Navegando Posts em Literatura

A revista portuguesa Glosas e o compromisso com a Música

O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
É tê-las feito.
Agostinho da Silva
(“Parábola da mulher de Loth”)

Desde Maio de 2010, quando do primeiro número de Glosas, houve a preocupação de divulgar a atividade musical de Portugal num período difícil em que a Cultura Humanística, e dela a fazer parte a Música, está a sofrer com o avanço de inúmeras atividades ditas culturais, sem lastro e efêmeras. Glosas luta bravamente desde o início, sempre sob a direção do competente Edward Ayres de Abreu e colaboradores de mérito. Convidado pelo diretor, tive vários ensaios publicados na prestigiada revista sob a rubrica “Ecos d’Além Mar”, a abordar a música portuguesa de concerto, que sempre cultuei, e dois compositores pátrios: Henrique Oswald (1852-1931) e Gilberto Mendes (1922-2016).

Durante anos, Glosas manteve as publicações em formato de revista, hoje no formato livro. O conteúdo qualitativo se mantém e é alvissareiro o fato de Glosas permanecer um veículo basilar nesses últimos quatorze anos. Antolha-se-me que Glosas é a publicação, no gênero, mais significativa em Portugal. Glosas 23 foi editada pela 9 Musas, Lda para o MPMP Patrimônio Musical Vivo, Lisboa.

O presente número (23) é rico em temas diversificados. O roteiro se abre com preciosa entrevista que um dos mais destacados compositores da nova geração, Nuno da Rocha (1986-), concede a Edward Ayres de Abreu. Não poucas vezes nos referimos, em posts anteriores, à sensível deterioração cultural, em termos globais, a atingir países em graus diferenciados.  Na significativa entrevista, Nuno da Rocha se mostra por vezes cético nesse mister. Ayres de Abreu bem se posiciona na apresentação de Glosas: “Nuno da Rocha fala-nos mais de sombras do que de sol – e não podemos senão compreendê-lo porque, em grande medida, as nuvens de que fala são as de toda uma geração – de um país? – que se vê obrigada – que se abandona? a navegar à vista e a reduzir futuros a retóricas”. A entrevista expõe com clareza o pensamento do compositor em tantos elementos constitutivos da música, a abordar técnica, estética, recepção, máxime criação. Algumas respostas a Ayres de Abreu merecem reflexão: “Não é só a minha música, a música que se faz hoje em dia, que é muito diversa, ela por si fixa as pessoas. O problema é haver estratégias para que essas pessoas vão às salas”. Menciona duas de suas criações: “Não tenho dúvida nenhuma de que alguém que tenha ido ver o Paraíso ou o Inferno (obras do entrevistado), mesmo a mais mozartiana da vida, foi contra a parede. E mesmo que saia de lá a dizer ‘Caramba, tanta dissonância!’, aquela escuta teve impacto, e certamente abriu ali qualquer coisa…”. Ayres de Abreu questiona: “Escreverás o Purgatório? E a resposta é imediata: “Não, já estamos em cima dele”. A entrevista é bem rica, a destacar não apenas o pensamento de Nuno da Rocha, como o seu modus operandi num labor que surpreende, mercê das inúmeras composições. “Desde que tenha orquestra, aceitaria tudo” afirma Nuno da Rocha.

Edward Ayres de Abreu formula perguntas para pronta resposta, “Inquérito Fugado”, e entre elas, “Compor música: por quê?” É um grito. “Para quem?” Para mim e para ninguém (pelos vistos). “Até quando?” Até breve, creio; Ritual diário ou manifestação ocasional? Quando tenho uma encomenda é um ritual diário; “Há ‘música antiga’ na tua música?” Claro; “Ópera ou teatro?” Teatro; “Campo ou cidade?” Lisboa. “Sons insuportáveis”. Restaurantes cheios de gente. “Sonhos para concretizar enquanto compositor?” Que a minha profissão comece a ser uma profissão.

Em entrevista à Tatiana Bina, os professores Helena Rodrigues e Paulo Maria Rodrigues expõem os trabalhos da relevante Companhia de Música Teatral nos seus “25 anos reencantando o mundo”. A permanência efetiva, com tantos projetos voltados aos bebês e à infância, e outras mais aspirações condicionam a Companhia de Música Teatral como pioneira em vários caminhos. Mérito de Glosas ao evidenciar o valor dos dirigentes.

