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O olhar do observador frente às manifestações de arte no Japão

Vai, portanto, o escritor, o poeta marinheiro,
com sua acuidade sentimental, sua excepcional sensibilidade,
seu temperamento de artista refinado,
o senso do típico e do pitoresco e, com a sinceridade que lhe é inerente,
traduzindo em páginas-retratos suas impressões
– verdadeiros instantâneos – de todo aquele mundo colorido,
lírico e heroico, ressumante de exótico saber.
Jorge Fonseca Júnior (1912-1985)
(“Wenceslau de Moraes e outras evocações”, 1980)

Neste segundo post a respeito de Dai-Nippon (Grande Japão), do escritor português Wenceslau de Moraes, abordarei as artes sob a observação arguta do autor. A diversidade artística japonesa não está em um capítulo especial. Moraes a dilui paulatinamente, fato que testemunha o apreço constante e amoroso. À medida que o contexto provoca a atenção acurada, a arte é louvada.

Fidelino de Figueiredo enumera da miniatura à grandiosidade, “cujo louvor em todos os tons é um ritornelo constante nos livros de Moraes, e a cerâmica, a porcelana, o cloisonné ou bronze porcelana, os metais, a arquitetura hidráulica, o lar japonês, modelo de ordem, de asseio, de galanteria nas suas leves paredezinhas de papel, tudo visto numa disposição de benevolência afetuosa, único preconceito da alma do nosso cicerone”.

Wenceslau de Moraes não pasteuriza a arte em conceitos estanques; antes, entende as particularidades de cada uma das manifestações. Inexiste a visão do turista, mas a do europeu que se radica no Japão e se amalgama com o que é pertinente às tradições locais. A natural inclinação de Moraes do todo ao pormenor, captando do gigantismo à essência do multum in mínimo, fá-lo entender os resultados da arte nipônica, sempre com um prazer invulgar.

Sobre a pintura, Moraes observa: “Bem o sabeis; a mãe da arte é a pintura; falar da pintura é falar de todas as artes. Havemos, pois, de falar da pintura. Mas antes, visto que não temos pressa, discorramos um pouco sobre os órgãos do artista que mais particularmente se interessam na criação de um objeto, seja um desenho, seja um bronze, seja uma porcelana, seja o que for, isto é, o olho e a mão, o olho que vê e a mão que executa”. Encanta-o a visualização, fruto do culto ao belo que a natureza oferece. Comenta: “Mas o dom assombrosamente predominante desse olhar nipônico, quando se trate da arte, e por ela sobejamente confirmado, é uma qualidade afetiva extrema, inconsciente porventura, pelos encantos da natureza, por tudo que é visível e belo, por todas as concordâncias da cor, da luz, da forma”. A História da arte renderia tributo através do tempo aos pintores Utamaro (1753-1806), Hokusai (1760-1849), Hiroshige (1797-1858), entre outros. Quanto a Katsushika Hokusai, estende-se, e o pormenoriza em precisas observações “…foi um idólatra, tendo na natureza o seu feitiço; e estudou, com o tenaz fervor de um iluminado, as mil e uma formas da verdade, todas as delícias da cor, todos os segredos da vida”. Saliente-se que a influência das estampas japonesas foi notória no impressionismo em França. Claude Debussy (1862-1918) se inspiraria na gravura “A grande onda”, de Hokusai, para o seu tríptico sinfônico “La Mer” e mantinha gravura de Utamaro emoldurada. Em “Poissons d’or”, terceira peça do segundo caderno de Images, o compositor teria como inspiração uma laca japonesa.

