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O jurista Ives Gandra da Silva Martins frente aos aforismos

O caráter das grandes mentes
leva à compreensão de muitas coisas em poucas palavras,
enquanto que mentes pequenas, pelo contrário,
têm o dom de falar muito e não dizer nada.

La Rochefoucauld (1613-1680)
(“Les Maximes”)

759 – Quando um governo é totalmente corrupto,
o governante não pode alegar desconhecimento.
Não há quadrilha sem chefe.

949 – O professor que procura impor suas convicções próprias
e as ideológicas, em conflito com os valores morais familiares
aceitos pela maioria da sociedade,
não é professor, mas apenas um agente político.

Ives Gandra da Silva Martins
(“Reflexões sobre a vida”)

O acúmulo das décadas pode ter inúmeras consequências, entre as quais os extremos. Um primeiro limite abriga desde aquele que muito realizou ao outro que, na simplicidade do existir, cultuou valores cada vez mais obliterados na atualidade, como moralidade, lhaneza, respeito, fidelidade às convicções, família… Num outro extremo, aqueles cujas condutas, sob os mais variados aspectos, estão voltadas ao temor de que jamais sejam expostas.

Em “Reflexões sobre a vida” (São Paulo, Cultor de Livros, 2022), o notável jurista Ives Gandra Martins repassa, nos seus 87 anos, conteúdos essenciais de seu pensar através de 1022 reflexões. Estas abordam moralidade, costumes, religiosidade vivida plenamente como cristão leigo, mas também contemplam política e justiça. Antolha-se-me, contudo, que os momentos conturbados que estamos a viver no país e a imprevisibilidade futura levam-me a preferenciar esses dois últimos tópicos, entendendo que todos os outros temas têm plena relevância. Creio que o leitor poderá aferir o posicionamento de unicidade, através das décadas, de um dos mais respeitados juristas do Brasil. Nessa singularidade do pensar inexiste o talvez e é essa coerência que torna o Dr. Ives Gandra referência tanto na ação jurídica como na de cidadão da maior integridade. Considere-se que a prática de provérbios, axiomas e tantos mais termos de ordem moral, de costume, de orientação religiosa, de cunho popular ou não, é frequentada desde a Antiguidade.

A inserção de cada “reflexão” está precedida da numeração, pois Ives a elas retorna na medida em que escreve ao longo da existência seus pensamentos sobre variados temas.

Da leitura do livro em apreço colhi frases sobre a política e seus atores, assim como as poucas a respeito da Justiça. Ives Gandra observa que tantas são as reflexões que “Certamente, alguém já deve ter pensado como eu. O que vale neste livreto é a luta que tenho por viver o que escrevo, apesar de permanentes fracassos”. Acrescento que, ao longo das décadas, tive o privilégio de acompanhar a coerência opinativa de meu dileto irmão.

Eis algumas de suas reflexões:

208 – Os ditadores, mesmo quando fantasiam eleições manipuladas, são sempre truculentos, principalmente quando, apesar da manipulação, os opositores demonstram força.

209 – A coerência na política é virtude rara. O oportunismo, defeito comum.

210 – Quanto mais conheço o poder, mais vontade tenho de afastar-me dele. Questão de higiene mental.

224 – Os ideólogos são sempre totalitários. Pensam que têm a verdade e querem impô-la, sem respeitar a liberdade alheia. Por isto, quando conquistam o poder, se não tiverem oposição transformam-se em ditadores.

225 – A ideologia está para a sabedoria como o lixo para as flores.

226 – O sábio não precisa impor-se. Sua sabedoria e sua maneira falam por ele. O ideólogo não. Sem a força e a demagogia nada é.

244 – O magistrado deve julgar por aquilo que se encontra nos autos. Se não o fizer, macula sua profissão.

250 – Os ditadores silenciam a oposição com violência e acusações fraudulentas. Mentem para se manter no poder e fingem-se democratas quando podem manipular eleições.

