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A Mesmice Repertorial a Eclipsar o Genial Compositor

Desde que se queira provar o efeito de um canto,
necessário torna-se a sustentação de toda a harmonia que ele depende;
é nessa harmonia mesma que reside a causa do efeito,
nunca na melodia, que não é senão produto da harmonia.
Jean-Philippe Rameau
(“Observations sur Notre Instinct pour la Musique”)

Ao longo de sete anos e meio tenho situado tantas vezes a problemática dos repertórios repetitivos, que anualmente persistem em nossas programações de concerto. A inclusão de obras pouco executadas do passado é esparsa e uma espécie de concessão de intérpretes e daqueles que se incumbem das programações, não se descartando o empresário, para o qual, basicamente, o repertório consagrado torna-se parte substancial de sobrevivência. As temporadas de ópera do Teatro Municipal de São Paulo têm merecido forte guarida da mídia paulistana e são exemplos claros da constante repetição. Todos os anos a concentração maior volta-se aos mesmos títulos de compositores consagrados. Quantas vezes já não produziram em São Paulo Carmen, de Bizet, La Bohème, Tosca e Madame Butterfly, de Puccini, La Traviata, Il Trovatore e Aida, de Verdi, Cavalleria Rusticana, de Mascagni, ou I Pagliacci, de Leoncavallo? Louve-se a temporada do Theatro São Pedro neste ano. Através de critério mais arejado tem revelado ao longo de 2014 óperas inéditas em São Paulo, do barroco à contemporaneidade. Duas óperas entre cinco privilegiam autores brasileiros, Alberto Nepomuceno (1864-1920) e Ronaldo Miranda (1948-  ).

No último livro de Daniel Barenboim, “La musique est en tout”, há segmentos  em que o notável pianista, regente e pensador responde a perguntas formuladas. Aliás, a meu ver a única seção de menor interesse. São espaços consideráveis dedicados às óperas Walkíria, de Wagner, Carmen, de Bizet e Don Giovanni, de Mozart. As perguntas, verdadeiro “lugar comum”, retomam temas exaustivamente tratados através dos decênios em detrimento de tantos outros que poderiam focalizar óperas fabulosas, do barroco ao presente, tesouros minimamente apresentados e muitos deles guardados em arquivos. Logo a seguir há um texto original de Barenboim sobre Verdi, possivelmente o de maior valia nesse compartimento do livro dedicado à ópera, pois a abranger a concepção verdiana e aspectos voltados à dinâmica e às indicações metronômicas. Em breve haverá a resenha.

A mesmice repete-se também no repertório sinfônico, incluindo concertos para instrumento e orquestra, cujo resultado chega a ser constrangedor. Assistimos  todos os anos a intérpretes visitando nossas terras e repetindo obras durante… décadas. Sem rubor algum.

Outro aspecto está relacionado a efemérides. Em ano festivo, são apresentadas obras numa escala superior à habitual, mas logo após tudo volta ao normal. Contudo, nesses festejos ao menos pode-se aferir uma parcela maior da produção de um compositor.

Quanto a Jean-Philippe Rameau, neste ano em que se comemoram os 250 anos de sua morte, esforços foram realizados em França, tímidos, diria, mas estimulantes. Apenas para mencionar Outubro, será apresentada em várias datas a ópera Castor et Pollux no Théatre des Champs Elysées, em Paris, sendo que o Festival Baroque de Pontoise prestará, entre Setembro e Outubro, homenagem ao mestre nascido em Dijon.

Rameau. Les Niais de Sologne. Piano J.E.M.
Rameau. L’Egyptienne. Piano J.E.M.

Comentários de leitores saudaram a homenagem prestada a Rameau neste espaço. O compositor e pensador francês François Servenière expõe conceitos para reflexão que se estendem, numa comparação da linguagem musical, à contemporaneidade. Frise-se que nesse compartimento há incontáveis tendências, sendo que os inesgotáveis processos contraponto e harmonia, à la manière de combinações do jogo de xadrez, longe estão do esgotamento. Contudo, após o serialismo e com o advento posterior da música a empregar meios eletro-acústicos, territórios mostrar-se-iam distintos. Polêmico, voltado aos nossos dias, mas a empregar processos do contraponto e da harmonia, Servenière reflete em seu texto, como em outros anteriores, a autenticidade de um músico que não se esquece da tradição assimilada. Eis sua mensagem:

“Acabei de ler seu artigo sobre Jean-Philippe Rameau e fico emocionado ao perceber o seu amor por sua obra e por outros compositores franceses, pelo espírito francês dessa música que você definiu como clara e concisa, menos carregada que aquela de seu vizinho alemão mais sério, e menos alegre, infelizmente, do que o estilo italiano.