Em período efervescente das artes e da literatura em França, causaria admiração o traço único, sem falha, preciso, irremovível, a inexistir espaço para retoque nas criações das gravuras japonesas. Wenceslau de Moraes capta a essência da pintura nipônica. Sua interpretação, habituada anteriormente às pinturas ocidentais, se extasia frente à precisão oriental e às mensagens transmitidas. Eliminado o supérfluo, permanece esse traço que capta o instante do acontecido e a autenticidade do tema em pauta. Escreve: “Uma pintura japonesa é sempre uma invocação. Adivinha-se o trabalho do pincel, não se esforçando em reproduzir a natureza, não em ser criador, mas em traduzir a impressão persistente que nos fica do espetáculo da mesma natureza. Eu me explico melhor, exemplificando: o pincel nipônico não conhece a veleidade de criar uma rosa, o que só pode, bem pensado, fazer o Pai do Céu; prescinde de modelo, fá-la de cor; quando a traça não se preocupa em enganar as abelhas que venham esvoaçar sobre o papel em busca de mel para o seu cortiço; preocupa-se apenas com a flor, no que dela persiste mais intenso na reminiscência, pelos seus atributos dominantes; é como se dissesse que aquele pincel inteligente não pinta, pensa e recorda”.

Admira o kakemono, arte pintada ou caligrafada em longas tiras de seda, cetim ou papel, presentes nas moradas das várias classes sociais. Conservadas em rolos, amiúde são estiradas quando da visita de familiares e amigos, ornando os ambientes desprovidos de excessos. Moraes observa: “Não escapa à observação do amador a íntima preocupação de realces, de harmonias que existem entre o desenho e o mimo de coloração do tecido; há nessa coloração como que um misterioso estímulo do sentimento, predispondo para a melhor compreensão do assunto”.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Algo sutil e profundo”, a partir de poema de M.Miyamoto, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=tRgb1y0sStg

Moraes tem posições de interesse sobre a porcelana nipônica, historiando-a e, após, enaltecendo-a, apesar de críticas à industrialização. Considera que, apesar de os processos fabris terem origem na China, os japoneses se serviram da livre fantasia. Enfatiza pormenores dessa arte que “encanta pela gentileza das formas, pelo mimo nos desenhos, pelo brilho nos esmaltes. Na jarra, no vaso, na garrafa, no perfumador, no boião, o mais saltante enlevo está na doçura sugestiva das curvas, na geometria amorosa do nu, inédita, que parece inspirar-se na gracilidade suave de um braço, ou na redondeza túmida de um seio, ou na amplidão serpentina de um quadril. Depois vem a ingenuidade bucólica do desenho, nas florinhas que estrelam os fundos, nos insetos e nas aves que voejam, nos longes cariciosos da paisagem. Depois ainda é a harmonia inimitável das tintas e dos ouros, das cores inefáveis, banhadas na frescura eterna dos esmaltes”. A influência da louça japonesa na Europa não é esquecida pela pena moraesiana e, após mencionar as fábricas de Delft, na Holanda, e a produção em Saxe e Chantilly, comenta: “Estais julgando: é a moderna louça luxuosa da Europa devendo tudo ao Japão”.

Moraes enaltece as olarias japonesas, que datam dos primeiros séculos da era cristã. Escreve: “Acima da porcelana em méritos, como arte nacional, está a olaria japonesa. É neste ramo da cerâmica, no trabalho paciente das argilas, que o sentimento e a viva originalidade indígena atingem um primor adorável”. Após considerar a alta feição artística da faiança japonesa  “…profundamente nacional, mais ornamental que utilitária, amorosa da natureza, das formas animais, por vezes humorística e que é representada principalmente pelas inúmeras formas da estatueta, do boião de perfumes, da caixa de remédios, do perfumador, da floreira. Compreende-se efetivamente o que possa dar essa argila pastosa, obediente a todos os contatos, quando sujeita às mãos habilidosas, mais ligeiras, mais artísticas que se conhecem”.

Wenceslau de Moraes discorre sobre materiais como o bronze e a madeira, do grandioso à miniatura, dos Budas gigantes aos netsukês de madeira ou marfim. Impressiona-o o culto às imensas esculturas em bronze de Buda, os Daibutsus de Nara e de Kamakura.

