Navegando Posts em Música

Boris Shapovalov um artista telúrico

Sempre que a arte tiver como objeto as sensações,
encontrar-se-á na presença de leis científicas,
muitas das quais são absolutamente incontestáveis.
Jean-Marie Guyau (1854-1888)

Boris Shapovalov (1952-), natural de São Petersburgo, é um artista efetivamente singular. Conheci-o em Gand, pois quase todos os anos expunha seus trabalhos na galeria La Perseveranza, anexa à De Rode Pomp. Era sempre motivo de alegria nos reencontrarmos e Boris comparecia aos recitais que apresentava no auditório da empresa de concertos e gravações.

Boris Shapovalov tem um currículo invejável, não apenas através de exposições em seu país natal, onde é respeitado por sua arte. Recebeu   calorosa acolhida na Bélgica, granjeando amizades entre os artistas das artes visuais e músicos. Anticonvencional, irreverente, espontâneo e generoso, Boris demonstrava, através de atos, o não comprometimento com o establishment, que elege o que pode ser rentável. Pintava seus trabalhos pelo prazer sem limites de pintar. Artista de uma cultura abrangente, viajou por toda a Rússia, a colher impressões. Sua curiosidade o fez conhecer quantidade enorme de museus nos centros que visitava. Todo esse acervo cultural corroborou a edificação de um estilo definido.

Como expunha quase que anualmente seus trabalhos na La Perseveranza, aguçava-o o grande painel do palco e todo o ano renovava a pintura com formas e cores vibrantes, a despertar no ouvinte dos concertos a sensação do inusitado, pois Boris em cada imensa criação na sala de concertos da De Rode Pomp depositava a aura autêntica.

Havia dado um recital em que apresentei a integral dos Estudos de Debussy.  Após a récita, André Posman nos convidou para um jantar na sede da Rode Pomp e abriu uma garrafa grande de Champagne. Estranhei o fato de, logo após o congraçamento, Boris ter colocado a garrafa vazia sob o braço e se retirar. No dia seguinte me ofereceu a garrafa com sugestiva pintura.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “Étude pour les huit doigts”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=D85tz0ibqRk

Estava a ensaiar na sala da De Rode Pomp e sequer vi a presença de Boris. Dias após me ofertou cena que havia captado.

Quando de um recital de música de câmara, noite na qual o excelente Rubio Kwartet e eu apresentamos um concerto inteiramente dedicado à música camerística do nosso maior romântico, Henrique Oswald (1852-1931), Boris presenteou-me com o óleo sobre tela a homenagear o sarau, fixando no verso os créditos com o “autorretrato” tão habitual em seus quadros (21/02/2002).


Após um recital Scriabine na De Rode Pomp (2000), fomos no dia seguinte a um café em Gand. Conversamos sobre a música russa de Moussorgsky a Scriabine. Estava eu a caminhar nas ruas da cidade dias depois quando encontro Boris que, ao me ver, abriu uma sacola, oferecendo a arte que fizera após o aprazível diálogo anterior

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Valse op.38”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

Acredito que artistas como Boris Shapovalov e os mencionados belgas e holandês do blog anterior têm o precípuo sentido da arte desvinculada do mercado. São mestres autênticos e a generosidade que tiveram para com o intérprete nunca foi olvidada. Guardo com carinho todos os desenhos e pinturas. Dádiva.

No próximo e último post sobre os desenhos e pinturas que tive o privilégio de receber graciosamente de artistas relevantes que se tornaram amigos, focalizarei nossa filha Maria Fernanda, psicóloga, mas com um dom singular para o desenho. De um primeiro aos dez anos, sem noção das proporções, aos inúmeros em que retratou o pai ao longo das décadas, Maria Fernanda demonstra a precisão do traço.

Boris Shapovalov, born in St Petersburg, is an important painter. I met him in Ghent, Belgium, as he often exhibited his works in the Belgian city at the La Perseveranza gallery, which belonged to De Rode Pomp. Our friendship resulted in paintings that he gave me and that I keep as  treasured possessions.


