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Conceitos do compositor, pensador e místico

Todos nós somos
Fluxo amoroso
Do instante em direção à eternidade, ao infinito
Da tristeza petrificada em direção à transparência clara
Sobre a pedra,
Pelo fogo da criação,
Nós gravamos
Tua face divina.
Alexandre Scriabine
(Extraído do “L’acte préalable”)

Chamou-me a atenção o número de mensagens solicitando incluir um post com os pensamentos de Scriabine voltados ao misticismo, às reflexões sobre a condição do homem e até, por vezes, ao visionarismo nítido. Na medida em que Scriabine deixa suas anotações nos carnets, que trazia sempre consigo, criações musicais são compostas sob a égide desses estágios do pensar místico e sua linguagem se encaminha para patamares que o consagram como um dos maiores inovadores da escrita musical.

Marina Scriabine, renomada musicóloga e filha do compositor, sintetiza os almejos de seu pai voltados a uma constante descoberta: “O fulcro dessa experiência, que se modificou em certos termos no curso do desenvolvimento da personalidade do artista, fundamentava-se na consciência a mais profunda de si mesmo, de um princípio, seu ‘grande Eu’, a certeza absoluta de uma total liberdade cujo conhecimento o preenchia de uma alegria iluminada, de uma plenitude de ser e de um desejo de comunicar essa alegria e essa liberdade a todos os homens e ao universo inteiro. O instrumento dessa livre pujança era a arte, capaz de agir sobre o universo espiritual, mas também material” (Alexandre Scriabine, “Notes et Réflexions”, traduction et présentation, Marina Scriabine, Paris, Klincksiek, 1979).

Seria possivelmente o problema físico que acometeu sua mão direita nas fronteiras dos 20 anos (vide blog 15/01/2022) que predispõe de maneira mais acentuada a sua crise de ordem mística.

Para a compreensão da linguagem musical de Scriabine e de suas transformações, necessário partir-se do testemunho de Marina Scriabine a respeito desse mal que o atingiu: “Pela primeira vez, ele se via frente à hostilidade do mundo exterior, material, que se opunha à sua pujança criativa. Contudo, o abatimento, a resignação ou o desespero eram opostos à sua verdadeira natureza e seu forte elã criativo, que não seriam vencidos por desígnios contrários. Naquele ser frágil, nervoso, hipersensível se revelava uma vontade singular. Ao médico que vaticinou ser impossível solucionar seu problema da mão direita, ele respondeu ‘Sim, é possível’. Após meses de perseverantes esforços, reencontra sua técnica e continuaria sua carreira como pianista. Ao longo da crise, refletiu longamente. A revolta contra Deus e as leis do universo material, ao invés de abatê-lo, fortificou sua confiança nas forças interiores. Foi quando ele tomou consciência progressiva de seu ‘grande EU’, livre e divino, oposto ao ‘pequeno eu’ do indivíduo Alexandre Scriabine, submetido às limitações do espaço e do tempo”.

À medida que mencionarei vários escritos de Scriabine, colocarei obras pertencentes às diversas fases que demonstram as transformações escriturais provocadas pelo aprofundamento místico. Os 12 Estudos op. 8 estão imbuídos do pleno espírito romântico, sem descartar a influência dos Estudos de Chopin.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 8 nº 9, Alla Ballata (1894), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=WnJgD_lypLM

No início do século XX, Scriabine lê com entusiasmo obras de Nietzsche e esboça uma ópera que será abortada. À época, desabrochava um Scriabine voltado às possibilidades infindas do homem nesse direcionamento voltado ao Cosmos, poderoso quando sente a “atuação” desse grande EU através da Arte. Essa experiência, como bem salientam seu biógrafo Boris de Schloezer (vide os dois blogs anteriores) e Marina Scriabine, é fruto do interior do homem em seus almejos reflexivos, mas a vivenciar o cotidiano apenas como cotidiano. Scriabine fixara o êxtase cósmico como meta, princípio que o acompanhou durante a existência, pois esse objetivo fora determinado pelo Único, como afirma o compositor: “A individualidade é a taça na qual o Único bebe o vinho do sofrimento e da alegria”. É importante entender que ao compor, mormente na última década de vida, Scriabine tinha a absoluta certeza de que sua criação era gestada através do grande EU, o que implicaria a apreensão do conhecimento pleno do mundo e o seu direcionamento ao Único, à Divindade, a Deus. Apesar de ter elaborado um processo de composição, acreditava que a teoria só poderia ser entendida se resultasse na criação a partir dessa interiorização conceitual, o viver o EU, longe de um cotidiano com conteúdo até superficial, sendo a experiência interior, espiritualizada, fonte para as composições nascidas sob essa égide.