Sobre o teatro, Moraes está atento: “O teatro japonês cultiva um naturalismo estranho, minucioso nos ínfimos detalhes, por vezes duma perfeição inconcebível. Não é o enredo, o mistério sentimental do drama que procura interessar o espectador; é o jogo físico, mecânico, que sugestiona a vista, e assim encaminha por indução o espírito a um grau de sentimentalidade individual e vaga, que borboleteia certamente em cada um em mil divagações, de que cada um se constitui o exclusivo auto; um surdo poderá compreender o drama, um cego, nunca”. Os Teatros Nô e Kabuki estão entre os mais renomados.

Ao comentar os cultos xintoísta e budista, Moraes escreve: “Insinua-se fortuitamente no Japão, pelo século VI da era cristã, a crença budista trazida da Coreia”. Acrescenta: “Os dogmas dos dois cultos acomodam-se, contemporizam-se de parte a parte”. Entre os deuses familiares está “Benten, a deusa das artes e da beleza, representada como uma formosa cortesã dedilhando numa espécie de guitarra indígena, o biwa”.  A gravura de Hônen Metamorfose da Lua não estaria a render culto a Tsukiyomi-no-Mikoto, o deus lua, um dos deuses da crença xintoísta?

Moraes não deixa de pontuar alguns instrumentos musicais, estes sob os dedos etéreos das gueixas: “Os instrumentos indígenas, onde pousa a alvura das mãos das gueixas, são o shamisen, o koto, o biwa, outros ainda lembrando a guitarra. O bandolim, a harpa; instrumentos de corda, adaptando-se assim obedientemente à intenção, ao vago, ao incompleto da trova, dos cantares”. A imaginação moraesiana viaja ao som instrumental e das vozes: “As cordas que gemem em trêmulos, soltam exclamações súbitas, acompanhando a voz em melancolias arrastadas; é a música da vida, o ramalhar das árvores, o sussurro das águas, o ciclo dos insetos e dos pássaros , o grito insólito do corvo cortando o espaço; por sugestão, adivinha-se nela o eterno enlevo dos sexos, a curva dardejante das borboletas brancas perseguindo-se sem se alcançarem, todos os dramas da simpatia e do desejo, da alma e dos sentidos, que constituem a lei da existência universal”.

Quanto à arte singela das moradas japonesas, Moraes as compara às “habitações dos chamados povos cultos nas civilizações ocidentais”. Nessa visão, compara o luxo das moradas europeias plenas de móveis e objetos, com a casa japonesa: “Para o lar japonês, entra-se deixando à porta os sapatos, como para um místico santuário; não procureis a sala, que não existe; o lar é da família e dos amigos íntimos; todos os aposentos são iguais, sem mobília, sem ornamentações, com a simples esteira de repouso sobre a qual os corpos se entendem em grupos afetuosos, bebendo chá, fumando, palestrando, espraiando o olhar pelos caprichos do jardim, pela paisagem distante: maciços verdes de arvoredo, lombadas flexuosas de colinas, espumas de cascatas, azuis serenos do céu e de águas que são, afinal, a portentosa ornamentação da casa japonesa”. Essa comparação com moradas ocidentais não evidenciaria o âmago do despojamento ao qual Wenceslau se propôs nessa japonização voluntária?

Não sendo possível abordar em dois posts, com o espaço a que  me proponho semanalmente, toda a riqueza de Dai-Nippon, que permeia uma multiplicidade de temas através de um olhar agudo e de um pensar privilegiado, recomendaria ao leitor que deseje saber mais sobre o escritor buscar preciosa bibliografia portuguesa, mas também brasileira, assim como as obras de Wenceslau de Moraes elencadas no post anterior.

Clique para ouvir de Tsuna Iwami, “Idade Madura”, a partir de poema de M.Miwa, na interpretação de J.E.M.:

(62) Tsuna Iwami – Maturity – José Eduardo Martins – piano – YouTube

In this second post about Wenceslau de Moraes’ “Dai-Nippon”, I focus on the artistic manifestations he has punctuated. The evidence of a voluntary and loving japanization is clear in Moraes, who gives Western readers a fascinating glimpse into old Japanese culture not with a tourist’s view, but that of the European who settles in Japan and adopts the local traditions.