Artistas da Bélgica e da Holanda

O meu ponto de partida será sempre a cabeça,
o desenho ajuda a ver o caminho,
mas o princípio é sempre a cabeça. Sempre.
Álvaro Siza Vieira (1933-)
notável arquiteto português

A Bélgica, máxime a cidade de Gent, permanece como parte essencial da minha atividade musical. Foram mais de duas dezenas de viagens à cidade plena de mistérios. Recitais pelo país, gravação da maioria dos meus 25 CDs – sempre sob os cuidados do extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé -,  na já tão mencionada Capela de Saint-Hilarius (século XII), em Mullem, perdida na planície flamenga.

Três artistas belgas me privilegiaram com desenhos: Yves Dendal (1933-2001), Jan de Wachter (1960-) e Lutgard Wittocx (1956-). Joep Huiskamp (1956-), holandês, já esteve presente em blogs anteriores, pois nossa amizade irretocável data do ano 2000. Os quatro têm currículos significativos, com exposições em seus países e alhures.

Os dois primeiros frequentavam a galeria La Perseveranza, em Gand, que ficava num anexo da empresa De Rode Pomp para cujo selo gravei tantos CDs.

Yves Dendal em suas telas sofreu a influência da corrente surrealista. Pertenceu em 1955 ao movimento da “Jovem pintura belga”, que abrigou vários artistas de vanguarda. Dendal compareceu a vários recitais que apresentei em Gand e sempre me presenteava com desenhos que surgiam durante a interpretação. Figura tranquila, despojado de qualquer exibicionismo, Yves Dendal frequentava a temporada da De Rode Pomp e não deixava de registrar em seus desenhos aquilo que considerava essencial, o que emanava do intérprete no instante do acontecido.

Quando apresentei a integral dos “Estudos”, a “Fantasia op.28”, o “Poema Trágico” op. 34 e “Vers la Flamme” op. 62, de Alexandre Scriabine (1872-1915), compareceram alunos de piano da Rússia que estavam fazendo estágio no Conservatório Real de Gand. Após o recital e a recepção habitual da De Rode Pomp, o professor dos jovens, russo também, perguntou se eu poderia explicar aos seus alunos a minha concepção pianística da obra para piano de Scriabine. Aquiesci com prazer e Yves Dendal fixou aqueles momentos em plena madrugada.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Poème Tragique”op. 34, na interpretação de J.E.M.

Alexander Scriabin – Poème Tragique Opus 34 – José Eduardo Martins – piano

Jan de Wachter desenvolve várias ações em sua arte visual. Pintor, desenhista, escultor, tem merecido forte acolhida da crítica especializada. Um dos seus projetos, Ypres-Palmyr, esteve voltado ao impacto do terrorismo em Paris (Charlie Hebdo, 2015), no aeroporto de Zaventem e no metrô de Bruxelas (2016), e na destruição do sítio arqueológico sírio de Palmira (2015 a 2017). Jan de Wachter estava a realizar uma exposição na La Perseveranza com significativas ilustrações relacionadas aos filmes do cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986) e compareceu a um dos meus recitais, contemplando-me dias após, para minha surpresa, com trabalhos em técnica mista evocando três  compositores constantes no programa apresentado que dediquei à música contemporânea luso-brasileira. Seus nomes ou títulos das peças estão fixados em grafite sobre pátina com coloração suave: Gilberto Mendes (1922-2016), lembrado através do “Estudo – Ex-tudo – Eis tudo pois”, Jorge Peixinho (1940-1995) in memoriam, “Etude 5 Die-Reihe Courante” e Paulo Costa Lima, “Ponteio-Estudo”.

Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, “Ponteio-Estudo”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=OeFKNexsoeM

Em outros dois trabalhos artísticos, sem fazer referência a autores, apenas insere as mãos do pianista entre as abstrações.


A lembrança do nome do intérprete.

Lutgard Wittocx, pintora e desenhista, tem série com músicos em sua considerável obra. Observa-os durante as apresentações, fixando-se nas expressões e nas mãos. No seu site, uma crítica que revela algumas das suas atitudes frente à criação: “Na expressão facial e nas mãos, a artista capta o abandono com que os músicos tocam os seus instrumentos. No entanto, é o desenho que transmite ao espectador o impacto da música. A atividade do músico ganha vida graças à expressividade tão típica de Wittocx. O carácter do seu desenho manifesta-se de forma dinâmica. É a eloquência de apenas algumas linhas bem resolvidas”. O desenho foi realizado durante recital que apresentei em Schilde, região flamenga na província da  Antuérpia.