Rameau é um compositor verdadeiramente sério, mesmo se considerarmos sua música como aquela do coração. É necessário tempo para se deixar tocar pela alegria da ética musical, pelo rigor levado ao seu mais alto degrau.  Malgrado tudo, Rameau, como J.S.Bach, tem o efeito de unguento universal, pois é verdadeiramente música que não se deteriora, sendo, pois, inalterável através das épocas, sem sofrer efeito de moda. Já discutimos várias vezes que não sabemos qual o futuro da música contemporânea. Contudo, parece-nos flagrante que ela esqueceu de falar aos corações. Por quê? Há evidentemente ideologia modernista e totalitária subjacente. Sim, havia a necessidade de reformar uma linguagem amparada por uma época, o século XIX, mas o que se seguiu não foi devidamente dominado pelos novos modernos, que se deixaram cair na própria armadilha dialética e de poder, novo paradigma no qual não encontraram a porta de saída e preferiram a fuga adiante, até o absurdo. Rameau torna-se pois, como Bach, Mozart, Debussy, Ravel e Stravinsky, o nó original ao qual necessariamente tem-se de voltar para que o senso de uma história esquecida e o senso de uma música feita de sensações e sentimentos sejam primazia. A vida musical não pode continuar a crescer sobre galhos mortos. Há a imperiosa necessidade de voltar-se às referências, aos antigos cruzamentos, após perder-se em sendas que não levam a nenhum lugar e a fim de que seja encontrado o bom caminho, aquele que nos levará ao futuro seguro. Era esse também o senso de meus Études Cosmiques e de minha obra em seu conjunto, apesar de meus estudos superiores de música terem sido realizados numa conjuntura para a qual só a música serial é tolerada. ‘O compositor que não compuser empregando o serialismo não tem qualquer interesse hoje’,  segundo Pierre Boulez. Temos de reencontrar um caminho perdido.

Você pode observar a que ponto estou a defender princípios em sintonia com a música de Rameau, pois meu propósito não é diferente do seu. Continuo a pensar e compondo eu pratico. A música é a mistura da harmonia e do contraponto, com um acréscimo fundamental desenvolvido mormente no século XX, o ritmo. Não sinto contraponto na obra de Boulez, e determinados contemporâneos rejeitam a técnica, entendendo-a como figura do passado… Que erro! Neles, o contraponto passa ao largo, pois produzem obras aglomeradas de artifícios e de artefatos. Componho utilizando-me da harmonia e do contraponto, a partir de minha formação como cantor de coral, logicamente.

Não me espanta o fato de Debussy ter admirado Rameau, toda a sua música ressente-se dessa herança, pois há contraponto, harmonia sem perder o espiritual e  o sensual. A história da música nos diz que ela é construída através do contraponto e tem desenrolar expressivo em todas as maneiras de compor. Algumas músicas descritivas, mesmo no cinema, causam impacto, mas elas não se traduzem como obras duráveis ou de efeito profundo sobre o pensamento. Tem-se somente aspectos decorativos, muitas vezes inteligentes e sábios; contudo, somos subjugados pelo espírito contrapontístico quando a sua essência eclode.

A música do coração nasce de sua prática. Poder-se-ia afirmar que os corações acabam por se afinar quando os corais (as diferentes vozes, como as diferenças entre indivíduos na sociedade) findam por harmonizar suas discordâncias a fim de interpretar a mesma partitura. Este seria o principal defeito de certas tendências da música contemporânea: tem-se um prazer onanista. Não divisível, não partícipe! O que faz com que toda música coral e contrapontística seja também ramista.” (tradução: J.E.M.)

Rameau. La Folie da Ópera Bufa Platée. François Leroux, barítono; Mireille Delunsch, soprano; Les Musiciens du Louvre sob a direção de Marc Minkowsky. Fonte YouTube.