O início do século XX já evidencia um encaminhamento em direção à linguagem musical com características próprias. Se os Estudos op. 42 (1903) já se afiguram com perspectivas de transição num período em que há lembranças de uma admiração pelas criações de Liszt, consolidava-se a tendência voltada ao misticismo como meio de se chegar ao Único e ao Cosmos, palavras onipresentes no vocabulário de Scriabine.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 42 nº 1, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

Nos quatro cahiers de notas íntimas, Scriabine está em permanente debate com o pequeno eu e o grande EU. Nega-se, mas exalta-se. Há o nítido anseio por essa ligação com o Único. Deus é sempre presente, mas o sentir-se um nada também. Quando em exaltação, une-se ao Único em direção ao Cosmos. Esse constante debate influenciará decididamente sua escrita.

O primeiro cahier é breve e finda em 1904, mas há conceitos sobre a criação: “Nada explica a criação. Ela é a mais elevada representação (conceito), pois ela produz todos os conceitos. Eu digo que a criação é a distinção; criar alguma coisa quer dizer limitar uma coisa por uma outra. Mas isso não explica a criação. A distinção é também uma certa representação espacial e temporal. A distinção não explica o espaço e o tempo, porque ela não pré-existe ao espaço e ao tempo. Em geral é necessário compreender que explicar inteiramente a criação é impossível”.

No segundo cahier (1904-1905), nota 18, escreve em “versos” livres, a enfatizar esse Eu em permanente dialética.

Eu não sou nada
Eu sou a espera, eu sou a sensação
Eu sou o mundo
Lembrança e sonho
… Eu sou Deus
Eu não sou nada, eu sou a liberdade, eu sou a vida,
Eu sou o limite, eu sou o cimo
Eu sou Deus
Eu sou realização, Eu sou beatitude
Eu sou a paixão que consome tudo, que engole tudo
Eu sou o incêndio que invade o universo
E o precipita nos abismos do caos
(Eu sou o repouso) eu sou o caos
Eu sou o jogo cego das forças dissolvidas
Eu sou a consciência adormecida, a Razão extinta
Tudo está fora de mim
Eu sou a multidão indiferente.
Eu perdi a liberdade
Perdi a consciência
E só seu reflexo
Reside em mim
Como um elã cego
Do centro
Do sol
Do reflexo
De minha Divindade passada,
Que me esmaga no presente
Em direção à liberdade
Em direção à unidade
Em direção à consciência
Em direção à verdade
Em direção a Deus
Em direção a mim
Em direção à vida
Ó vida, elã criador (desejo)
Elã que cria tudo
Fora do centro, eternamente fora do centro
Em direção à liberdade
Em direção à consciência

Na anotação 19, escreve:

“Vós, sentimentos de angústia, religião, arte, ciência, toda a história do universo, vós sois as asas sobre as quais eu voei até as alturas. Mas vós não sois apenas asas, vós sois minha exaltação, minhas carícias, o jogo do meu capricho. Vosso lema: sempre o novo, de qualquer outro”.

Na de número 74

“Ama a vida de todo o teu ser e tu serás sempre feliz. Não temas ser aquilo que almejas, não temas teus desejos. Não temas a vida, tampouco os sofrimentos, pois não há maior vitória sobre  o desespero. Tu deves ser sempre radiante”.

Desse período, Feuillet d’Album, a primeira de três peças op. 45 (1904). Em 1960, o notável compositor Camargo Guarnieri disse-me que considerava o andante da Sonata nº 4, op. 30Feuillet d’album, op. 45 nº 1 como  obras pertencentes à “quinta-essência” musical.

Clique para ouvir, de Scriabine, Feuillet d’album op. 45 nº 1 (1904), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M

No terceiro cahier (1905-1906), Scriabine lança conceitos sobre o universo, sua criação e tem interesse o debruçamento sobre sua consciência pessoal: “O que ela representa em si como PORTADORA de certos elãs? A cada minuto eu experimento algo e disso tenho consciência, pois se trata da minha vida pessoal. Apresento-me como portador de uma vida pessoal que, em assim sendo, é a LIGAÇÃO dos fatos de minha experiência pessoal e nada mais, e minha consciência, como ‘mensageira’, é somente a atividade que elabora essa ligação, e nada mais. Assim, minha consciência pessoal é uma atividade que produz muito, quero dizer, que analisa e liga muitas coisas em um todo, que sintetiza”.