Ana Sofia Malheiro se debruça sobre a Orquestra sem Fronteiras fundada por duas figuras idealistas, Catarina Távora, coordenadora de projetos pedagógicos da orquestra, e Martim Sousa, diretor musical, e que surgiu para dar oportunidade a jovens instrumentistas que, por múltiplas razões, não encontram caminhos para se desenvolver. O projeto, que vive do mecenato, não se restringe apenas à Orquestra, mas mantém “Residências em Música de Câmara” e os “Laboratórios de Escuta Criativa”, este voltado às crianças do primeiro ciclo. Catarina Távora explica essa ação junto às crianças do primeiro ciclo, onde “se trabalha a imaginação, a atenção, a criatividade, além da empatia e da relação intra e interpessoal”. Estimulantes dois outros projetos, o “Cantar-o-Lar”, a ter como objetivo “dinamizar quatro lares na cidade de Aveiro”, e “Música no Lugar Certo”, a atender doentes com câncer de mama do IPO de Coimbra. A OSF percorre o interior, “tocando em terras onde nunca uma orquestra havia passado”. Uma frase de Martim Sousa Tavares merece atenção: “Num país que está claramente virado para o litoral, quem vive no interior sente que tem uma capital que lhes vira as costas”.

Substancioso estudo, fundamentado na obra para piano do compositor Ruy Coelho (1889-1986), foi realizado por Bernardo Santos, resultado de suas pesquisas para doutorado. Pianista de mérito, Bernardo Santos focaliza com agudeza a obra para piano solo, piano camerístico e piano e orquestra. Apresenta a lista da opera omnia de Ruy Coelho, pormenorizando inúmeros intérpretes das suas criações através das décadas. O primeiro deles a ser mencionado foi colega de Ruy Coelho quando se aperfeiçoavam na Alemanha. Trata-se de Guilherme Fontainha (1887-1970),  pianista e professor respeitado no Brasil. Morava no Rio de Janeiro, mas quando em São Paulo tive duas ou três aulas com o Mestre Fontainha. Uma das composições de Ruy Coelho, Sonatina (1933), cuja estreia se deu pela pianista Nina Marques Pereira, foi gravada pelo musicólogo e pianista Bernardo Santos.

Clique para ouvir, de Ruy Coelho, Sonatina, na interpretação de Bernardo Santos:

https://www.youtube.com/watch?v=S5Af5RjZSPM

No próximo blog comentarei a sequência de artigos da referencial Glosas.

Glosas magazine, launched in 2010 in Portugal, is now in its 23rd issue. It covers a wide range of music. Now in book format, it maintains its continuous quality over time.

 

 

Considerações a partir de um livro de História para estudantes

Roma, que na época da sua grandeza,
colocou todo o mundo civilizado sob as suas leis,
impregnou-o do seu espírito e continua a dominá-lo
mais de mil e quinhentos anos após a queda do seu império
.

A.Ammann e E.-C. Coutant (1916)
(“Histoire Romaine et Les débuts du Moyen Âge”)

A pergunta que sempre me faço: A Cultura Humanística sobreviverá à avalanche do desmanche? Ao longo dos anos, foram inúmeros os blogs que escrevi a respeito de uma nítida decadência, estimulada por inúmeras fontes com esse desiderato preciso. Quando Mario Vargas Llhosa comentou que se processa a derrocada da Cultura Erudita, poderíamos estendê-la para todas as áreas interligadas. Não precisamos ir longe nestas deduções. Na simples consulta aos principais sites de notícias, verifica-se que, a começar pelo mau trato da língua portuguesa, Costumes e Moralidade de há décadas atrás já não fazem parte desses veículos de divulgação. Após matérias de articulistas sobre política, justiça, esporte e cotidiano, há profusão de intromissões na vida de figuras muito ventiladas, que são expostas nesses espaços em suas intimidades. Os jornais de maior circulação, após um sentido emagrecimento em termos de páginas, tiveram igualmente empobrecimento no conteúdo. Razões há, pois leitores na idade madura que acompanharam durante décadas essas publicações perderam gradativamente o interesse nessa nova configuração dos periódicos. Não seria a decadência cultural uma das causas do encolhimento?