Nossas sociedades de concerto estariam abertas ou cederiam espaço frente à pressão que vem do hemisfério norte no sentido da repetição ad nauseam de repertório sacralizado? O público, ao ouvir sempre o que já se fez ouvir tantas vezes, habitua sua escuta unicamente ao conhecido. Disfarçam temporadas inserindo na programação alguma obra inusitada que não voltará mais ao repertório, pois o sacralizado tem que dar continuidade a esse rio sem os meandros que lhe conferem encanto. Prevalece o retilíneo, imutável. Perde o público a genialidade de tantos autores. As extraordinárias óperas de Rameau aguardam uma possível “condescendência”. Haveria interesse descompromissado? Seria almejar muito.

In this week’s post I resume the reflection about the works of Jean-Philippe Rameau, this time including message received from the French composer François Servenière with his own views on the subject.

 

 

 

 

 

 

Um dos Maiores Músicos da História

A verdadeira música é a linguagem do coração.
Jean-Philippe Rameau

Enquanto Rameau não ocupar o lugar ao qual
tem direito  entre os maiores mestres,
a história da música do século XVIII
e através dos séculos não terá sua total orientação.
Georges Migot

Em post bem anterior (vide “Jean-Philippe Rameau – Origem de Fascinante Envolvimento”, 14/11/2009), abordei a atração despertada desde a juventude pela obra do genial compositor e teórico, certamente o mais completo músico de seu tempo. Como compositor sua obra é vasta e obedece a períodos definidos quanto aos gêneros propostos; como teórico – numa explicação básica para o leitor – traçou o caminho que fixaria definitivamente a harmonia (organização das notas musicais em acordes – processo vertical), após um longo reinado do contraponto (organização das notas em linhas – processo horizontal). Harmonia e Contraponto constituiriam, pois, essencialidades da música polifônica. Persistem.

Jean-Philippe Rameau nasceu em Dijon, aos 25 de Setembro de 1683, e faleceu em Paris  aos 12 de Setembro de 1764, há exatamente 250 anos. Seu caminhar pela história jamais teve pelos pósteros a dimensão merecida, possivelmente por ter sido um músico que viveu em plena monarquia, apreendendo a magnificência da obra lírica teatral em França, vindo a falecer 25 anos antes da eclosão da revolução francesa. Valores monárquicos foram ferozmente descartados. Todavia, Rameau foi um dos mestres que maior influência teve sobre a música, mormente a partir de sua obra teórica. Como afirmaria Claude Debussy (1862-1918), grande admirador de Rameau, seria possível que essa dualidade tivesse eclipsado o compositor extraordinário.

Compositor e teórico. Dois caminhos que motivariam Rameau durante sua longa trajetória. A criação composicional obedece a períodos distintos. Cantatas, motetos, peças para cravo e umas poucas para pequeno conjunto de câmara, as Píèces de clavecin en concert, de 1741. Nos últimos 30 anos dedicar-se-ia à música lírica, a traduzir o esplendor da ópera em França. Sua obra teórica se estende de 1722 a 1760. Guy de Chabanon (1730-1792), no “Éloge de M. Rameau” (1764), relataria que auscultaram Rameau e este teria lamentado o tempo dado à composição em detrimento dos aprofundamentos dos princípios de sua Arte. Em síntese para o leitor poderíamos acrescentar que o teórico propôs normas da composição e o compositor  aplicou-as.

Sabe-se pouco a respeito das primeiras décadas. Desempenhou a função de organista em várias cidades, mas, paradoxalmente, não legou sequer uma obra para o instrumento. Ao escolher Paris como cidade definitiva, Rameau já se impusera como teórico. Ao conhecer o mecenas Le Riche de la Pouplinière (1693-1762), é recebido em seus salões e conhece artistas, literatos, libretistas, entre eles Voltaire (1694-1778). A plena penetração na criação lírica fá-lo distanciar-se das estruturas de seu predecessor, Jean-Baptiste Lully (1632-1687). A proposta de Lully apreende as características do Ballet de Cour e da tragédia-declamada de autores como Corneille (1606-1694) ou Racine (1639-1699). Rameau modifica essa concepção,  pois dimensionará o recitativo e terá novas concepções quanto à estrutura. Dessa criação lírica têm-se diversas destinações: a comédie-lyrique e, preferencialmente, a ópera-ballet e a tragédie-lyrique. Mencionemos entre as inúmeras criações de Rameau para a cena musical: Hyppolite et Aricie, Les Indes Galantes (faria a redução para cravo de alguns segmentos dessa ópera-ballet), Castor et Pollux, Dardanus, PlatéeLes Fêtes de Polymnie, Zoroastre, Les Boréades. Esta útima composta aos 80 anos.

