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Testemunho de Edson Amâncio

O sofrimento acompanha sempre uma inteligência elevada e um coração profundo.
Os homens verdadeiramente grandes devem, parece-me, experimentar uma grande tristeza.
Dostoiévski (“Crime e Castigo”)

Sigmund Freud considerava “Os Irmãos Karamázov” a maior obra da história. Nietzsche afirmava que Dostoiévski “… foi o único a me ensinar alguma coisa de psicologia”. À opera omnia literária de Fiódor Mikháilovich Dostoiévsky (1821-1881), constituída de romances, contos, novelas, memórias, somam-se as missivas, testemunhas de uma figura atormentada, mas que corroboram a identificação de personagens inseridos em seus livros. Dostoiévski continua a ser um dos autores mais consultados pelos leitores, máxime através de alguns romances fulcrais. Vasta é a bibliografia em torno do autor russo a abordar a obra maiúscula, a vida conturbada e a epilepsia.

Antolha-se-me que biografias de mestres que perduram, sejam eles escritores, compositores, filósofos ou artistas das tantas modalidades, só atingem o desiderato pleno se atenderem a dois fundamentos: a qualidade do pesquisador e o pleno conhecimento da obra, vida e bibliografia existente. Esses dois ingredientes atestam a credibilidade dos resultados.

Edson Amâncio (1948-), ilustre médico e neurocirurgião, é ficcionista devotado, autor de diversificados títulos, como “Memórias de um quase suicida”, “Diário de um médico louco”, “Experiência de Quase Morte”, entre outros, lega-nos um importante livro, que vem se somar à vasta bibliografia do autor de “Recordação da Casa dos Mortos”, sua primeira incursão no universo dostoivesquiano e minha também, essa em 1956. Não se trata de uma biografia a seguir critérios precisos ditados pela Academia. Não obstante, a participação de Edson Amâncio seguindo o homenageado até os minutos finais, intervindo, por vezes, no instante do acontecido de Dostoiévsky, só ocorre mercê do conhecimento singular do neurocientista a respeito da vida, da obra e da geografia percorrida pelo escritor russo, assim como de toda uma literatura pertinente a respeito da temática.

São vários os méritos do “Meu Dostoiévski…”, a partir de um olhar rigorosamente pessoal e incontornável. Edson Amâncio quis conhecer os ambientes, países, museus, hotéis, parques, lugares em que houve a presença de Dostoiévsky. Amâncio detém-se, interpreta, degusta com intenção precisa cada espaço. Cidades europeias e tantas incursões pela Rússia, viagens que provocam o melhor entendimento do seu herói, dos costumes e da índole do povo russo. Marcante a visita que Edson Amâncio fez ao Kunstmuseum em Bâle, na Suíça, unicamente para ver o quadro de Hans Holbein (1497-1543), “O Cristo Morto”, motivado pelo fato de que Dostoivésky permaneceu horas a contemplá-lo em 1867. O episódio marcou profundamente o escritor russo e, sur le tard, o seu biógrafo.

Há em “Meu Dostoiévsky” a constante presença do narrador que, em suas visitas às autenticidades, surge como um observador que presencia aspectos basilares da história de Dostoiévski e de personagens que gravitaram a seu redor durante sua existência. Para tanto, as missivas desses figurantes foram igualmente vitais para a presente criação biográfica. Interessa ao autor conhecer essas figuras que respaldam a compreensão do seu eleito, que o conduziram ao êxtase ou a depressão, aos picos emotivos ou à descida humilhante. Amâncio não poucas vezes recorre à sua própria imaginação, amalgamada ao substancioso acervo de que dispõe. Ocasionalmente caminha ao seu lado, sombra futura a mergulhar no passado e degusta cada caminhada do herói erigido. Como neurocirurgião, acompanha o sofrimento do escritor, as crises epiléticas que o perseguiram, mormente a partir dos anos de exílio na Sibéria. Esse mal foi o primeiro impulso do ilustre médico para o aprofundamento que o levou, para nosso gáudio, à obra do autor de “Gente pobre”.

Um dos achados de “Meu Dostoiévsky…” reside na alternância. Edson Amâncio o faz com maestria. Nenhum dos capítulos leva à monotonia e há coerência nessa aparente “desordem”.  A técnica utilizada ao longo do livro impede o leitor de um possível esquecimento do já lido, tornando a retomada do enredo sempre prazerosa.

