parte considerável da grande mídia ao divulgar e debater temas como política, segurança, saúde, economia, esportes, mergulha em assuntos nada edificantes sobre a vida pessoal dos caracterizados “famosos”, inviabilizando por completo o crescimento cultural, moral e ético da população. Diminui a possibilidade de reflexão pelo excesso de banalidades e os textos sofríveis estão eivados de incorreções que no todo teriam tudo a ver com o valor do que é divulgado.

O desaparecimento da temática cultural, erudita ou clássica das páginas dos portais online empobrece o já minguado conhecimento existente dos valores do passado e do presente. Sem acesso à memória cultural artística pela falta de divulgação, as novas gerações acabam por desconhecer as obras referenciais nos campos das artes e da literatura. Esse desconectar torna quase sempre irreversível a recuperação do saber humanístico e artístico. Parte-se do imediato efêmero, logo transmutado em algo ainda mais superficial. Mesmo que determinadas manifestações e aparições congreguem milhões de adeptos nos múltiplos processos de ampla divulgação, certamente a existência do efêmero se extingue espontaneamente, pois substituído de imediato por outras manifestações à maneira de um tsunami avassalador que passa e destrói, no caso, sem intervalo de tempo.

Ficaria uma pergunta sobre a capacidade de uns poucos redatores diaristas voltados à cultura humanística proporem outras pautas que não a dessa “cultura” que se esvai com tanta rapidez. Teriam força diante dos seus superiores mediáticos, uma das categorias de elite, tantos deles sem a básica cultural humanística? É toda uma engrenagem que envolve poder e lucro. Os “valores” que estão diariamente sendo ventilados estão a despreparar as gerações futuras. Elos foram partidos e a junção dessa corrente antes coesa não é objetivo dos que estão envolvidos, sejam eles dirigentes ou redatores. É todo um conjunto de informações degradantes que homeopaticamente têm influência sobre a conduta humana, pois conhecimentos sedimentados e edificantes estão sendo destruídos. Pareceria que se está a viver na plenitude conceito antigo de que batalhas podem ser ganhas, mas que a guerra estaria definitivamente perdida. Parafraseando o poeta Luiz Guimarães Junior (1844-1898): “Resistir quem há-de?” Uns poucos certamente.

A certain statement, during a widely publicized interview, motivated reflections on the absolute reversal of values and consequent disdain for elitist, erudite or classical culture in the present civilization of spectacle, which increasingly aims towards the ephemeral and the seduction of the masses.

 

O futebolista absoluto

As pessoas tentam encontrar um novo Pelé, mas isso não pode ser.
Como na música, em que só existe um Frank Sinatra e um Beethoven,
ou nas artes, um único Michelangelo, no futebol só há um Pelé.

Se eu pudesse me chamaria Edson Arantes do Nascimento Bola.
Seria a única maneira de agradecer o que ela fez por mim…
Pelé

Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, completou 80 anos no dia 23 de Outubro, sexta-feira. Já estava com meu blog programado para aquele dia e guardei para o presente sábado a homenagem ao maior atleta de todos os tempos.

Fui pouquíssimas vezes assistir a um jogo de futebol. Dessas presenças, ver in loco a atuação de Pelé representava o prazer maior, mesmo quando jogava contra a minha saudosa Portuguesa de Desportos que, mercê de gestões medíocres, desapareceria das competições relevantes.

Já àquela altura dos anos 1960, Pelé era festejado como o astro maior do futebol mundial. Estar presente e vê-lo jogar, possibilitava a compreensão da arte autêntica do esporte bretão. Não era apenas assistir ao ato final e primordial de uma partida, o gol, consequência que majoritariamente tinha na ação de Pelé a magia que leva ao maravilhamento.

Pelé, não apenas foi considerado a atleta do século pelos seus feitos futebolísticos, mas também o atleta maior da história se consideramos todos os esportes existentes. Suas marcas são imbatíveis, 1281 gols em 1363 jogos, tricampeão mundial (1958-1962 e 1970), bicampeão mundial interclubes. Ao marcar o milésimo gol (19/11/1969) houve comoção nacional. A transmissão impecável de meu dileto amigo Flávio Araújo fixaria aqueles momentos mágicos. A esses recordes alcançados temos ainda 92 hat-tricks, quando um jogador marca três gols numa mesma partida.

https://www.youtube.com/watch?v=tJnB7q-6vMU

Na juventude fui um apaixonado pelo futebol jogado no Brasil, mormente quando Pelé e seu companheiro Coutinho – futebolista com raro faro de gol -, sempre assistido pelos passes milimétricos do grande mestre, encantavam multidões. O passar das décadas revelaria a decadência progressiva do futebol praticado por times brasileiros e os melhores jogadores precocemente atravessam o Atlântico em busca de reconhecimento e ganhos maiores. Presentemente assisto a determinados bons jogos de campeonatos europeus, não mais vendo partidas de nossos campeonatos.

Se admirei Ademir da Guia, Maradona e hoje Cristiano Ronaldo e Messi, pela inteligência e qualidade no trato da bola, todos ficam a dever se comparados a Pelé. Se no atletismo tivemos Carl Lewis e suas proezas como maior atleta olímpico do século XX, surgiria Usain Bolt como o mais veloz do planeta e tudo indica que outros virão com novos recordes. Isso acontece nas provas de atletismo e de natação, assim como nos esportes coletivos como basquete e vôlei como exemplos. Especialistas concordam que os recordes de Pelé jamais serão batidos. Essa constatação sedimenta a quase absoluta unanimidade em torno de seu nome.

No final da década de 1990, o ilustre musicólogo Régis Duprat me convidou para uma visita ao estúdio de gravação de seu filho Ruriá. Aquiesci com prazer e lá encontrei Pelé a finalizar uma sua gravação, pois gostava de cantar acompanhado ao som de um violão. Foi realmente uma emoção muito grande estar frente a frente ao ídolo de sempre. Extremamente atencioso, ouviu pacientemente meus elogios ao seu incomensurável talento. As duas fotos revelam momentos desse encontro. Ofereci-lhe um CD e ele autografou vários folders com os nomes de três das minhas netas àquela altura, pois mais duas viriam.

Em entrevista que ouvi anos atrás, Pelé afirmava que há duas entidades distintas, Edson Arantes do Nascimento e Pelé. Falava como Edson, figura passível de críticas como todo ser humano, mas tinha absoluta consciência da genialidade do jogador Pelé, personagem que acalenta sempre com respeito e carinho.

Neste post rendo minhas homenagens ao insuperável Pelé que alegrou o planeta com sua arte futebolística. Grandes jogadores surgiram antes e depois dele, alguns demiurgos, mas todos, sem exceção, não atingiram a arte que Pelé desfilou pelo mundo.

On October 23rd, Pelé turned 80. He was the greatest player in the history of soccer and certainly the greatest athlete in history, because his records are impossible to be broken. I followed with admiration all his trajectory and, decades after ending his career, I had the privilege to meet him.