A niponização de ilustre figura literária portuguesa

O Dai-Nippon é a explicação interpretativa
do que há de mais específico e diferencial na vida japonesa,
feita com um critério japonês,
que o admirável escritor não teve de compor laboriosamente,
por via didática,
mas que brotou espontâneo da sua simpatia amorosa
e do seu desapego do ocidentalismo.
Fidelino de Figueiredo

Em edição brasileira, publicado durante as comemorações dos 450 anos da chegada dos portugueses ao Japão (1543-1993), Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes (Rio de Janeiro, Nórdica), teve justa homenagem da comunidade portuguesa, com o apoio cultural da Academia Lusíada de Ciência, Letras e Artes (da qual fui integrante) e da Aliança Cultural Brasil-Japão. Àquela altura, ofereci recital de piano na Casa de Portugal, privilegiando obras de compositores dos três países como um dos eventos da Exposição Wenceslau de Moraes, realizada entre Novembro e Dezembro de 1993 naquela tradicional Casa.

A leitura de “Dai-Nippon” fascinou-me àquela altura, inclusive pela apresentação, o ensaio magnífico de Fidelino de Figueiredo (1888-1967), notável homem público, professor, historiador e crítico literário português. Sob o título “O homem que vendeu a sua alma”, o ensaio foi publicado em 1925 no volume “Torre de Babel”.

Recentemente, uma amiga falou-me de Wenceslau de Moraes e mostrou interesse em conhecr “Dai-Nippon”. Essa chamada fez-me reler o livro, 480 anos após o desembarque português no Japão, e a impressão durante a revisitação apenas ficou ratificada e acrescida.

Considere-se que os portugueses foram os primeiros ocidentais a aportar no Japão aos 23 de Setembro de 1543. Fernão Mendes Pinto (1509-1583), aventureiro, mercador, explorador, missionário jesuíta, apesar de lá não estar nessa data, durante vinte e um anos desembarcou em terras do Oriente, e foi o autor da célebre Peregrinação, “primeira obra do japonismo literário”, segundo Fidelino de Figueiredo. Escrita tardiamente, de memória, tantas vezes sem quaisquer apontamentos, há que se perdoar equívocos, dadas as circunstâncias. Mencioná-lo se faz necessário, mormente pelo fato de que, séculos após, Wenceslau de Moraes cultuará de maneira plena o japonismo e se lembrará do autor de Peregrinação em Dai-Nippon.

Wenceslau de Moraes foi uma figura singular que, após a formação junto à Escola Naval, esteve a serviço da Marinha de Guerra Portuguesa, período em que foram várias as suas atuações de Moçambique ao Timor, Japão, Macau. Nesta cidade foi professor no Liceu e se casou com uma chinesa, Vong-lo-Chan, com quem teria dois filhos. É nomeado cônsul em Kobe em 1898, deixando esposa e filhos em Macau. As duas japonesas com viveria sucessivamente, Ó-Yoné Fukumoto e Ko-Haru, tia e sobrinha, morrem adoecidas, o que o levou à depressão. No Japão, a sua atividade literária se intensifica e, como correspondente no Exterior para diversos periódicos, delineia lentamente sua visão como arguto observador de aspectos essenciais do país, sendo que os seus relatos, mormente quando em Tokushima, seriam bem difundidos em Portugal. Com o passar dos anos, Wenceslau de Moraes sofre transformações e se japoniza. Pratica os costumes do Japão e traja-se à maneira dos habitantes locais. Faleceu em Tokushima aos 75 anos. Monumento em Tokushima e em Kobe homenageiam o escritor. Entre suas obras, salientemos: Traços do Extremo Oriente (1895), Cartas do Japão (1904), O culto do chá (1905), Fernão Mendes Pinto no Japão (1920), Ó-Yoné e Ko-Haru (1923), Os serões no Japão (1926).