Amâncio pormenoriza os longos anos de reclusão na Sibéria. No seu dizer sobre os anos sombrios, “O que vislumbra na longínqua Sibéria nos raros momentos em que sua visão se desvia dessa podridão humana, ‘um amontoado de homens feitos ratos’, é a vastidão sem fim das planícies”. O neurocientista desfila os estados emocionais de Dostoiévski e os sucessos que advirão, por vezes sob o olhar enviesado de alguns “colegas”.

A observação perene de Dostoiévsky frente aos acontecimentos da vida e a presença de tantos personagens que conheceu, imortalizados, pois identificados nas suas obras consagradas, têm sido a razão de estudos sob vários ângulos, mormente psicanalíticos. Bons e maus, “normais” e perturbados desfilam em seus romances e a pesquisa mais aprofundada os identifica, graças, e muito, à correspondência do autor de “O Jogador” e daqueles em seu entorno. Anônimos prisioneiros como ele, no longo período siberiano, povoarão sua mente e se fixarão em sua extensa obra. Escreve Amâncio: “Já veremos que infelizes, desgraçados, doentes, miseráveis desencadearão nele uma compaixão infinita. De humilhados e ofendidos irá povoar toda a sua obra”.

“Meu Dostoiévski” situa no contexto a atração do autor russo pelo jogo de azar. Relata, como em uma gangorra, as tantas visitas ao vício e efêmeros ganhos, que logo após se traduzem em perdas, algumas irreparáveis. Dostoiévski é um jogador inveterado e inúmeras vezes voltado ao alcoolismo. Amâncio, de maneira enfática, apresenta o grande escritor em suas desditas amorosas, tendo o jogo-álcool como fuga da ansiedade por essa e outras situações.

“Meu Dostoiévski” detém-se longamente em capítulos alternados ou sequenciais à vida amorosa e turbulenta do homenageado. Arroubos levaram-no a dois casamentos e às aventuras igualmente intensas, mas passageiras, exceptuando-se Apolinária Prokofievna Súslova, Polina, por quem Dostoiévsky teve paixão ardente. A sequência do romance revela o autor russo em situações pecuniárias e mentais que continuam a ser motivo de aprofundamentos por parte de estudiosos.

“Meu Dostoiévsky”, mesmo tendo clara a observação do autor, “obra que vai além da biografia”, merece a leitura. Recomendo vivamente o livro de Edson Amâncio.

Como curiosidade, observaria que, entre os grandes compositores russos, Modest Moussorgsky (1839-1881), sob outra égide, também teve fortes dissabores e sofria de epilepsia. Ambos morreriam no mesmo ano. Se a obra capital de Moussorgski é a ópera “Boris Godunov”, (1868-1873), Dostoiévski também teria escrito uma peça com o nome do Czar, sendo que Alexandre Pouchkine em 1925 criou a tragédia “Boris Godunov”.

Clique para ouvir, de Moussorgsky, cena da “Coroação de Boris Godunov”, redução para piano realizada pelo autor, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=GFiQhAHtovE

“My Dostoievski – the final minutes”, by the neuro-scientist and writer Edson Amâncio, is a unique and highly valuable biography. With an in-depth knowledge of Dostoievsky’s life and work, as well as a considerable number of letters from those around the Russian writer, Edson Amâncio sometimes appears as a shadow following in Dostoievsky’s footsteps through the places he travelled through, or even imagined. A book to be consulted.

 

Flávio Amoreira diante da síntese

O mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas.
Agostinho da Silva (1906-1994)
“Conversação com Diotima”)

Admiro a personalidade do poeta, escritor, crítico literário, tradutor e professor de oficinas literárias Flávio Viegas Amoreira, que a essas qualificações soma a de agitador cultural em sua cidade natal, Santos. Sua coluna em “A Tribuna” não apenas trata de aspectos das várias culturas, como denuncia os desatinos de poderosos e dos nem tanto.

Foi através da dileta amiga Eliane Mendes, viúva do saudoso e querido Gilberto Mendes (1922-2016), notável compositor santista, que uma sólida amizade se estabeleceu entre nós. Desde então, tenho saboreado os seus textos e, inclusive, tive o privilégio de escrever o postfácio de seu livro “Gilberto Mendes – Notas Biográficas”.

No seu recente “Des casulo” (Costelas Felinas, 2023), o leitor habituado à tradição poética onde o verso, a rima, ou formas outras construtivas imperam, poderá se desconcertar, mesmo para inúmeros fiéis ao modernismo pátrio, movimento que, através de várias mutações, legou acervo considerável.