Entre 1911-1912, Scriabine compõe os três Estudos op. 65, seus últimos do gênero. A respeito do 0p. 65 nº 1, para o intervalo de nonas, escreve ao seu amigo Sabaneeff, um de seus biógrafos: “que depravação”. Apesar de apresentar em público o seu complexo repertório, suas mãos não lhe permitiam a abertura necessária para o intervalo de nonas no que concerne ao singular Estudo.

Durante a atividade paralela à composição, Scriabine interpreta, após os anos juvenis, recitais apenas com suas obras, muitas delas entre as mais virtuosísticas escritas para o piano. Um de seus mais importantes biógrafos, Faubion Bowers (1917-1999), consagra em três volumes, com farta documentação, o trilhar de Scriabine nessas duas abrangências e os respectivos programas apresentados nas salas de concerto (Faubion Bowers, “Scriabin, a Biography of the Russian Composer”, Tokio and Palo Alto (California), Kodansha, 1970, 2 volumes e “The New Scriabin-Enigma and Answer”, New York, St. Martin’s Press, 1973). Recebi carta de Faubion Bowers semanas após ter apresentado, em Junho de 1977, a primeira audição no Brasil (São Paulo, MASP) dos 26 Estudos de Scriabine. Escrevia o ilustre biógrafo, referindo-se inclusive ao Estudo op. 65 nº 1: “Penso que os opus 8, 42 e 65, com os curtos Estudos do início e intermediários, formam um maravilhoso programa. Como foi sua execução do Estudo das nonas?  Uma parada dura, não acha?”.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 65 nº 1 (1911-1912), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

O quarto cahier (1914) expõe a primeira versão do “L’Acte Préalable”, escrito que permaneceu do grande projeto de Scriabine. Texto contemporâneo das últimas Sonatas e do Poema Vers la Flamme.

Desde 1903 Scriabine já idealizava a criação daquela que deveria ser sua mais importante obra, Mystère, que avançaria ainda mais após as tantas inovações em Prométhée, le poème du feu (1908-1910). Seria uma obra total. Escreve: “Não haverá um personagem secundário, todos serão participantes. A representação exigirá pessoas e artistas particulares, e uma cultura completamente nova”. Scriabine a seguir destaca que se estaria diante de uma obra de comunhão global. O Mystère seria tão amplo que sua duração se prolongaria por sete dias, no Himalaia ou na Índia. Chegou a desenhar esboços gráficos. Marina Scriabine escreve: “Sem dúvida é a liturgia que pode fornecer uma imagem aproximada do Mystère. O Apocalipse nos propõe a imagem de uma vida transfigurada sob o aspecto de uma liturgia celeste. Nada falta: nem o altar, nem o incenso, tampouco os oficiantes, divididos em coros hierarquizados, dispostos em torno de uma vítima glorificada. O Mystère era também idealizado como uma liturgia de dimensão cósmica: a humanidade inteira deveria participar do ato libertador que, pela pujança da arte, a conduziria ao êxtase final e à união com o Único”.

A prematura morte de Scriabine em 1915, aos 43 anos, abortou a concepção ampla do Mystère. Restaria o “Acte préalable”, texto que bem faz entender as intenções de um compositor singularíssimo, um dos maiores mestres da composição.

Clique para ouvir o Poème de l’Extase de Scriabine, na interpretação da Orquestra Sinfônica da Rádio de Frankfurt, sob a regência de Markus Stenz:

https://www.youtube.com/watch?v=xQwLcKTAtfs

Estou a me lembrar de que, ainda na metade do século XX, Scriabine não granjeara o merecido lugar entre os mais ventilados compositores. Sim, era tocado, majoritariamente pelos pianistas russos. O boom a seguir foi extraordinário e hoje Scriabine está presente no repertório de quase todos os intérpretes. Proliferaram as gravações de alto nível, tanto para as obras para piano solo como para as orquestrais. Um compositor excelso. Um de meus eleitos.

Alexandre Scriabine’s thought is transformed as his mysticism grows. The influence of his thinking is evident when he is creating and his inner self surfaces. He left four notebooks with his writings, the last one with the “L’Acte Préalable” of what would be his greatest work: Le Mystère. His early death interrupted the project before it was finished.