Daí-Nippon é obra referencial. Após abordar sucintamente a história do Japão com o olhar de um europeu, Moraes penetra no âmago das culturas do país a descreve com admiração temas relevantes, entre estes as artes em suas modalidades, costumes, afetos, arquitetura religiosa, as moradias típicas e a economia do mobiliário, as tradições enraizadas desde tempos imemoriais, as armas e o sabre perene nas lutas marciais, a mulher japonesa — essa figura feminina delicada e gentil, inúmeras vezes exaltada em sensual poética —, o chá como elo nas relações, a morte entendida sem luto.

Após aportar inúmeras vezes em terras do Ocidente e Oriente, será no Japão que encontrará a sua tebaida. A escolha pelo país, voluntária, definitiva, acentua ainda mais a determinação de mudança em direção à japonização, e o olhar do observador ao longo dos anos saberia interpretar até pormenores que os habitantes locais, imersos em suas rotinas, porventura minimizavam. Há convicção plena em suas narrativas autobiográficas.

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami (1923-2012), “O Mar”, a partir de poema de M. Miwa, na interpretação de J.E.M. (gravação em long play – 1979). :

https://www.youtube.com/watch?v=PK2qMzhu7IU

Creio necessário inserir alguns parágrafos basilares de Dai-Nippon, pois se houve, mormente após Hiroshima e Nagasaki, transformações em muitas áreas elencadas acima, outras tantas preservam tradições milenares. Há que se entender as observações de Wenceslau de Moraes sobre o Japão e seus costumes como escritas por um ocidental que, absorvendo o japonismo por inteiro, não deixou de tantas vezes, mesmo inconscientemente, inclinar-se à irresistível comparação entre duas culturas tão diferentes. É cônscio de que da estada dos portugueses pelo Japão, que se estende até meados do século XVII, “pouco ficou, mas ainda o bastante para assinalar até hoje a sua intensa influência momentânea. De monumentos, uma ou duas pontes de tosca alvenaria, galgando pela ribeira que serpeia por Nagasaki. De crenças, uma mística flor de cristianismo, que todas as matanças não lograram fazer murchar inteiramente e que, dois séculos depois, foi revelada numa tribo fiel de gente humilde, vivendo às ocultas na comunhão da mesma fé, ensinada pelos missionários aos trisavós. Na linguagem ficou uma multidão de palavras portuguesas, hoje inteiramente nacionalizadas; imagine-se a agradável surpresa de um português quando escuta esses vocábulos patrícios, proferidos tão longe da sua terra”. São muitos. A título exemplificativo, mencionemos os termos tabaco, bidro (vidro), copocatana (espada), conpeito (confeito), pan (pão), arigatô (obrigado), biôbu (biombo)…

Curiosamente, em Dai-Nippon o autor escreve que o japonês não cria, mas imita à perfeição, comentando que, da decadência da “maravilhosa originalidade artística deste povo, resulta por outro lado a noção profunda do seu intensíssimo dom imitativo, adaptador, dom que já hoje faz arrecear seriamente a egoísta Europa, diagnosticando-lhe não sei que futuro de lutas de competência, de arrojos pertinazes, de gente que muito quer e muito pode”. Após a Segunda Grande Guerra, o Japão derrotado, a criação do denominado Plano Colombo visou ratificar a influência dos Estados Unidos nos países que sofreram os efeitos da Guerra em países asiáticos, possibilitando investimentos na nação japonesa. Estou a me lembrar de que, na adolescência e juventude, nos primeiros lustros da segunda metade do século XX, era comum falar-se pejorativamente da imitação dos produtos ocidentais replicados no Japão. As décadas vindouras provaram a incrível recuperação do país e a inovação em tantas áreas. Hoje, o Japão integra o G7, grupo composto pelos países mais industrializados e com índices altos de desenvolvimento humano. É pois de interesse uma observação que Wenceslau de Moraes faz àquela altura: “No entretanto, o operário europeu envolve-se nas grandes lutas sociais, afrouxa no trabalho, estorce-se de miséria sobre a enxerga do lôbrego casebre, e em filhos inúteis prolifera… Não virá também um dia, longe sem dúvida, para a indústria nipônica bater-nos à porta, mais barata e mais perfeita do que a nossa? Ai, Inglaterra!”.