“Des casulo” se aproximaria mais acentuadamente dos haicais, não obstante carregar em suas mensagens lirismo a ser decifrado pelas palavras que mal se contam nos dedos das mãos, autenticando a presença do multum in minimo. Seria possível entender essa miniaturização como um processo de pleno domínio literário e do pensar. É provável que a perfeição, tão difícil de ser concretizada, se dê não quando há algo a ser acrescentado, mas no momento em que nada mais pode ser subtraído. Assim sendo, uma palavra a mais poderia destruir a voluntária abreviação. Sob outra égide, fosse o todo do pensar, teríamos o segredo, passível de deciframento. A síntese da síntese pode pressupor o mistério e este é insondável. Lê-se e o enigma se instala, lê-se e o maravilhamento se dá pela inexistência da obviedade.  

Mencionaria um exemplo tipificado na música. O compositor e regente português nascido nos Açores, Francisco de Lacerda (1869-1934), em algumas das “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste” realiza a síntese dos procedimentos. Todo um universo se encontra em pouquíssimos compassos. Haveria necessidade de mais para apreendê-lo?  Ao acessar o Youtube, o leitor encontrará a minha gravação dessa magnífica coletânea.

A fim de um conhecimento mínimo e, através de dois temas que povoam as 50 poesias não acadêmicas, insiro as alusões voltadas ao mar, tão caro ao Flávio como o foi para Gilberto Mendes, e acrescentando outras, de um sensualismo onírico.

IV

vento libertador
oceano alado

VIII

ah! que a maresia vibra
tenra no ar
enquanto rente
a lua míngua

XI

vê se a dobra
das ondas te enternece
ao horizonte

XXXVIII

mergulhão
o vento nas ondas
tordo
insone

II

foi detalhe
e nele o éden do corpo

III

abrasador
o verão toma-me pelos raios solares
dos teus lábios intocados

VII

demoraria em teu corpo
com a espera
sem sombra

XII

não é teu sexo
são os arredores

XVII

acaso ali
já me habitavas
em pressentimento

XXVII

tinha poesia
por fazer incessante
e o amante
para descobrir sem fim

XXIX

o que de melhor
o homem acrescenta
ao mundo são as coisas inúteis

A síntese proposta por Flávio Amoreira leva o leitor à interpretação. Não o conduz, convida-o simplesmente.

Flávio Viegas Amoreira, the poet and writer born in Santos, in writing “Des casulo” achieves a synthesis of the poetic synthesis, even more concise than the haikais and perhaps with a more lyrical orientation.

 

A sensibilidade que aflora

De todas as histórias que nos contava
guardei apenas uma vaga e imperfeita lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento –
a pequena história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1898-1940)
(Prêmio Nobel de Literatura)

Contos e poemas anteriores despertaram vivo interesse quando publicados neste espaço: “Velho Natal”, de D. Henrique Golland Trindade (22/12/2007); três contribuições da ilustre gregorianista portuguesa Idalete Giga, “O Jardim das Fadas” (20/12/2008), “O Sonho de Santa Cecília” (18/12/2009), poema “Lux Mundi” (18/12/2010); “Natal e Renovação”, extraído do capítulo CXXII de “Citadelle”, de Saint-Exupéry (19/12/2015).

Minha dileta amiga Carolina Ramos, escritora, poetisa e folclorista de tantos méritos, ofereceu-me um sensível livro de sua lavra, “Feliz Natal – contos natalinos” (São Paulo, Ação, 1998). São 18 histórias e historietas plenas de encanto, imbuídas de criatividade, afeto e simplicidade, sem quaisquer outros objetivos a não ser transmitir o Espírito de Natal através de exemplos, tantos deles edificantes. A diversidade temática apenas dimensiona a criatividade da autora. Nessas criações, os personagens majoritariamente se situam ou na infância ou na terceira idade. Há especial atenção da autora pelos menos favorecidos.

Algumas observações de Carolina Ramos, fazendo parte do contexto, destacam-se pela argúcia do pensar. Do conto S.O.S, extraio: “Crianças e velhos gostam de ouvir e de serem ouvidos. Crianças adoram histórias, velhos adoram contá-las. Como se não fossem eles compêndios vivos, repletos de histórias escritas pela mão da vida!”.