Air pour Borée et la Rose de Les Indes Galantes. Transcrição de Rameau para clavecin. Piano J.E.M.

Em suas óperas, não suficientemente frequentadas, hélas, Rameau aplica suas teorias já consagradas. Há um nítido descortino. Sob outra égide, Rameau acolhe libretos com enredos mitológicos, a atender a vontade da corte francesa e de um público ávido do maravilhoso. A fim de obter resultados musicais, por vezes interfere nesses textos. A dança, tão fundamental em suas óperas-ballet, recebia atenção especial. Um de seus mais credenciados biógrafos, Cutberth Girdlestone (1895-1975), observa, a ratificar os conhecimentos de Rameau sobre a dança, mencionando Gardel, mestre de ballet: “Rameau advinhou o que os dançarinos ignoravam, o que nos leva a entendê-lo como nosso primeiro mestre”. Outro aspecto importante é a utilização da maquinaria. Necessária, mormente graças as salas quase às escuras, a utilização de máquinas em cena agradava ao público. Exemplo claro poderia ser visto pela Corte e público ao final do ato dos Incas de Les Indes Galantes, quando há a erupção do vulcão. Frise-se que mestres nessa arte da machinerie eram muito considerados.

O “Mercure de France” (1765) publicaria carta de Rameau a um jovem músico. Reflete seu pensamento sobre a ópera: “É necessário estar a par do espetáculo, ter durante muito tempo estudado a natureza para pintá-la o mais verdadeiramente possível, apreender todas as suas características, ser sensível à dança, aos seus movimentos, sem falar de todos os acessórios; conhecer a voz, os atores…  Eu acompanhei o espetáculo desde a idade de 12 anos, não compondo para a ópera senão aos 50, ainda não me acreditando capaz; eu tentei, fui feliz, continuei”.

Dois anos após o nascimento de Rameau nasciam J.S.Bach, D.Scarlatti e G.F.Haendel. Coincidentemente, temos quatro autores de obras significativas para cravo. Rameau, compositor do multum in minimo nesse gênero, tem contudo uma extraordinária importância. Se comparada à monumental criação de François Couperin (1668-1733), que compôs 27 Ordres (algumas dessas bem extensas e constituídas de reunião de peças), a produção de Rameu restringe-se a 5 suítes e mais algumas poucas obras, entre as quais La Dauhine. Somem-se a essa produção as reduções de segmentos da ópera-ballet Les Indes Galantes. Entendo que, se Couperin se presta essencialmente ao cravo, o mesmo não se pode aplicar a Rameau. Seu grande tratado de harmonia foi escrito no período de suas expressivas criações para cravo. A visão da harmonia e a presença das fundamentais como estrutura, a dar fluência ao curso melódico, tornam sua opera omnia para teclado bem mais adequada ao piano, mercê dos amplos recursos e das ressonâncias características que o instrumento propicia. As palavras do grande musicólogo francês François Lesure, ao escrever o prefácio da gravação da integral de Rameau para teclado, que realizei ao piano, testemunham a clareza de raciocínio: “No caso de Rameau, o debate cravo-piano não tem mais sentido, na medida  em que não é mais o instrumento que assegura a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete. Passou o tempo do Barroco entreguista e a utilização de instrumentos de época deixou de ser dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”. Ter fixado as bases da harmonia, que vigorariam durante séculos e ainda hoje subsistem com vigor em tantas tendências composicionais, felizmente, estabelece a qualidade nessas pouco mais de 50 peças originais para teclado. O piano moderno que surgiria, após longa trajetória e triunfante a partir do século XIX, período que assistiu ao silêncio absoluto do cravo, dará guarida essencial às fundamentais de Les Cyclopes, às modulações inusitadas em Le Rappel des Oiseaux, às ressonâncias de L’Enharmonique, à consistência estrutural em Les Niais de Sologne, às dissonâncias ousadas do Prélude da Suíte de 1706. Rameau, observador da natureza, é descritivo ou imitativo em La Poule, Le Rappel des Oiseaux, La Boîteuse, Le Tambourin; entende os sentimentos em Les Tendres Plaintes, L’Entretien des Muses, Les Soupirs;  é virtuosístico em Les Cyclopes, Les Niais de Sologne, Les Tourbillons, Les Trois Mains, L’Égytienne; mestre na organização de variações em Gavotte Variée; descontraído nos rondós La Villageoise, em Fanfarinette et La Follette, La Joyeuse ou La Triomphante. Está-se realmente diante de uma das mais importantes produções para teclado da história.