Reiteradas vezes Wenceslau de Moraes escreve sobre a mulher japonesa. Tem por ela admiração em quaisquer condições. Estende-se sobre a figura feminina. Busca desvendar seus mistérios. Mussumês, gueixas, anmas (massagistas cegas) são observadas em seus gestuais, seus passos delicados e em seus dramas (no caso, aquelas que vivem no bairro de prazeres mundanos em Yoshiwara).

No próximo post abordarei temas relacionados às artes em suas várias modalidades e ao culto às imagens de Budas gigantescos.

“Dai-Nippon (Great Japan) is a singular book and its author, Wenceslau de Moraes, a Portuguese writer and journalist, ended up adopting the country of the Rising Sun, becoming almost completely Japanese and dying there.

 

Um notável músico-pensador argentino

Por que insistir em afirmar que um artista se sacrifica pelo seu ideal:
seria mais razoável considerar que é o ideal que o sacrifica.
Ou, mais uma vez, pode-se supor que, se há sacrifício,
é sempre em nome de uma vocação,
o que diminui a martirologia dos sacrificados.

A verdadeira maturidade só começa
quando o homem toma consciência efetiva da sua própria solidão.

Juan Carlos Paz
(“Memorias I”)

Um dos prazeres do leitor é regressar a um livro décadas após a leitura. Meu dileto amigo, arquiteto António Menéres, após sólida carreira em Portugal, deixou impressões em seu livro autobiográfico “Crônicas contra o esquecimento” (vide blog: 29/07/2007). Como define bem o apreço que adquirimos pela obra impressa! Escreve Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”. Deu-se o mesmo ao ver a lombada de um livro numa estante bem alta, subir a escada metálica e voltar a visitá-lo quase cinquenta anos após!  Ratifica a apreensão que se tem hoje dos livros online, assim como do já quase sepultamento dos CDs. Perde-se o contato físico e dificilmente há o retorno àquilo que jaz nos arquivos “voláteis”. Dir-se-ia que uma névoa está a se tornar cada vez mais densa, a nos separar daquilo que denominávamos biblioteca individual. Quanto às públicas, tantas delas extraordinárias, poderão brevemente ter o nome substituído pelos termos “Museu dos Livros”. Um dos meus amigos só frequenta literatura pelo tablet. À minha pergunta se saberia apontar alguns dos livros assimilados, respondeu-me que não saberia. Os tempos atuais apagarão a memória “física”? Temo pela fatalidade.

“Alturas, tensiones, ataques, intensidades. (Memorias I)”, de Juan Carlos Paz (Buenos Aires, De La Flor, 1972), possivelmente jamais teria retornado para uma nova leitura não fosse a sua presença silenciosa na mais elevada estante. O debruçar atual apenas se adequou perfeitamente aos nossos dias, mercê também do perfil do compositor, teórico e pensador argentino.  Não há defasagem no seu pensar que surge já nas primeiras décadas do século XX e se desenvolve com coerência até pouco antes de sua morte em 1972. O pensamento do autor é atualíssimo e fica patente que há um recrudescimento quanto aos aspectos preocupantes elencados por Paz, a evidenciar sua extraordinária visão atemporal.