 

Criação e misticismo

Scriabine era um místico,
e o místico nele determinava o pensador e o artista:
a originalidade de sua personalidade, filosófica e artística,
reduz-se em última análise
à originalidade de suas experiências místicas”.
Boris de Schloezer (1881-1969)

Entender o caminho composicional empreendido por Alexandre Scriabine compele-nos necessariamente a apreender sua trajetória, que se acentuaria progressivamente mais mística a partir basicamente do início do século. Sem ter deixado uma obra literária finalizada com fins precípuos, como o fez com suas composições, seus textos, tantos deles esparsos e até repetitivos, dão a conhecer o lado teosófico, filosófico e místico de Scriabine. Através deles, o legado criativo musical do compositor ganha sentido e não é difícil compreender que, das obras exacerbadamente românticas até as fronteiras do século XX, a aceleração visando a uma fusão música e misticismo em direção à compreensão do Cosmos se torna evidente até a sua morte prematura em 1915.

A trajetória de um compositor é marcada por transformações escriturais, mais acentuadamente a partir do século XIX. Apenas para citar uns poucos exemplos, mencionaria as criações de Beethoven, Liszt, Schumann e Debussy, criadores nos quais é nítido esse caminhar. No caso de Beethoven, o desenvolvimento instrumental, aumentando inclusive progressivamente a extensão do teclado, que obviamente necessitou de uma tábua harmônica mais consistente para resistir à tensão de cordas maiores, fê-lo adaptar-se às novas possibilidades que certamente influíram em seu pensar musical, assim como a dramática progressão da surdez. Liszt, nos anos derradeiros, não mais necessitava exibir a grande virtuosidade que caracterizava a feitura de suas obras de antanho e suas consequentes criações adquirem  configuração interiorizada.

Com Scriabine há um processo que tem sua semente fincada no dia de seu nascimento, 6 de Janeiro, festejo do Natal, sendo a noite de 6 para 7 considerada de “vigília noturna” e celebrada pelos russos.  Scriabine não esqueceria essa data e, atento, frequentou futuramente em Bruxelas a Sociedade de Teosofia, buscou literatura especializada, admirava adeptos ilustres voltados às teorias teosóficas e filosóficas da época e, sem ter deixado uma obra literária, escreveu textos conclusos ou simples anotações em seus carnets. Seguir a cronologia desses escritos corrobora entender seu caminhar e a lenta “metamorfose” em direção a uma escrita musical distante das muitas normas ditadas pela tradição.  Esses escritos esparsos, tantas vezes sem sequência, serviam para Scriabine como um aide memoire, uma fórmula usual para esboços musicais, literários ou ideias gráficas. Por vezes, pela interrupção advinda de um fato exterior, determinado conceito não teria sequência.

Importa compreender que possivelmente, não fosse a atração que o levou às transformações da escrita musical, Scriabine teria persistido no vasto movimento romântico que perduraria, possivelmente, até a morte de Rachmaninov, seu justo coetâneo, em 1943.

Clique para ouvir, de Scriabine, o Estudo op. 8, nº 12 (Patetico, 1894), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Scriabine gostava de expor suas opiniões sobre música, arte, filosofia com pessoas das várias camadas sociais, mas diante de figuras ligadas às artes, à intelligentsia, mostrava-se acalorado. Tantos e tantos conceitos se perderam no frágil universo da oralidade. No livro “Alexandre Scriabin”, seu cunhado Boris de Schloezer, escritor e musicólogo, irmão de Tatiana, sua segunda esposa, aprofunda-se no pensamento de Scriabine e busca revelar os porquês de tão sensível transformação do pensar. Relata os primórdios de um entendimento que se daria ao longo da existência: “Quando vi Scriabine pela primeira vez em casa de meu tio, em 1895, em Moscou, tinha eu quinze anos. Fiquei impressionado pelo aspecto doentio e frágil e por sua grande nervosidade. Impressionou-me seu toque singular, tão diferenciado de tudo que ouvira até então”. Somente no inverno de 1902 Schloezer reencontraria Scriabine, então professor do Conservatório. “Mantinha a mesma fragilidade delicada, algo até infantil. Após uma conversa de uns dez minutos sobre nossos amigos comuns, nossos parentes, sua saúde, nossa conversa enveredou por algo mais abstrato e se transformou rapidamente numa discussão filosófica, acalorada e apaixonada. Assim começaram nossos entendimentos” (Boris de Schloezer, “Alexandre Scriabine”, Paris, Cinq Continents, 1975).