Da parcela da biblioteca que herdei de meu Pai, um livro me chamou a atenção, “Histoire Romaine et les débuts du Moyen Âge” (Paris, Fernand Nathan, 1916), escrito pelos professores A. Ammann e E.-C. Coutant, destinado aos alunos do segundo ciclo em França. Apreendi que, se no início do século XX a idade de entrada para o segundo ciclo variava, a partir de 1927 estendeu-se a escolaridade obrigatória para 14 anos. O livro em pauta destinava-se aos estudantes adolescentes, sendo que é de causar admiração o conteúdo amplo e extremamente didático do livro em suas 451 páginas! Dividido em quatro partes: Os primeiros tempos de Roma, A conquista do mundo, O Império romano e os Inícios da Idade Média, todas com subtítulos que exibem textos redigidos com a tão tradicional clarté française, glorificada mundo afora, máxime àquela altura. Os autores no prefácio salientam: “resolvemos tornar nossos livros realmente úteis ao maior número de alunos, e fazer não simples livros de leitura, mas verdadeiros instrumentos de trabalho”. Terminam considerando: “Não temos a ambição de transformar os alunos em eruditos; mas nós cremos ser necessário que eles conheçam o nome, o caráter, o valor das grandes obras históricas, cuja existência ninguém deveria ignorar”. Indicam bibliografia a ser consultada e como encontrar nessas obras capítulos e páginas “que podem oferecer interesse especial”.

Amplamente ilustrado com desenhos apropriados, a fim da fixação na memória do aluno, o livro não se atém unicamente aos fatos ocorridos e documentados, mas descreve os ambientes naturais, enriquecendo e sedimentando o aprendizado. Como exemplo, para o maior entendimento dos adolescentes, a Itália é “dissecada” sob o aspecto geográfico: continental, peninsular, insular, populações nessas terras, força da natureza e as erupções vulcânicas. Descrevendo pormenores, após essas premissas geográficas e os primeiros povos, os autores inserem um quadro a recapitular as origens romanas: I Geografia física da Itália, II Geografia política, III As populações, IV Roma sob os reis. Essa metodologia resultaria certamente numa fixação maior do aprendido pelos alunos. Os tantos quadros ao longo da obra são sempre precedidos por item essencial — “Deveres escritos” — e neles há várias perguntas sobre os temas expostos, que devem ser elaborados pelos adolescentes. Dois outros itens são fundamentais, um “Índice Geográfico” e leituras recomendadas. Entre estas, estão presentes autores como Fustel de Coulanges (1830-1889), autor da célebre “A Cidade Antiga”, Jules Michelet (1798-1874), este um dos maiores historiadores do século XIX, assim como inúmeros outros escritores que se dedicaram aos temas tratados, tanto sobre história como temáticas relacionadas. Impressiona ao longo do livro a riqueza bibliográfica.

No desenrolar da História Romana, as muitas etapas por que passou o Império Romano, bem antes da sua instauração até a sua decadência, são didaticamente explicadas. Há ênfase às Guerras Púnicas, a confrontar Roma contra Cartago, assim como a tantas outras contendas para extensão territorial.

“Histoire Romaine…” pormenoriza os dois séculos da vigência da República Romana e sua queda, assim como a ascensão posterior dos Imperadores, nomeando-os e considerando suas ações individualizadas, seus erros e acertos, sempre ao final aguçando a mente dos alunos através dos deveres a serem por eles cumpridos.

De interesse o debruçamento sobre a sociedade nos tempos do Império. São estudados a vida romana, Pompeia, os espetáculos, as escolas, os costumes, a aristocracia e aquelas que, à altura da “Histoire Romaine…”, eram denominadas as classes inferiores e seus escravos.

Um longo segmento do livro aborda o cristianismo, sua aparição na sociedade, seus efeitos, a perseguição sofrida, a abolição posterior do paganismo, mercê da decisão do Imperador Teodósio, que reinou de 378 a 395, o que tornou o cristianismo (catolicismo) a religião oficial. O imperador tem menção especial dos autores: “Teodósio, ‘o último dos Romanos’, conhecido através dos tempos como ‘Teodósio, o Grande’. Não seria pelo fato de ter sido ele um grande gênio, mas tinha um admirável bom senso prático, talentos como administrador e general e, graças às suas qualidades, conseguiu retardar em alguns anos a queda do Império”. Foi após a sua morte que houve a cisão do Império, tornando-se doravante Império Romano do Ocidente, que findou em 476, e Império Romano do Oriente, que durou até 1453 com a queda de Constantinopla.