Após estudos em Buenos Aires, Juan Carlos Paz aperfeiçoou-se em Paris na Schola Cantorum, sob a didática de Vincent d’Indy. Foi um dos fundadores do “Grupo Renovación” (1929) e em 1936 funda os célebres “Conciertos de la Nueva Música”. Paz foi talvez o mais influente incentivador da música contemporânea na Argentina, sendo o introdutor da técnica dos doze sons estabelecida por Arnold Schoenberg, técnica por Paz abandonada em detrimento de uma linguagem mais experimental, diferentemente do compositor francês Serge Nigg (1924-2008), que foi o primeiro a compor obra dodecafônica em França, rejeitando-a poucos anos após a favor de criações mais tradicionais (vide: “Serge Nigg – Captar o passado, Apreender o presente, Pressentir o futuro”, 04/03/2011). Apesar de não ter composto muito, a produção de Juan Carlos Paz tem interesse. Deter-me-ei nos aspectos que não envolvem a técnica composicional, temática pertencente a um outro fórum que não este dos posts semanais com destinação mais eclética.

Clique para ouvir de Juan Carlos Paz, “Ritmica Ostinata”:

(541) Juan Carlos Paz – Ritmica Ostinata – YouTube

No livro em apreço tem-se basicamente o pensamento multicultural do compositor. Técnica de composição, tradição e vanguarda, sociedade, repertório, recepção pública, arguto senso crítico a respeito do estágio da música no século XX. Inseridas no livro, reflexões múltiplas sobre o cotidiano observado com agudeza. Nada é despiciendo em sua avaliação. Anota e transcreve, por vezes é anedótico quando o olhar e a mente captam um momento transformado em frase jocosa. Um aspecto fulcral do pensamento de Juan Carlos Paz é a coerência argumentativa, seja na avaliação a mais aprofundada, como no supérfluo tratado com humor ou desalento.

Muito do pensar do autor causou-me forte impressão àquela altura, ratificando-se no presente sob outra percepção, basicamente mercê dos acúmulos após tantas décadas. No post apresento segmentos do raciocínio de Paz relativos às várias áreas frequentadas pelo compositor e teórico.

No prólogo já alerta: “A realização deste livro me divertiu, em parte e menos divertidamente, diria, motivado pelas limitações facilmente comprovadas; todavia decidi publicá-lo, não para que aqueles que o lerem aprendam a corrigir seus erros às custas dos meus, segundo a hipócrita atitude ou conselho mais ou menos velado dos autores de memórias, diários, confissões, mas para que os cometam melhor do que eu, em forma mais atrativa, intensa e divertida, se ao menos puderem”.

Sobre o ato de compor: “Para quem escrevo música, poderia alguma vez questionar-me. Afirmaria que escrevo para mim; para quem, francamente, não sei nem pensei; pois é tal a quantidade de música que se escreve, – à qual agregamos a nossa – que caberia a pergunta, à parte os porquês e para quem, simplesmente o quando e o porquê”.

Após mencionar a célebre frase de Buffon (1707-1788), Le style c’est l’homme, enumera uma quantidade expressiva de grandes compositores do passado notabilizados pelos seus estilos definidos, precisando que os que os sucederam formaram escolas e foram meros teóricos. Essa postura crítica se estende por uma série de reflexões em que condena o establishment que faz proliferar epígonos, tantos deles sem talento.

Paz considerava Moussorgsky (1839-1881) o virtual precursor do expressionismo sonoro e acrescenta: “… personifica o mais incongruente e extraordinário desafio do instinto criador contra toda retórica racionalizada na organização sonora”.

Sobre a forma musical, Paz tece considerações sobre a relação intrínseca com o de profundis de um compositor: “A música deve significar uma coincidência da investigação formal com a experiência interna do compositor; é algo que se sabe, apesar de bem esquecido por razões de tática. A grande lição de Beethoven e dos românticos em geral, e de Schönberg e Debussy em particular, consiste em demonstrar que a forma não é um molde confortável, senão a consequência externa de um processo interno”. A posição do autor não se aplicaria também à literatura, à poesia e às artes em geral?