O relato faz-se necessário a fim de se entender não apenas a fragilidade física do músico, mas a propensão ao aprofundamento em áreas aparentemente distantes do conteúdo musical, e que levariam Scriabine não apenas a fixar seus conceitos sobre o pensar, como a ter uma visão singularíssima da escrita musical. Nesse amálgama, a liberdade do homem é fundamento essencial. A musicóloga Marina Scriabine (1911-1989), filha do compositor, escreve: “A paixão intransigente de Scriabine pela liberdade, uma liberdade total, absoluta, sem limites, encontrará também a simpatia e a compreensão do leitor contemporâneo” (introdução do livro de Boris de Schloezer). Essa liberdade não teria sido uma das causas de a própria interpretação de Scriabine ao piano, mormente nos andamentos lentos, comportar a flutuação do tempo? Seu contemporâneo N.N. Chercass menciona o excesso de rubatos nas execuções de Scriabine (1916). Sob outra égide, o ilustre pianista e professor Heinrich Neuhaus (1888-1964) afirmaria: “Tocando Scriabine meu pé não deixa o pedal”. Certamente nas muitas graduações.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Dois Poemas op. 32 (1903), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=oCivxihlJKY

Após a exposição de duas essencialidades de Scriabine, Schloezer sintetiza o místico, antes de se alongar sobre o tema. “Tentei recriar a imagem de Scriabine, pensador e artista, essencialmente me baseando em minhas lembranças. Meu caminho se estendeu da periferia ao centro, levando-me ao epicentro de sua personalidade, à sua essência mais íntima, a esse subsolo profundamente oculto que, estou convencido, alimentou com sua substância suas ideias e suas criações artísticas. É nesse epicentro que se encontra a poderosa fonte de sua criação e que mergulham as raízes de seu pensamento e de sua atividade, estreitamente entrelaçadas na obscuridade. O que pensava o artista e a maneira como pensava, o que ele queria e fazia, tudo era determinado pelo que ele havia experimentado diretamente e pela maneira como ocorrera essa experiência”.

Numa missão visionária, Scriabine idealizou uma obra, Mystère, gestada lentamente desde o início do século e que pressupunha a “arte total”, música, teatro, pintura, gesto, poesia. Concluiu apenas o Acte préalable em 1913.

Sob outra égide, os quatro carnets contendo pensamentos, textos breves conclusos ou interrompidos, têm interesse (Alexandre Scriabine, “Notes et Réflexions”, Paris, Klinckseeck, 1979). Marina Scriabine, em notável introdução, sintetiza o conteúdo dos carnets: “Para Scriabine, não havia mais o eu ou o não eu, pois tudo estava interiorizado por ele. Chegara desse modo a uma maneira singular do pensar. Só ele existia, ele era Deus e criador do universo, mas somente no ato da criação. As expressões ‘eu não sou nada’, ‘eu sou Deus’ pontuam como uma litania certos textos desse período. Ele nada é no não-ato, na não-criação. Ele é tudo, ele é Deus, no ato criador”.

No blog anterior citei o notável Dr. Eduardo Etzel (1906-2003), meu psicanalista altruísta durante dez anos (1976-1986). Após nossas conversas sobre as essencialidades detectáveis da personalidade de Scriabine, tendo a ele mencionado inúmeros exemplos progressivos de motivos  “ansiosos”, apresentando ao piano o processo constituído de motivos curtíssimos intercalados por pausas, o notável especialista levantou a hipótese da presença de motivos neurótico-obsessivos na criação do compositor, utilização que se acentua ao longo da existência.