O desenrolar do livro encaminha o aluno leitor até os primórdios da Idade Média, como bem expresso no título. Os romanos consideravam bárbaros todos povos que habitavam fora do Império. Diversos ocupariam os espaços conquistados com a decadência do Império Romano: Germânicos, Francos, Anglo-Saxões. Em “Histoire Romaine et les débuts du Moyen Âge” há um esboço relativo aos povos invasores, seus costumes, suas organizações sociais. Igualmente abordam mais resumidamente o Oriente, os árabes e o Imperio Bizantino.

Embora haja professores e pesquisadores na acepção, dedicados ao estudo de temas voltados à Antiguidade e, entre estes, história dos povos, arte, literatura, filosofia, ciência, assiste-se no país, sistematicamente, a um desmonte do conhecimento das humanidades. Chega a ser vexatória a comparação do livro francês para o segundo ciclo francês nos idos de 1916 com o material utilizado presentemente!!! Pouco a pouco, as novas gerações consideram o passado fundamental apenas conhecimento sem nenhum interesse na era da internet. Como curiosidade, por vezes ausculto jovens alegres e descontraídos cursando escolas renomadas. O desconhecimento dos studia humanitatis é notório, sem contar as disciplinas voltadas às ciências exatas, a resultar na própria deterioração das provas escritas e da expressão oral. Infelizmente, muitos dos programas apresentados aos adolescentes têm um forte teor ideológico, que se afigura como de maior importância para determinados docentes. E a contaminação se dá.

Sou cético quanto ao retorno aos estudos aprofundados das humanidades no nível dos ciclos juvenis. O que se me afigura com esperança é a transmissão desses conhecimentos no âmbito familiar, pois ainda há quantidade de famílias que cultuam o riquíssimo conhecimento legado por figuras insuperáveis em suas respectivas áreas. Oxalá isso permaneça como estandarte para um futuro…

“Histoire Romaine et les débuts du Moyen Âge”, published in 1916 and intended for the second cycle in France, i.e., teenagers, shows the gaping distance from what is taught today to the same age group, due to a clear decline in the study of Humanities.

Três poemas de Aloysius Bertrand inspirando Maurice Ravel

A música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro (1850-1923)

O tríptico de Maurice Ravel (1875-1937), “Gaspard de la nuit, é uma das obras mais significativas do repertório pianístico de todos os tempos. Ao buscar no Youtube gravações do notável pianista português Sequeira Costa, encontrei o seu registro fonográfico de “Gaspard de la nuit” inserido recentemente no aplicativo. Veio-me a ideia de compartilhá-lo com os leitores.

Estou a me lembrar de que em Paris estudei seis meses com o ilustre pianista e professor Jacques Février (1900-1979), que fora mestre também de Sequeira Costa dez anos antes. Février foi o intérprete da primeira audição em Paris do Concerto para a mão esquerda de Ravel. Disse-me ele que nenhum outro pianista tocava “Gaspard de la nuit” como Sequeira Costa, que compreendera o tríptico em sua essencialidade, e que não conhecera pianista com uma técnica tão impressionante como a dele. Estávamos no longínquo 1959.

Quantas não foram as interpretações do tríptico que ouvi ao longo das décadas? Tantas extraordinárias, outras boas. Contudo, ao ouvir presentemente a gravação de Sequeira Costa, tantos anos após uma primeira escuta, comungo a opinião do mestre Février. Necessário se faz traçar algumas considerações concernentes à “Gaspard de la nuit”, obra que também interpretei no Brasil e no Exterior, assim como outras duas composições referenciais de Ravel, “Miroirs” e “Le tombeau de Couperin”. Saliento que àquela altura, fronteiriça aos anos 1950-1960, estudei com Sequeira Costa os 24 Estudos de Chopin e algumas Sonatas de Beethoven.

Quantos não foram os compositores que encontrariam na poesia o veio inspirador para canções acompanhadas ao piano ou orquestra, óperas e seus enredos poéticos, ou, numa “abstração”, para piano solo a partir do conteúdo do poema? Franz Schubert (1797-1828), Robert Schumann (1810-1856), Gabriel Fauré (1845-1924), Hugo Wolf (1860-1903), Claude Debussy (1862-1918) e Camargo Guarnieri (1907-1993) são alguns dos nomes que compuseram lieds, mélodies ou canções para canto e piano, realizando o perfeito amálgama.