251 – Na América Latina, hoje, pululam falsos democratas e autênticos ditadores.

252 – A democracia dá trabalho, pois exige diálogo à exaustão. É, todavia, o único sistema em que se pode opinar, em que o direito de defesa é assegurado e em que a imprensa e a advocacia são livres.

269 – O poder só tem sentido se for para servir.

330 – Certos intelectuais entendem que são mais competentes do que o povo e podem, em lugar deles e contra eles, definir o que é melhor para a sociedade. Assim nascem os ditadores.

331 – Por pior que seja o Parlamento, é lá que se encontra a representação da Nação. No Executivo está a maioria representada. No Parlamento, a totalidade, ou seja, a situação e a oposição.

332 – O Judiciário só pode ser um poder técnico. Legislador negativo, jamais positivo, pois não tem representação popular e pouco conhece as reais aspirações do povo.

359 – Quem almeja o poder, almeja-o para si, como forma de autorrealização. Quase sempre o poder é apenas campo de manobra para suas ambições.

360 – A corrupção é a moeda corrente do poder, em qualquer espaço ou período histórico.

399 – O poder inebria o ambicioso, mas não o torna melhor se não perceber que quem tem o poder deve servir.

401 – Quando se ataca a iniciativa privada ataca-se a geração de empregos e a evolução social. Quase sempre os que a atacam não têm qualquer habilidade para iniciativas próprias e pensam apropriar-se dos resultados alheios.

403 – Os intelectuais modernos gostam de pensar que o controle dos meios de produção pelo Estado é bom, pois gera justiça social. Desconhecem a história e esperam que, se o seu desejo se transformar em realidade, usufruirão do poder sem trabalhar, passando apenas a pensar, reunir-se e difundir suas ideias para o “povo inculto”.

415 – Quanto mais burocratas e políticos, tanto mais corrupção e atraso.

444 – Parlamentarismo é o regime político de responsabilidade a prazo certo, que dura enquanto o governo for responsável. No presidencialismo, mesmo sendo irresponsável um governo, sua irresponsabilidade terá de esperar o fim do mandato. No primeiro, o afastamento é “intraumático”. Noutro, se antes do prazo, traumático.

448 – Na política, há dois tipos de corruptos, a saber: os políticos que corrompem, o mais das vezes para financiar campanhas, e os burocratas, que se corrompem para enriquecer.

515 – Os governos sem escrúpulos são sempre demagógicos. O tempo pode demorar a desmascará-los, mas a verdade, enfim, sempre aparece.

516 – Quanto mais imoral o governante, mais faz da mentira sua arma principal. Esta perde sempre a última batalha.

530 – Quantas saudades dos tempos em que os que buscavam o poder respeitavam Deus, a Pátria e a Família.

544 – O estadista busca o bem de seu país mesmo que à custa do poder. O político busca o poder mesmo que à custa de seu país.

557 – Muitos, quando entram na vida pública, são tentados a roubar e roubam. E quando estão para ser expelidos, lutam desesperadamente para manter o poder, com medo de que, perdendo força sobre a política, venham a ser presos.

563 – O Poder Judiciário é um legislador negativo. Não pode dar curso a leis inconstitucionais, mas também não pode legislar.

613 – Os tiranetes precisam da demagogia e da força para governar. Tal união de elementos mantenedores do poder, todavia, com o tempo facilita sua queda quando a “verdade verdadeira” vem à tona.

630 – Os governos podem ser de esquerda ou de direita, na rotulação preferida dos ideólogos. Pouco importa. O que devem é ser eficientes.

632 – Os “progressistas” progridem pouco, porque falam sobre os fins sem preocupar-se com os meios. E por não saberem gerar os meios, buscam sempre confiscá-los.

639 – Os ricos pensam ser donos de sua riqueza, mas, na verdade, são as riquezas que são donas dos ricos.

713 – Quanto mais conheço os políticos modernos, mais vejo que sua forma de exercer o poder é podridão.