Boris de Schloezer comenta a presença da nervosidade do jovem Scriabine. Outros comentaristas também traduzem essa assertiva de Schloezer. N.N. Cherkass, professor russo, escrevia artigo em 1916 sobre Scriabine, um ano após sua morte: “um homem doente, com uma doença interior que lhe angustiava todo o sistema nervoso”. Dois Estudos curtíssimos, op. 49 nº 1 e op. 56 nº 4 (1905-1908, respectivamente), evidenciam, na primeira década dos século XX, essa “nervosidade” observada por Boris de Schloezer e o estado ansioso. Inseri a teoria proposta pelo Dr. Eduardo Etzel  em artigo que escrevi para os Cahiers Debussy (nº 7, 1983) do Centre de Documentation Claude Debussy, Paris, como citado no blog anterior.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, seus dois mais curtos Estudos para piano, pertencentes a coletâneas de peças breves onde é notória a presença desses curtos motivos angustiantes. Interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=VaDmlkczoho

Ao escrever o monumental Prométhée – le poème du feu (1908-1910), Scriabine já se mostra um compositor muito além de seu tempo, totalmente imbuído desse amálgama música – artes outras – misticismo. A obra foi concebida para grande orquestra, com piano solo, coros mistos (vocalizando) e o inovador ‘órgão de luzes’, que projeta efeitos de luz no transcorrer da execução. Tudo idealizado pelo autor. A extraordinária criação em vários segmentos apresenta esses motivos rápidos intercalados por pausas, mormente nas últimas páginas.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, Prométhée – le poème du feu, com a Sinfonieorchester –  Frankfurt Radio Symphony, sob a regência de  Markus Stenz, tendo como solista de piano Dmitri Levkovich, dois coros mistos (vocalizando) e o inovador “órgão de luzes”, que projeta fachos luminosos no transcurso da obra:

https://www.youtube.com/watch?v=10ESN_t7txI

A divulgação da opera omnia de Scriabine tem se acentuado, principalmente após a segunda metade do século XX. Do romantismo exacerbado à escrita precursora de tantos processos que vingaram no século XX, Scriabine tem o sopro do etéreo, aponta para uma meta de união das artes, da literatura e de tantas outras manifestações. O homem a caminhar pela história rumo ao Cosmos.

On how Alexander Scriabine’s interest in mysticism and esoteric writings of his time affected the evolution of his works, going from the romanticism of the earliest compositions to the development of a highly personal style as the music-mysticism integration of his final period grew stronger.

 

A partir de uma história real, a imaginação viaja

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva (“Espólio”)

Recebi de uma leitora o livro “O último duelo” (Rio de Janeiro, Intrínseca, 2021) de Eric Jager , crítico literário voltado principalmente à literatura medieval. O enredo se passa durante a Guerra dos 100 anos entre França e Inglaterra, a ter como protagonistas principais três figuras que fazem parte do histórico real da França: Jean de Carrouges, cavaleiro normando, sua esposa Marguerite e o escudeiro Jacques Le Gris. Vivendo em pleno século XIV, as três figuras permanecem na literatura francesa através dos séculos.

Tenho sempre desconfiança, possivelmente devido aos trabalhos exegéticos exigidos na Academia, ao ler pesquisas sem dúvida sérias, mas intermediadas pela imaginação do autor, fator expurgado na área da História quando de dissertações e teses. Sob outra égide, há que se destacar o desiderato maior de um autor, no caso Eric Jager, doutor pela Universidade de Columbia e professor premiado de inglês na UCLA, que, ao imaginar situações possíveis através da leitura de fontes fidedignas, angaria um número incomensurável de leitores não necessariamente interessados na veracidade dos fatos. A notoriedade de “O último duelo”, inclusive, inspirou o filme “The Last Duel”, dirigido pelo renomado Ridley Scott. Na “Nota do autor”, Eric Jager esclarece os porquês: “Todos os personagens, locais, datas e muitos outros detalhes – incluindo o que as pessoas da época disseram e fizeram, suas declarações muitas vezes contraditórias na corte, as somas pagas e recebidas, e mesmo as condições climáticas – são reais e baseados em tais fontes. Quando estas se contradizem, apresento o relato mais provável dos fatos. Quando o registro histórico é insuficiente, uso a imaginação para preencher alguns hiatos, sempre tentando ouvir as vozes do passado”. Essa escuta do imaginário, ao “complementar” fontes fidedignas, configuraria enxertos à história. Se a lacuna de uma fonte documental existe, inventá-la dirige o texto a um público menos exegético, mas necessariamente amplo, pois mais preocupado com a narrativa em si, curioso sobre o desfecho, do que com a interrogação que leva à dúvida. O esclarecimento de Eric Jager evidencia propósito claro.

Foram dez anos de longa pesquisa frente a um manancial de documentos que levou o autor a tantas viagens, a fim de que sua visão dessa história, a envolver personagens que permanecem através dos séculos graças à larga documentação, fizesse com que renascessem numa narrativa harmoniosa, tornando-os conhecidos por número incalculável de leitores e, como consequência, pelos amantes do cinema.