Le Rappel des Oiseaux. Piano J.E.M.

Les Cyclopes. Piano J.E.M.

Rameau teórico. Distingue-se in totum de todos os seus eminentes coetâneos. Suas teorias atravessaram os séculos. Observador, cartesiano, Rameau só teoriza após certezas dedutivas. Em quatro tratados considera seus sistemas a partir de método progressivo. “Le Traité de l’Harmonie Réduite à ses Principes Naturels” é certamente o mais conhecido e data de 1722. Sente-se a influência de René Descartes (1596-1650), mormente de sua obra “Abregée de Musique”, de 1618. A herança pitagórica, exercida e desenvolvida pelo pensamento de Descartes, é captada por Rameau, a servir-lhe de norte para experiências essenciais à música.

Para o compositor, o Tratado seria completado através da “Genération Harmonique”, de 1737, após ter conhecido os trabalhos do geômetra e físico Joseph Sauveur (1653-1716) sobre a acústica. Dois outros tratados, “Nouveau Système de Musique” (1726) e “Demonstration du Principe de l’Harmonie (1750), completam esse segmento. Em outros escritos relevantes, Rameau se posiciona como didata e em outros mais polemiza e defende-se contra os ataques de adversários que contrariavam suas posições teóricas e suas obras. Teríamos a célebre Querelle des Bouffons, que se estenderia de 1752 a 1754, a causar sensível abalo na ópera essencialmente francesa.

Entre os atributos de Jean-Philippe Rameau contam-se austeridade, rigor e dedicação exclusiva a duas obsessões, compor e teorizar. Sua vida privada esteve basicamente velada. Entre as poucas referências, sabe-se que se casou aos 42 anos com uma jovem de apenas 19. O modelo musical que lhe foi oferecido era monárquico e a ele se adequou, renovando-o. Criou inimigos. Por volta de 1745, um severo julgamento seu sobre composições de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) teria sido decisivo, pois o grande filósofo só é lembrado como compositor graças ao grande pensador que permaneceu na história. O estopim da Querelle des Bouffons se deu quando uma troupe italiana de bouffons apresenta, na Academia Real, a ópera bufa La Serva Padrona, de Pergolesi (1710-1736). Cenas do cotidiano, o povo em cena, a contrastar com a magnificência da ópera francesa. Os enciclopedistas e filósofos aproveitam os momentos para atacar o literário e a música contidos na ópera monárquica. Visam, na realidade, à estrutura do poder. Prenúncio da Revolução francesa. Um dos importantes biógrafos de Rameau, Jean Malignon, escreve: “Diderot visa ao espírito mesmo de Versalhes, Grimmm, ao espírito francês em sentido total e Rousseau visa a um homem”.

Duas estéticas se degladiam, a clássica e a da sensibilidade. Rameau e Rousseau têm leituras distintas da natureza. Para o primeiro, natureza das coisas, para Rousseau, natureza do homem. Entende Rousseau a supremacia da melodia sobre a harmonia, enquanto que Rameau, após exaustivos estudos e experiências, tem visão contrária, o que não implica serem suas obras imbuídas de melodias penetrantes. Contudo, crê na estrutura, nas fundamentais, na geração dos acordes, essências da harmonia.

Durante a Querelle des Boufons, essa “guerra” estética entre adeptos da música italiana e os fiéis à tradição da ópera francesa monárquica, foram publicados cerca de 60 textos, cartas e panfletos, por vezes inflamados.

Jean-Philippe Rameau. Permaneceu como um dos pilares da música ocidental. Legou algumas das mais importantes óperas em França do século XVIII. Seu pensamento teórico é coluna mestra que orientaria toda a trajetória da música nos séculos seguintes. Sua obra lírico-musical tem sido resgatada, lenta mas progressivamente, a deslumbrar gerações atuais. Sua criação para teclado é única na concisão, no rigor e nas fórmulas propostas.