730 – A política é a arte de os políticos viverem à custa do povo, fingindo que o auxiliam. Que pena!

735 – O desonesto pode ficar rico, mas para os que o conhecem não passa de um dejeto humano.

739 – Qualquer reforma que objetive modernizar um país é sempre combatida pelos burocratas que vivem à custa de regimes arcaicos, pelos políticos que mantêm o poder por força do atraso, e pelos corruptos que usufruem da esclerose retrógrada da máquina estatal.

741 – Há três formas de um homem honesto arruinar-se. 1) Acreditar na boa fé dos governos corruptos. 2) Executar projetos na esperança de que cumpram o que prometem os governos incompetentes. 3) Seguir os conselhos dos burocratas de plantão.

875 – O Estado é um mal educador sempre que substitui a formação do cidadão como pessoa pela concepção de que deve ser coletivizado.

876 – Qualquer pessoa é sempre maior do que a ideologia dominante do Estado. Se o ensino não for voltado ao crescimento do jovem como pessoa, o educador fracassa.

880 – Todo julgador deveria ter a função de juiz como um honroso encargo e não como um cargo honorífico.

968 – Os raros estadistas na política não poucas vezes desaparecem pela mediocridade da maioria.

969 – Houve um político que presidia, nacionalmente, um partido que não objetivava o poder, mas implantar um ideal democrático de bom governo, ou seja, o parlamentarismo. Raul Pilla.

971 – Infelizmente, o Ato Institucional nº 2 encerrou o meu sonho e o de quase todos os libertadores – Partido Libertador era a agremiação. A partir daquele momento nunca mais fiz política, decisão da qual nunca me arrependi.

973 – Para muitos, a política é a arte de enganar o povo.

974 – Para outros, a política é a arte de enganar aqueles que estão ao seu lado, sem que saibam que estão sendo enganados.

1017 – Quanto mais vejo as notícias nos jornais sobre o que de errado ocorre no mundo, mais percebo como o ser humano não sabe preparar-se para a vida.

“Reflexões sobre a vida” é livro a ser consultado. Recomendo-o vivamente.

In the book “Reflections on Life”, the noted jurist Ives Gandra da Silva Martins includes maxims of his own written in the course of his life. Customs, morality, family, religion, politics and the Judiciary make up the whole. I concentrated on the last two topics.

Luzes a possibilitar novos aprofundamentos

Um homem que levou a sério a sua liberdade.
Pedro Picoito
(28 de Abril de 2009)

Tenho para mim que apenas a compreensão do todo possibilita a mais fidedigna interpretação dos fatos. Como tinha razões sobradas o saudoso amigo e ilustre professor de Direito Internacional da USP, Guido Soares, a entender as fases acadêmicas através da metáfora. O postulante no mestrado penetra numa floresta e conhece as diferentes espécies de árvores; quando no doutorado, concentra-se em apenas uma árvore, dissecando-a da raiz à copa; na livre docência, sobrevoa a floresta conhecendo todos os pormenores e a interpreta.

O notável historiador medievalista João Gouveia Monteiro assim o faz ao “sobrevoar” o todo do período em que viveu o personagem talvez mais emblemático da História de Portugal, Nuno Álvares Pereira. Sem a atuação do Condestável, teria hoje Portugal as suas fronteiras?  Sobre o Guerreiro Comandante, os bens recebidos do rei D. João I após as vitórias nas batalhas fundamentais para a integridade de Portugal, a fortuna que fez dele o homem mais rico de Portugal, exceção ao rei D. João I, a doação paulatina de seu patrimônio e os anos finais austeros no Convento do Carmo, por ele fundado com parte de seus bens, pesquisas profundas foram e continuam a ser realizadas, sendo crucial o livro do professor de História Medieval da Universidade de Coimbra.