Uma brevíssima sinopse faz-se necessária para que se conheça o enredo histórico. Está-se em pleno século XIV durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), que antagonizou França e Inglaterra. O cavaleiro normando Jean de Carrouges, que participara de várias batalhas, em um de seus retornos ouve a confissão de sua esposa, que assegura ter sido estuprada por um seu ex-amigo de combates, mas há tempos inimigo declarado, o escudeiro Jacques Le Gris. O caso, levado a várias instâncias judiciárias, recebe finalmente a decisão do Rei Carlos VI, então nos seus 17 anos, após a autorização do Parlamento de Paris, declarando que haveria o duelo entre os dois. Àquela época as penas eram implacáveis. Se perdesse, Carrouges não só morreria na arena, como sua esposa Marguerite seria queimada viva por perjúrio. Foi o último duelo oficial do gênero em França. Munidos de todo o arsenal de combate, como armadura, cavalo, lança, machado, espada e adaga, um dos combatentes encontraria a morte, tida como expressa vontade de Deus. Através da história, dúvidas permaneceram a respeito da veracidade das confissões.

Há na internet documentação sobre esse tumultuoso caso, que se prolonga ao longo dos séculos nem sempre no mesmo direcionamento, mas que ganharia ímpar notoriedade através do livro de Eric Jager e do filme dirigido por Ridley Scott.

Frise-se que Eric Jager conduz a trama de maneira a manter o leitor atento ao desenrolar do enredo e tece comentários de interesse sobre os julgamentos àquela altura e as penas fatais dos condenados, de extrema crueldade.

Estou a me lembrar de que, após gravação de CD dedicado ao notável compositor português Fernando Lopes-Graça, em Leiria no ano de 2003, visitei, no Castelo Medieval da cidade, no alto de uma colina, a Exposição Internacional dos instrumentos de tortura autênticos usados na Idade Média. Para cada engenho fatídico havia um painel com cópia de desenho ou pintura de época, a evidenciar a utilização do instrumento de martírio. Aconselharam-me a não visitar, tamanho o impacto. Todavia, quis conhecer. Entendi os limites absolutos da tortura. Ao sair da Exposição quiseram-me vender um magnífico livro com “belíssimas” ilustrações. Respondi jocosamente à funcionária: “já não basta a Exposição?”. Na descida do belo Castelo Medieval restaurado deparei-me com várias senhoras a vomitar.

Após a leitura assisti ao filme “The last duel”, dirigido por Ridley Scott. Sendo um filme e não um documentário, mais elementos fantasiosos foram adicionados para que a condução do enredo se tornasse palatável. Se, sob uma ótica, entendo impecáveis a caracterização dos personagens, dos locais escolhidos, dos Castelos autênticos e das batalhas, a condução da história, a objetivar o grande público, está plena de intermediações criadas pelos roteiristas Nicole Holofcener, Ben Affleck e Matt Damon, responsáveis pelas três partes do filme. Nestas, há repetições, pelo fato de os “roteiros” dos três personagens históricos terem, por vezes, situações semelhantes. Resulta uma imaginação ainda mais fecunda àquela do livro de Eric Jager. A escolha da iluminação dos interiores leva ao espectador a noção dos recintos de antanho, à luz de velas ou tochas, o que tem boa dose de autenticidade. Os atores Matt Damon (cavaleiro Jean de Carrouges), Adam Driver (escudeiro Jacques Le Gris), a bela Jodie Comer (Marguerite de Carrouges) estão excelentes em seus respectivos papéis tão contrastantes, assim como Ben Affleck (Conde Pierre d’Alençon). Pena que o jovem Rei Carlos VI apareça sempre como um imbecil. Reza a história que, a partir de determinada altura, teve acessos de loucura.

Acredito que a leitura do livro e o consequente filme possibilitem reflexões sobre a realidade dos fatos e comparações com acontecimentos hodiernos.

“The Last Duel”, a book by Eric Jager, a literary critic and specialist in medieval literature, is of interest. The author has done researches in reliable sources, but uses his imagination to fill in gaps in the real story. It reached huge audiences, turning into a motion picture directed by Ridley Scott. Book and film, despite deviations from reality, present the last judiciary duel held in 14th-century France between a knight, a squire and, as a pivot, the wife of the first, with themes that echo powerfully until today.