Les SauvagesRondeau des Indes Galantes de Rameau interpretado por Magali Léger, Laurent Naouri e os Musiciens du Louvres sob a direção de Marc Minkowski em versão de concerto.

Em 1954 ouvi pela primeira vez a gravação da integral para cravo executada ao piano pela excelsa Marcelle Meyer (vide post “Marcelle Meyer – 1897-1958 – A Redescoberta Merecida”. 06/03/2007). Em 1971 executava pela primeira vez no Brasil essa fabulosa integral, que seria repetida em 1983 – ano do tricentenário de nascimento – no Brasil e em Portugal. Gravei-a em 1997, em Sófia, gravação que seria lançada no ano 2.000 pelo selo De Rode Pomp (duplo CD), na Bélgica e, em 2009, pela Concerto, em São Paulo. Em um texto publicado no “saudoso” “Cultura”, de “O Estado de São Paulo”, comemorava o tricentenário (nº 172, ano IV, 25/09/1983, pp. 5-7). Sessenta anos escoados e que apenas dimensionam a profunda admiração pela música e pelas teorias de Jean-Philippe Rameau, do primeiro impacto ao presente. Estou longe de desvendá-lo. Uma vida é suficiente?

On 12 September 1764 – exactly 250 years ago – died in Paris Jean-Philippe Rameau, the most accomplished musician of his time. This post addresses his works as a composer – harpsichord music, operas, motets, cantatas – and also as a music theorist, whose treatises continue to influence musical thinkers up to the present days.

 

 

 

 

 

 

 

 

Progressiva Curva Descendente

Deve-se estar atento às ideias novas que vêm dos outros.
Nunca julgar que aquilo em que se acredita é efectivamente a verdade.
Fujo da verdade como tudo,
porque acho que quem tem a verdade num bolso
tem sempre uma inquisição do outro lado pronta para atacar alguém;
então livro-me de toda a espécie de poder – isso sobretudo.
Agostinho da Silva (Entrevista)

Aposentado pela compulsória desde 2008, conheci em anos anteriores a efervescência que levou a Universidade de São Paulo à crise sem precedentes, à queda acentuada constatada em avaliações internacionais, à ascendência de minoria com fortíssimo viés ideológico nos três níveis, constituída por alunos, funcionários e docentes, respectivamente, e à consequente degradação dos alicerces universitários.

Se, durante cerca de 27 anos na Universidade, senti paulatina mas inexorável diminuição da firmeza de atitudes dos dirigentes da USP que impedissem desvarios dessa minoria nas três categorias, a gota d’água, na minha avaliação, viria de exemplo emblemático quando da invasão de alunos numa reunião do Egrégio Conselho Universitário presidido pelo  Reitor, o ilustre Jacques Marcovitch (gestão 1997-2001). Pasmos, assistimos seguranças tentando sustentar as portas que permaneciam fechadas, sem o conseguir. Após destruir essas portas de madeira, a turba adentrou a sala munida de vasos sanitários, que foram arremessados em frente da mesa onde estavam o Magnífico Reitor, Vice-Reitor, Secretária Geral e outros dirigentes universitários. Vociferando palavras de ordem, celerados acenderam sinalizadores, que provocaram um fumaceiro colorido à maneira do que ocorre nos estádios de futebol. Logicamente, a reunião do Conselho Universitário daquela lamentável terça-feira foi suspensa. Naquele momento comentei com dois colegas que estávamos a assistir à continuação de um acirramento que deveria levar a Universidade ao impasse. O prejuízo do imóvel foi grande, pois vidros das janelas foram estilhaçados, cadeiras quebradas, portas… Em reunião anterior, um líder dos funcionários bradara palavras grosseiras e ofensivas contra o Reitor. Apesar de filmados, não houve sequer expulsões. Acinte, desrespeito, impunidade. A ausência de decisões firmes tem tributo a pagar, e o que ocorre presentemente é apenas consequência.