Em “A Toalha de Natal”, um relato que certamente faz eco a milhões de cristãos quanto à preparação da Ceia de Natal: “Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal, e retirá-la uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário repetir o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto”. Na decorrência do conto a toalha envelhece através dos anos, esgarça-se o tecido e ela vai ao lixo. Em noite de chuva, um menino pobre, vasculhando latas de lixo, encontra-a e o tradicional linho servirá para abrigá-lo. Carolina conclui: “Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida”.

No conto “Natal Feliz”, a autora insere: “E vieram as frutas secas! Importadas! As amêndoas, as nozes e as avelãs. Um bocadinho de cada. E os bolsos ficando leves! As passas, os figos. Mania de copiar os outros! Por que não festejarmos o nosso Natal à brasileira, com as nossas próprias castanhas, os nossos pinhões, os nossos tão gostosos amendoins? Não são, por acaso, frutos secos? E as peras d’água, as laranjas, os abacaxis de coroa na cabeça, e as uvas deliciosas, nossas, tão nossas?! Qual! – o mundo é assim mesmo! Quem sabe lá, se nas mesas europeias mais aristocratas, não haveria uma banana dourada, pintadinha, envolta em papel de seda, à espera de ser parcimoniosamente servida em fatias?”

Clique para ouvir, de J.SBach-Hess, “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M:

Bach-Hess – Jesu, Joy of Man’s Desiring – José Eduardo Martins – piano (youtube.com

Entre os tantos contos Natalinos de Carolina Ramos que nos encantam, separei um na íntegra, que bem caracteriza o Espírito da cristandade na sua data máxima e que não parte de situação imaginária.

O Anticlerical

“Dizia-se anticlerical. Tinha suas razões. Questionáveis umas. Outras, infelizmente, não. Às vezes, um ou dois maus elementos conseguem estremecer as melhores conceituações dos mais radicais.

Embora dizendo-se anticlerical, tinha amigos padres. Bons amigos, com quem conversava e trocava ideias. E com quem discutia sobre qualquer assunto, dentro da maior abertura e camaradagem que só as grandes amizades propiciam.

Veja-se o caso do padre português, canceroso, esquecido de todos, que o teve ao pé do leito, em seus derradeiros dias, revoltado com o ostracismo em que morria o velho sacerdote, seu amigo desde os tempos de congregação mariana.

Sim. Tinha amigos padres. Amigos sinceros. Mas, embora retribuísse essa sinceridade, dizia-se anticlerical. Razões teria.

Natal! O avô anticlerical esperava as netas à saída da missa vespertina. Foi quando aproximou-se dele um rapaz de pés encardidos, descalços.

-  Olhe, eu vim da Bahia… preciso de sapatos… procurei a Assistência Social e… mandaram que eu me virasse… me dê um dinheirinho, sim?

As netas chegavam. O povo escorria pela porta da igreja como água derramada escada abaixo.

Vestido informalmente, de bermudas, e sem um níquel sequer nos bolsos, o avô anticlerical não hesitou. Para surpresa das meninas, descalçou rapidamente o par de tênis novos e entregou-o ao pedinte, voltando descalço para casa, sem esperar pelo agradecimento.

Naquele fim de tarde, as guirlandas de luzes coloridas, dependuradas nas sacadas vizinhas, ganharam brilho especialíssimo. É que o Natal, de repente, ficara mais Natal do que nunca!”

“Feliz Natal” é uma ode ao bem, a se contrapor a um mundo que se decompõe sob o manto do choque insensato das ideologias, da discórdia, da queda livre dos costumes e da moralidade, do desprezo pela Cultura Humanística, da corrupção e violência instauradas e da perversidade como temas absorvidos pelo cidadão que vive o cotidiano sob ameaças de toda a sorte, mas que pouco pode fazer. Seu voto nas tumultuadas eleições é carregado de esperanças, anseios estes imediatamente esquecidos pelos eleitos. “Feliz Natal”, da observadora nata, Carolina Ramos, indica o caminho, mas tão poucos a ouvirão.

Um Feliz Natal a todos os leitores. Que possamos acreditar em dias melhores para a Humanidade.

Finalizara o post de Natal quando recebo do meu dileto amigo, o notável compositor Eurico Carrapatoso, gravação recente de sua inspirada criação “Ó meu Menino”. Compartilho com os meus leitores:

https://www.youtube.com/watch?v=6LsJgIQwQS0&t=16s

“Merry Christmas“, a book by Carolina Ramos, a writer of great sensibility, is an ode to fraternization. The 18 short stories, simple yet profound in so many aspects, induce us to do good and consecrate Christianity’s greatest holiday