Paz é bastante ácido com os musicólogos e os críticos: “Os musicólogos são os seres mais desprovidos de musicalidade que eu conheci. Não sentem nem entendem a música, considerando-a obstinadamente como uma vertente da arqueologia”. Ao considerar a crítica, mencionando várias áreas – literatura, música, teatro, artes plásticas – e estendendo sua posição também aos teóricos de arte, de ideologias e de religiões, comenta: “sua sabedoria se baseia unicamente na nossa ignorância, nossa benevolência e nossa credulidade”.

Quanto à repetição repertorial realizada pela grande maioria dos intérpretes, Juan Carlos Paz mostra-se crítico mordaz: “… a música é algo que rigorosamente não conta, não interessa nem ao virtuose-monstro, insensibilizado por força de repetição constante das mesmas obras, nem ao público, que só deseja ouvir mais uma vez. A indústria do concerto! Esses virtuoses são como máquinas que engolem moedas. Você deposita uma no espaço a ela reservado e imediatamente a máquina agradece enviando-lhe uma torrente de música: você paga a entrada do recital e o virtuose o recompensa fazendo-o ouvir pela milésima vez ‘a’ Polonaise de Chopin, ‘a’ Sonata ao Luar de Beethoven, La Campanella de Liszt ou a Pavane de Ravel, todo um intercâmbio de duas desconsoladoras rotinas. Resultado positivo: negócios para empresários. Nada mais”.

Ao comentar a mutação interpretativa através dos tempos, Paz polemiza sobre tema que nunca teve consenso. Observa: “O teatro, a música e a dança são as mais evasivas e menos fiéis, entre todas as artes, aos desejos e às finalidades de seus criadores. Suas limitações quanto a essa particularidade consistem em que, para se expressar junto ao público, necessitam do intérprete – ator, diretor, executante, cantor, dançarino -, na realidade deformadores das aspirações do autor, em maior ou menor dimensão”.

Após discorrer sobre a mentalidade de dois intérpretes que podem ter ideias diversas sobre uma determinada obra, Paz se questiona sobre a interpretação fiel. “Sabemos por acaso como Beethoven, Berlioz, Schumann, Chopin e Liszt exigiam a interpretação adequada? Constata-se pois que, não sendo desejável a versão arqueológica à base da interpretação fidedigna, que na realidade nada dela sabemos, só nos resta, para a música, o teatro e a dança, a versão perpetuamente mutante, recriada, modificada, metamorfoseada segundo o temperamento, a cultura, as afinidades ou preferências, e até a saturação do intérprete em determinado período de sua evolução ou da circunstância em que atua”.

Em vários artigos publicados no Brasil e no Exterior sobre as composições de Johann Kuhnau (1660-1722), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e Carlos Seixas (1704-1742), originalmente escritas para cravo e que gravei ao piano para o selo belga De Rode Pomp, observei que o silêncio de mais de um século das interpretações ao cravo faz entender que nada sabemos sobre as execuções dessa música no instrumento original, mas que a escuta, nessa relação professor-aluno, foi a responsável pela interpretação ao piano dessa imensa produção durante o longo período silencioso do cravo. Nenhum dos grandes compositores do vasto período romântico no século XIX compôs para cravo. A oralidade professoral foi fator decisivo para que a tradição da criação para o instrumento, que imperou basicamente nos séculos XVII e XVIII, não se perdesse quando interpretada ao piano.

A respeito da ópera, escreve: “Para mim, a ópera ideal seria aquela em que os cantores, em determinado instante da ação, se esquecessem de atuar”. Tradução: J.E.M.

Quantos não foram os autores que escreveram memórias? Há aquelas que se perdem nas profundezas da arqueologia social e outras que impressionam e anteveem o futuro, pois não envelhecem. Visitá-las torna-se uma possibilidade de entendermos os fracassos e os acertos da trama social e da cultura como um todo. Nessa visão, Juan Carlos Paz mostra-se um profeta após tantas décadas decorridas.

Juan Carlos Paz, Argentine composer, theorist and thinker, has been the introducer of dodecaphonism in his country. In his book of memoirs, he explores the most varied topics on music, literature, art and history, not failing to be humorous when everyday life makes an impression on him.