Já àquele momento essa minoria organizada, que pouco se importa com a destruição do bem público, pleiteava, entre outras reivindicações, a paridade de toda a comunidade uspiana no que concerne à eleição do Reitor. O voto paritário estabelece o mesmo peso para aquele depositado por jovem recém-ingressado na universidade e o da totalidade de docentes, alunos e funcionários, eliminando, pois, a representatividade de cada categoria junto aos vários conselhos universitários. Obviamente o ingressante pode ser facilmente manipulado pelo simples fato de desconhecer quaisquer currículos dos candidatos a Reitor ou de Diretores de Unidades da USP. Quantas não foram as vezes em que perguntei aos mais exaltados alunos da universidade o que eles sabiam dos candidatos a Reitor ou a Diretor. As respostas não deixavam margem à interpretação. Desconheciam carreiras, trajetórias acadêmicas, mas empunhavam bandeiras escarlates bem conhecidas no campus. E toda a distorção estava estampada.

Lembro-me de que, em eleições para Diretor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), uma das unidades da USP, por vezes alunos formaram verdadeiro corredor polonês no longo acesso à sala da Congregação, buscando intimidar votantes. Alguns docentes, movidos por estranhos propósitos, estimulavam veladamente a manifestação ruidosa. Para aqueles professores que não comungavam das ideias desse “batalhão”, palavras fortes e até xingamentos ecoavam pelo corredor. Gritavam, cantavam e rufavam tambores em nome da… democracia.

Hoje, distante do campus e muitos anos após esses incidentes, verifico com tristeza que a Universidade de São Paulo agoniza. A autonomia uspiana, que deveria ser solução, tem sido um entrave. Minorias, movidas pela mesma ideologia desse passado recente, chegam tantas vezes à anarquia e ao vandalismo, e comandam intimidações, invasões e depredações, sob o amorfismo, letargia e indiferença da grande maioria de alunos, funcionários e docentes. Greves têm apresentado recrudescimento sempre mais intenso. Se a Constituição respeita a greve e o direito ao trabalho, este é simplesmente ignorado por pelegos que sabem que não serão punidos pela afronta à Carta Magna. Falta pulso forte para decisões que podem soar impopulares, mas necessárias. A impressão é sempre de temor pelo que estará por vir, nunca para melhor. Não há mais o menor respeito à hierarquia, aos preceitos básicos da convivência, à lhaneza ou mesmo à civilidade. Truculência, palavreado que faz corar cultores da língua portuguesa, atitudes as mais absurdas, como as invasões da Reitoria, seguidas de destruição, saque e permanência de “bandoleiros” nos recintos que não deveriam jamais ser maculados, provocam  o pavor dos dirigentes, sem coragem necessária para expulsá-los, o que seria possível se leis fossem aplicadas. Contudo, temem-nos, com receio de “maior” conturbação. A invasão da Reitoria por membros do corpo discente durante semanas no ano anterior, quando destruíram e picharam seu interior, roubando computadores e até peças dos banheiros, independentemente da imensa sujeira que deixaram, na qual não faltava grande quantidade de preservativos, é prova da delicada situação atual na USP. A greve deste ano, que dura tempo desmesurado (mais de três meses), provocada por grupelhos de funcionários, alunos e docentes, é prova inconteste do desvario.

Querem à força ver atendidas reivindicações.  Apesar de contarem com a lei, dirigentes submergem frente às violências. E todo o mal está feito. Tudo indica que novas quedas nas avaliações internacionais deverão ocorrer, não sem razão.

No programa “Bom Dia Brasil” da TV Globo, do dia 15 de Agosto, a repórter Renata Cafardo comentava a crise da USP, estendendo-a aos grandes prédios inacabados, como o Centro de Convenções, o Museu da USP e o Centro de Difusão Internacional. Do primeiro, salientou que foram gastos 80 milhões de reais, faltando outros 40 para a finalização. Disse ainda que nesse centro haveria “um grande palco com elevação mecânica e instalação do maior órgão da América Latina, já comprado e armazenado na USP”. Nessa reportagem Renata Cafardo informou que, devido à crise, cogita-se a transferência desses prédios para a Secretaria do Estado da Cultura.