João Gouveia Monteiro, ao final de “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro – Senhor Feudal e Santo”, após desfilar o personagem em suas etapas distintas, mencionando e interpretando incontável fonte documental que remonta à Idade Média e prossegue através dos séculos, posiciona-se em tópicos capitais e sobrevoa a floresta. Não o teria feito se anteriormente uma consistente bibliografia não apontasse para obras relevantes de sua lavra a compreender o período medieval.

Transcrevo essencialidades de sua visão abrangente do grande herói português inseridas ao final de seu livro sobre o Condestável. O historiador enumera cinco significantes argumentos e outras mais considerações relativas a Nuno Álvares Pereira junto ao Convento do Carmo, onde viveria seus últimos anos, e sua afeição pelos eremitas e grupos eremíticos.

Em primeiro lugar Gouveia Monteiro menciona as palavras “pobres da serra” contidas num documento do período. Escreve: “Parece-me indubitável que estes ‘pobres da serra’ são os anacoretas da serra de Ossa” [Sul de Portugal]. Prossegue o autor: “… a expressão ‘mandou por um pobre’ é isso que sugere; tendo em conta o grau de familiaridade do Condestável com as comunidades eremíticas alentejanas, pode até ser que não se tratasse apenas de pedir informação sobre o modelo de vida, de requerer aconselhamento, mas também de tentar chamar esse modelo para junto de si, na fase final da sua vida”.

Num segundo argumento, o historiador ratifica seu posicionamento dessa ligação do Condestável com eremitas da serra de Ossa, através da doação a eles destinada, de uma casa e um terreno ladeando o Convento do Carmo, realizada por um seu cunhado, quando Nuno Álvares já estava a morar no cenóbio.

Como terceiro posicionamento, Gouveia Monteiro considera que nos tempos das batalhas, ao ajudar “quatrocentos castelhanos que, desesperados com a falta de alimentos que havia em Castela, chegaram à comarca de Entre Tejo e Guadiana em busca de comida, foi justamente aos eremitas da serra de Ossa que recorreu para os identificar, organizar e materializar o seu apoio’’ e não àqueles mais abastados, o que evidenciaria uma nítida ligação do Condestável àquela altura com os mais pobres, mas generosos, que viviam em eremitérios na austeridade e castidade.

Numa quarta consideração, o ilustre medievalista faz uma tradução literal, diferente daquela apresentada por estudiosos, de frase de oração que “o infante D. Pedro compôs em memória de Nun’Álvares e que o rei D. Duarte enviou ao abade florentino D. Gomes, em apêndice à carta que lhe remeteu em 21 de julho de 1437, …: Norma principium, exemplum dominorum, speculum anachoretarum es, beate Nune”. Propõe o historiador: “Modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de anacoretas és tu, bem-aventurado Nuno”, frase que decididamente evidencia a afinidade do herói com os eremitas, pois pesquisadores anteriores substituíram “anachoretarum” pelas palavras “contemplativos e religiosos”.

Numa quinta afirmação, Gouveia Monteiro demonstra a “relação que a família dos Pereiras tinha com o fenômeno eremítico do Sul de Portugal”. Os pais de Nuno Álvares foram generosos doadores de terras para os movimentos eremíticos na região do Alentejo.

O autor remonta a uma doença estranha que se abateu sobre Nuno Álvares durante o período das beligerâncias com o reino de Castela. Foi ele levado a um eremitério relevante na região de Setúbal e houve um encontro com uma delegação do entorno, que o visitou protocolarmente, narrativa constante na “Crônica do Condestabre”. Gouveia Monteiro deduz: “Creio bem que esta passagem da ‘Crônica do Condestabre’ traduz metaforicamente o contraste entre os dois mundos, entre duas vocações e formas de assumir a vida, um dilema que dilacerava Nun’Álvares naquela hora: o mundo vão, precário e limitado do cotidiano, da manobra política, do jogo de influências pessoais…; e o mundo muito mais puro e celestial dos eremitérios, terras da água e do mel, onde a intriga dava lugar à contemplação e a acumulação de favores e de riqueza cedia em toda a linha perante o exemplo salvador do despojamento. Julgo, sinceramente, que a história da doença de Nuno Álvares Pereira passa também por este dilema existencial do nosso biografado”.