Apreender o conteúdo poético em sua abrangência e transformá-lo em outra categoria criativa na esfera da arte requer requisitos essenciais por parte do transpositor. Maurice Ravel, ao conhecer, por intermédio do insigne pianista e seu amigo Ricardo Viñez (1875-1943), o livro de Aloysius Bertrand (1807-1841), “Gaspard de la nuit”, debruça-se sobre três dos inúmeros poemas em prosa, Ondine, Le Gibet e Scarbo. A poética de Aloysius Bertrand, a integrar a literatura fantasmagórica, sofre forte influência do escritor romântico alemão E.T.A. Hoffmann (1776-1822) e do artista Jacques Callot (1592-1635), autor de desenhos e gravuras, tantos desses voltados a um mundo depressivo. A curiosidade de Ravel foi campo fértil para a apreensão, no caso de “Gaspard de la nuit”, de conteúdos românticos cinzentos.

Aos 17 de Julho de 1908, ano da composição do tríptico para piano, Ravel escreve à sua amiga Ida Godebska: “… De momento, a inspiração parece estar a fluir. Após longos meses de gestação, Gaspard de la nuit vai ver o amanhecer. Foi o diabo que veio, Gaspard, o que é lógico, uma vez que é ele o autor dos poemas”.

A primeira peça, Ondine, figura tão presente na imaginação de outros compositores, como Claude Debussy (8º Prélude do primeiro livro), flui na pena sensível de Ravel como sedutora a partir da estrofe do poema em prosa de Bertrand: “Murmurando uma canção, ela me suplica que coloque em meu dedo o seu anel para me tornar o esposo de uma Ondine e visitar com ela o seu palácio, tornando-me o rei dos lagos”. Ravel empregaria anteriormente em duas obras capitais, Jeux d’eau e Une barque sur l’océan (terceira peça de Miroirs), processos pianísticos muito próximos.

Le Gibet recebe, da parte do insigne pianista Alfred Cortot (1877-1962), uma observação essencial: “Seria difícil supor um contraste de sentimento mais impactante do que este que opõe, ao fluido encantamento anterior, o sinistro impressionismo do Gibet. Nessa peça, vemos Ravel se aventurar na interpretação musical das aterradoras imagens contidas no poema de Aloysius Bertrand com a mesma lucidez, a mesma pujança divinatória que ele emprega para definir as sensações mais familiares”. Tem-se como última estrofe do poema de Bertrand em prosa: “É o tilintar do sino nas muralhas de uma cidade sob o horizonte, e a carcaça de um enforcado avermelhada pelo sol poente”. O si bemol – parte central do teclado – a tilintar inflexível, dita a sombria evolução durante o transcurso de Le Gibet em sua impassibilidade, a configurar, ademais, uma das peças mais complexas para a interpretação. A obediência absoluta às indicações de Ravel, a não permitir qualquer desvio, é a possibilidade de uma interpretação adequada: “Sans presser ni ralentir jusqu’à la fin – Sourdine durant toute la pièce”. Sequeira Costa se mostra um mestre absoluto.

Scarbo, assim como Alborada del gracioso, quarta peça de Miroirs, estão entre as criações mais virtuosísticas do repertório raveliano. A figura de Scarbo é a de um anão diabólico e uma das estrofes de Aloysius o descreve: “O anão cresceu entre mim e a lua como o campanário de uma catedral gótica, com um sino de ouro a tilintar no seu chapéu pontiagudo!”. Sabe-se que, entre as intenções de Ravel, pairava a de compor algo mais difícil do que a dificílima Islamey de Mily Balakirev (1936-1910). O próprio Ravel definiria “Gaspard de la nuit” como de “virtuosidade transcendente”.

Clique para ouvir, na interpretação hors concours de Sequeira Costa, “Gaspard de la nuit”, de Maurice Ravel. A gravação foi realizada nos tempos dos LPs, com o atrito da agulha sobre o disco tantas vezes provocando ruídos:

https://www.youtube.com/watch?v=5C-cl8LgpcQ

Gaspard de la nuit, by the French poet Aloysius Bertrand, is a book of ghostly prose poems that had an influence on the poetic literature of the genre. Composer Maurice Ravel would write a triptych based on Bertrand’s poem, which would bear the same name, being one of the most challenging creations written for piano. The remarkable Portuguese pianist Sequeira Costa (1929-2019) made an anthological recording of Gaspard de la nuit.