Voltemos ao órgão. Os gastos exagerados promovidos pelo Reitor que antecedeu o atual, Professor João Grandino Rodas, tem um exemplo flagrante na compra do órgão mencionado na reportagem acima. Não empreendeu a direção da Universidade diligências aprofundadas no sentido de se debruçar sobre um magnífico órgão Tamburini de fabricação italiana, mantido em containers no campus. Tratativas vãs foram realizadas e o órgão jaz enclausurado. No site da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que adquiriu na década de 1950 um instrumento de tubos, lê-se: “O instrumento foi construído pela Fabbrica D’Organi Comm. Giovani Tamburini, da cidade de Crema (Itália), fundada pelo organeiro Giovanni Tamburini (1857-1942) em 1893. Foi encomendado pela diretora da Escola Nacional de Música, Joanídia Sodré, para substituir o antigo órgão Sauer de fabricação alemã, comprado por Leopoldo Miguez para o Instituto Nacional de Música”. A inauguração do instrumento se deu no dia 13 de Agosto de 1954.

Um histórico que levou à doação do órgão Tamburini mantido no campus merece umas poucas linhas. O instrumento data de 1951 e foi instalado no ano seguinte no salão principal da residência da organista e incentivadora das Artes Alda Hollnagel, em Itapecerica, perto de São Paulo. Foi inaugurado pelo mesmo organista italiano que fez a première do instrumento da Escola Nacional de Música, Fernando Germani, organista da Basílica de São Pedro do Vaticano e Professor da Academia Santa Cecília de Roma. Na minha juventude, várias vezes assisti aos recitais promovidos pela anfitriã Alda Hollnagel. Quando a sucessora do instrumento, irmã de Alda Hollnagel, Teresa, resolveu dar uma destinação ao magnífico órgão, José Luís de Aquino, Professor da Universidade de São Paulo e organista respeitado internacionalmente,  entrou em contato comigo e, após várias reuniões que mantivemos com a Sra. Teresa Hollnagel, esta generosa mecenas resolveu doar o instrumento à USP, com a condição de vê-lo instalado e ouvir um recital de José Luís de Aquino durante a inauguração. Quimera, infelizmente. Depois de longos entendimentos de ordem administrativa, o órgão foi doado à Universidade de São Paulo (abertura do processo, dia 7 de Junho de 2005).

O instrumento é realmente extraordinário, com cerca de 3.000 tubos, 4 teclados e pedaleira de 32 notas; portanto, completa. Tantas outras informações José Luís e eu colhemos e anotamos durante as reuniões com a Sra. Teresa Hollnagel e que, pela especificação técnica, fugiriam ao propósito do presente post. O certo é que documentações internas de ordem burocrática cruzaram as várias instâncias da USP e nada de prático resultou após 9 anos!!!

Não saberia as razões da compra daquele “maior órgão da América Latina”, segundo a repórter Renata Cafardo. Tenho lá minhas dúvidas quanto a essa dimensão. Não seria este um exemplo flagrante de desperdício de dinheiro, pois o órgão Tamburini atenderia maravilhosamente às necessidades no campus da USP? Ao Reitor não teria faltado pulso e vontade para fazer “ressurgir” a preciosidade oculta? Com o Centro de Convenções inacabado e órgão novo armazenado, são agora dois instrumentos que permanecem silenciosos.

Não deve ser poupado de críticas o atual Reitor, Professor Marco Antônio Zago, que foi Pró-Reitor de Pesquisa na gestão anterior, pela ação tímida com que está a conduzir a crise inusitada. É nesses momentos que se conhece o verdadeiro líder. Há muitíssimo a fazer, mormente sabendo-se que a USP gasta atualmente 105% do seu orçamento com a folha de pagamento de seus servidores. Terá o atual Reitor pulso forte para demitir, cortar gastos promovidos por seu antecessor e provocar o verdadeiro saneamento? Se a restrita comunidade uspiana está cada vez mais isolada em seus muros, a imensa quantidade de contribuintes do Estado, que sustenta as três universidades públicas que compõem o Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo (CRUESP), aguarda soluções em breve, tardiamente diga-se, hélas.

Às vésperas das eleições estaduais, não se descartem fins escusos motivadores da greve.

This post addresses the strikes that every year hit the State University of São Paulo – USP, the ideological roots that feed them, the repeated acts of vandalism and violence on the part of students, with occupation of buildings and destruction of public property, inaction on the part of authorities – nobody is ever arrested or charged – and the continuous fall of USP in the world university rankings. With such recurrent disruptions of learning, the once highest-ranked university of South America seems to be in its death throes.