Nas considerações finais do livro, Gouveia Monteiro tece argumentos relativos à construção do Convento do Carmo por Nuno Álvares ensejada e à vinda dos frades carmelitas do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Moura, da região alentejana, após convite formal (1392), ideia possivelmente gestada pelo Condestável após as vitórias em campo de batalha décadas antes. Gouveia Monteiro comenta: “Nun’Álvares terá querido assinalar o seu sucesso militar com um aparatoso monumento em Lisboa, no alto de uma colina virada para o Castelo de São Jorge; a escala da obra era proporcional ao desejo do segundo homem mais poderoso do reino de glorificar o seu feito na própria cidade a quem D. João I devia a Coroa e que era já a capital indisputada do reino. Além disso, era uma forma de o Condestável, homem muito rico e titulado (era também mordomo-mor e tinha já recebido uma quantidade impressionante de mercês régias, sendo igualmente conde de Ourém e de Barcelos), começar a ‘espiritualizar a sua riqueza’”. Paulatinamente o Condestável desprende-se de todas as amarras do “ter” bens materiais. A vida no Convento do Carmo o faz um doador cônscio dos atos. O historiador comenta a seguir: “Fora o início de um despojamento carismático que o velho Condestável queria agora tornar absoluto: prescindir do nome de família (e que família!), abdicar dos cargos e dos títulos, reduzir-se à humilde e insignificante condição identitária de ‘Nuno’, o donato carmelita”. Prossegue o medievalista: “… consumava a sua fuga mundi, com tudo o que de redentor isso representava, em especial para um homem que havia sido tão poderoso quanto ele”.

Bem debilitado, Nuno Álvares Pereira teve morte serena. Gouveia Monteiro menciona descrição de frei José Pereira de Sant’Anna: “De acordo com a reconstituição carmelita, Nun’Álvares pediu para morrer vestido com o seu Santo Hábito e requereu uma mortalha e uma cova para o seu corpo, suplicando que lhe dessem uma sepultura rasa e sem distinção, onde pudesse ‘esconder-se sem diferença do comum dos mais homens’”. O autor nos últimos subcapítulos discorre sobre “A sepultura do donato”, “O culto popular e o livro dos milagres”, “Construir a memória do ‘Santo Conde’” e “A estrada da canonização”.

Quanto ao último, Gouveia Monteiro assinala: “Temos, portanto, que em data próxima do falecimento de Nun’Álvares, já a Coroa se referia a ele, abertamente, como ‘santo’”.  Ao longo dos séculos reis e autoridades eclesiásticas ensejaram a canonização do Condestável, desde 1437 através de D. Duarte. Em 1641, D . João IV também requereu o reconhecimento da beatificação de Nuno Álvares, assim como D. Pedro II em 1674, sem contar as tratativas da Ordem Carmelita ao longo do tempo.

Após a notificação de 221 milagres associados a Nuno Álvares Pereira desde o século XV, a canonização do Condestável “apenas se viria a aproximar do seu termo em 2008, em resultado das diligências do cardeal-patriarca D. José Policarpo e das Ordem do Carmo; em 3 de julho deste ano, o papa Bento XVI (seguindo o parecer emitido pela Congregação Ordinária dos Cardeais em 7 de Junho) autorizou a publicação de dois decretos, um reconhecendo as virtudes heroicas do candidato e outro atestando a cura milagrosa da senhora Guilhermina de Jesus, de Vila Franca de Xira (que recuperara a visão). Finalmente, em 21 de fevereiro de 2009, Bento XVI anunciou a canonização, que veio a realizar-se no dia 26 de abril do mesmo ano, em Roma. Foi um final luminoso para o filho de Álvaro Gonçalves Pereira e Iria Gonçalves” (Gouveia Monteiro). Portanto, 577 anos após a morte de Nuno Álvares Pereira, desde 2009 o nome Santo Condestável se tornou oficial, embora assim fosse lembrado desde seu desenlace.

Que a religiosidade de Nuno Álvares Pereira, hoje São Nuno de Santa Maria, fora transmitida por seus ascendentes e documentada durante a atividade do jovem guerreiro parece ser consensual. As preces intensas antes das batalhas, a visualização dantesca de tantos combatentes por ele comandados e de inimigos mortos ou feridos em combate, o acolhimento de habitantes de Castela fugindo dos embates, mas tratados com humanidade pelo futuro Condestável, teriam levado o segundo homem mais rico de Portugal a tudo legar, não apenas aos seus comandados, como aos familiares, aos eremitas, e a erigir templos fundamentais para o culto religioso em Portugal. O Guerreiro, distanciando-se das batalhas, esteve, contudo, na conquista de Ceuta em 1415, trinta anos após Aljubarrota! Viver na austeridade voltada ao culto religioso e aos mais pobres – distribuição de alimentos e atendimentos vários – foi a plena redenção de uma figura entendida pelos seus coevos como já santificada.

O notável medievalista João Gouveia Monteiro, ao se debruçar sobre Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, lega à literatura sobre o tema um livro impecável sob todos os planos. Ter dividido os períodos de atuação da figura histórica, quiçá a mais representativa de Portugal, dimensionando-a, propicia ao leitor a compreensão inequívoca do todo. Recomendo vivamente a leitura de “Nuno Álvares Pereira – Guerreiro, Senhor Feudal, Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019).

At the end of his book on Nuno Álvares Pereira, the Holy Constable, the noted medievalist João Gouveia Monteiro puts forward his personal positions, enriching the third phase of the biographee’s life, which is focused on his religious retreat in the Convent of Carmo and his links with the eremitic movement in Portugal.

 

 

“Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”

Nos últimos anos de vida, o elã em direção ao futuro,
o sonho desse devir atingiram uma força e uma acuidade particular.
Tornou-se impaciente e a espera começou a pesar.
A impossibilidade de traduzir, fora da música, o indizível o irritava.
Pôs-se a trabalhar com certa angústia,
como se algo o provocasse ou
como se estivesses a pressentir o tempo escoar:
‘Não mais as palavras, é tempo de se colocar à obra,
necessário se faz agir mais rapidamente, muito tempo foi perdido’.
Bóris de Schloezer (1881-1969)
(“Alexandre Scriabine”. 1975)

Neste terceiro post dedicado a Alexander Scriabine no ano de seu sesquicentenário insiro meu texto sobre o instigante depoimento do escritor Bóris Pasternak sobre Scriabine, publicado na “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho de 1996, mercê da anuência de meu dileto amigo, o sábio editor Cláudio Giordano.

Bóris Pasternak (1890-1960) lega-nos apreciações de relevante importância sobre o compositor russo, pois o conheceu ainda adolescente (1903). Seu pai, o pintor Leonid Pasternak, era amigo de Scriabine.

No texto que segue há várias considerações que fazem parte de minhas pesquisas posteriores a 1972 sobre Scriabine (centenário do compositor), publicadas no Brasil, em França e na Bélgica. Impossível algumas dessas reflexões se ausentarem nos vários posts sobre Scriabine publicados neste espaço desde 2007. Acúmulos…

“Entre os textos autobiográficos de Bóris Pasternak nos quais Scriabine está presente em sua lembrança, o ora publicado é testemunho ratificado da admiração, não desprovida de momentos frustrantes, do autor de ‘Doutor Jivago’ para com o criador de ‘Vers la Flamme’. A imensa importância dos escritos de Pasternak está em dimensionar posturas expressas pelos estudiosos do compositor, das primeiras décadas à atualidade.

Conhecem-se em 1903, Bóris nos seus 12 anos, Scriabine, músico já renomado, aos 31. O jovem evoca características de seu coetâneo ilustre encontráveis nos muitos estudos sobre o autor, entre os quais o de  Bóris de Schloezer, que conviveu com Scriabine, pois seu cunhado. Sob outro aspecto, a substancial iconografia scriabiniana evidencia um homem elegante, voltado ao dandismo, frágil, quase valetudinário.

Pasternak, no texto em questão, observa a pregação de Scriabine quanto ao ‘homem superior e amoral de Nietzsche’. Nas fronteiras do século, Scriabine lê com inusitado interesse, paixão mesmo, segundo sua filha Marina, ‘Assim Falava Zaratustra’, pensando inclusive numa ópera, jamais realizada, cujos fragmentos do libreto ficaram registrados em um carnet do compositor.

Sabe-se da influência exercida sobre Scriabine das teorias de Helena Blavatsky, cuja obra ‘A Doutrina Secreta’ marcaria o autor do ‘Poema do Êxtase’ em seu caminho em direção a uma teoria teosófica.

Pareceria correto admitir-se que a trajetória empreendida por Scriabine, resultando os vários estágios do escrever música, só poderia ser compreendida entendendo-se a amálgama compositor-pensador. Pasternak relata a partida de Scriabine rumo à Suíça, onde permaneceria alguns anos. É de 1904 um texto do compositor, escrito em um café perto de Genebra: ‘Tudo é minha criação. Eu não sou nada. Eu sou unicamente o que crio. Tudo que existe, existe apenas em minha consciência’.

Na medida em que, por processos inusitados, Scriabine caminha, o distanciamento se processa em relação às técnicas composicionais da juventude, sendo praticamente impossível entender-se como sendo do mesmo compositor Prelúdios e Mazurkas dos primeiros anos e os Poemas, Sonatas e Estudos escritos nas fronteiras da morte. Sob outra égide, o pensador em aceleração contínua e em plena vibratilidade delirante estabelece um elo com o Criador, em sendo ele, Scriabine, o Criador: ‘eu vos exalto à vida através do meu carinho e do charme misterioso de minhas promessas (…) eu sou o centro do universo e o universo está perto do centro’ (‘Cahiers inédits’ 1904-5). Curiosamente, os elos que fazem entender serem do mesmo compositor obras de períodos díspares são os do idiomático pianístico ou aqueles constituídos pelos motivos neurótico-obsessivos, separados entre si pelos silêncios (pausas), com o decorrer dos anos cada vez mais angustiantes.

Se as reminiscências de Bóris Pasternak afloram, deixando transparecer evocações precisas, objetiva e subjetivamente, a respeito de um de seus ídolos, alguns aspectos desse passado distante podem remeter ao levantamento de questões e à formulação de hipóteses: que razões, conscientes ou não, teriam levado Pasternak a abandonar a música? O conservadorismo que levou Pasternak a criticar – apesar da diferença etária, frise-se – os ‘novos meios de expressão’ de Scriabine e de outros autores não refletiria o pensamento sacralizado da maioria da sociedade a que pertencia e que consumia a cultura plena de conteúdos ocidentais ligados à tradição? O ressentimento quanto a Alexandre Scriabine não terá origem na inatingibilidade, por parte de Pasternak, ao talento pleno do autor das Sonatas ‘Missa Negra’ e ‘Missa Branca’?

Seria possível visualizar Bóris Pasternak ouvindo Scriabine a executar ao piano fragmentos reduzidos da Terceira Sinfonia ou ‘Divino Poema‘ op. 43 nas dachas perto de Moscou. Imediatamente antes, compusera os oito Estudos op. 42, plenos da mais ampla virtuosidade.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, os Estudos op 42 nº 1 e  nº 5 (Affanato) na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

https://www.youtube.com/watch?v=Z1UvhEy0N0w

Saliente-se ter sido Scriabine pianista de méritos a executar, preferencialmente na Rússia e na Europa, composições suas. Permaneceriam na mente de Bóris Pasternak a qualidade pianística singular e a criatividade fulgurante de Scriabine. O ‘eu tocava pessimamente e lia música como criança aprendendo a soletrar’ e a certeza de que o criar música – entenda-se compô-la mostrava-se em discrepância com o fazer música – entenda-se executá-la – poderia ter sido diferentemente absorvido por Pasternak se o modelo sonoro scriabiniano registrado na adolescência, bidimensionado criação-práxis, não tivesse sido tão mágico. O abandonar a música mereceria ser repensado como fruto da impossibilidade do nivelamento.

Pasternak ouvia a música russa e a ocidental que se tornaram familiares. O seu ouvido aceitaria essencialmente mensagens do código romântico pleno. Scriabine, na sua trajetória místico-criativa, que o leva a uma escrita ousada, distancia-se dessa escuta sacralizada por Pasternak. Se este entende a ‘fase intermediária’ das terceira e quinta Sonatas, paradoxalmente capta conteúdos de obras bem anteriores e plenas da mais intensa exacerbação emotiva – como os Estudos op. 8 e os Prelúdios op. 11 – como totalmente contemporâneos’, quando de fato já não o eram. A criatividade de Scriabine, fruto do amálgama ascensão em direção ao Cosmos-Música, fá-lo atingir níveis do mais preciso vanguardismo nos anos que antecederam a sua morte. O próprio Scriabine dos últimos Poemas e Sonatas disso tinha consciência e, ao tocar em público em sua consagrada carreira de pianista, dava à plateia a oportunidade de ouvir preferencialmente suas criações anteriores, romanticamente comprometidas, portanto. Bóris Pasternak seria assim o exemplo desse ouvinte, pronto a captar mensagens da mais intensa comunicação.

O ‘lado negativo da influência’ de Scriabine, que levaria talvez ao ressentimento, seria a somatória da inacessibilidade ao talento excelso musical e a certeza de que um carisma etéreo, do qual Scriabine era possuidor na sua vontade de expor ideias místico-filosóficas, impusera sentimentos de difícil resolução para o escritor. A respeito da ‘certeza’ conceitual característica de Scriabine  ‘apenas ele poderia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas para ele próprio’, ou ainda o lado ‘miraculoso e premeditado, nada planejado, deliberado, desejado’, conteúdos do ‘negativo’ que ficou como influência do compositor ; Pasternak evidenciaria de um lado o poder carismático de Scriabine, de outro o sentimento frustrante da distância do pensar entre os dois, mercê do ‘egocentrismo’ do autor do ‘Poema Satânico’.

Alexandre Scriabine permanece, talvez, como o mais criativo compositor russo do século XX, sem ligações definidas com ascendentes criadores da Rússia, tampouco deixando imitadores ou discípulos. Morre em 1915 e os pósteros da Revolução de 1917 negligenciam-no nos primeiros anos, pelo fato de ter sido Scriabine um compositor com olhar aristocrático. Contudo, no momento em que o Ocidente se fascina por Scriabine, através, sobremaneira, das ações pianísticas fulgurantes de Vladimir Horowitz e Vladimir Sofronitsky, este na Rússia, tornou-se útil ao regime soviético divulgá-lo e, diga-se, fizeram-no na excelência até os estertores do Sistema.

Bóris Pasternak morreu em 1960. No velório, uma última manifestação sonoro-fascinante sobre seu corpo imóvel. Sviatoslav Richter, um dos mais completos pianistas russos, tocou durante o dia e parte da noite obras de Scriabine num piano de armário colocado bem próximo ao esquife”.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Feuillet d’album”, op. 45 nº 1, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M

In this third post I comment on the magnificent account given by Boris Pasternak about Scriabine published in the two previous posts, raising hypotheses about the effective influence of Scriabine in the future steps of the author of Dr. Zhivago.