Joep Huiskamp foi várias vezes mencionado neste espaço, pois acompanhou sempre os meus recitais apresentados na Bélgica de 2000 a 2023. Compareceu com sua esposa Joeneke aos recitais em Gand, Bruxelas, Antuérpia, Coimbra e Lisboa, vindo de Eindhoven, onde teve ação relevante junto à renomada Universidade de Tecnologia da cidade (vide blogs “Joep Huiskamp” 20/03/2021) e (“Meu amigo Joep Huiskamp e o arquipélago dos Açores”, 08/04/2023). Realizou várias exposições na Holanda, obtendo recepção elogiosa. Amante das ilhas açorianas, mormente a de São Jorge, terra natal de Francisco de Lacerda (1869-1934), um dos seus compositores eleitos e meu também, Joep fez o primeiro desenho em Gand, enquanto eu ouvia as provas da gravação dos Estudos de Scriabine, realizada dias antes.

Dias após um recital em Gand (2007), Joep Huiskamp entregou-me uma lembrança relacionada à minha amizade com André Posmam, Diretor da De Rode Pomp.

Em 2017 encerrei um recital com “Vers la Flamme”, de Scriabine, e Joep me presenteia com um trabalho intrigante das mãos.

Após o encerramento de minha atividade pianística na Europa em 2023, Joep Huiskamp novamente esteve presente, enviando-me semanas após um álbum de desenhos e fotos a relembrar as décadas da nossa intensa amizade. À la manière d’une introduction, relembrou minhas passagens pela Bélgica, Portugal continental e pelo arquipélago dos Açores, assim como figuras históricas que fizeram parte de tantas conversas que mantivemos. A referência aos amigos comuns, os Herberts: Tony, Tania, Tycho e Trixie, em cuja morada sempre me hospedei, está presente na lista das lembranças, T4.

No próximo blog exibirei as notáveis pinturas do artista russo Boris Shapovalov, que realizou várias exposições na galeria La Perseveranza. Guardo com carinho quatro das suas criações.

In today’s post, I introduce four artists – three Belgians and one Dutch – who offered me drawings or paintings that I highly treasure.

John Howard (1938-2024)

A arte só beija quem por ela almeja ser beijado.
A arte exige uma liturgia, um ritual,
que se prende com a fonte da dádiva e a aproximação do amor.
Miguel Real (1953-)

Um dos pioneiros da arte do grafite de rua em São Paulo, John Howard nasceu nos Estados Unidos, mas radicou-se no Brasil, tendo sido uma figura rigorosamente singular e um dos artistas mais versáteis da sua geração.

Conheci-o na Secretaria Municipal de Cultura em 1981, período em que o Maestro Walter Lourenção e eu dávamos assistência à programação cultural daquele órgão. Visitou-nos, a dar sugestões. Recordo-me do impacto da sua presença física e de algumas das suas tipicidades. Longos cabelos e barba em desalinho, trajes sem qualquer cuidado, óculos com lentes verdes semiescuras, sandálias, sacola na qual estava o material para o desempenho da sua imaginação criativa, forte sotaque, ironia e senso arguto de observação. Tornamo-nos amigos e assim continuamos durante alguns anos. Naquele período realizou inúmeros desenhos em torno da minha atividade pianística. Após, John empreendeu outros caminhos e seria o criador fundamental dos grafites murais da cidade e mestre de gerações, sendo que eu entrava para a docência na Universidade de São Paulo, sem abdicar do meu convívio diário com o piano. Os contatos diminuíram depois dessas transições, mas jamais a minha admiração pelo seu talento invulgar esmoreceu. Passei a segui-lo pela mídia naquele período da erupção do criativo grafite de rua.

Prestar-lhe homenagem em um dos blogs que estou a dedicar aos artistas que me encantaram com suas belas criações é o mínimo que posso fazer. Alguns desenhos de John Howard, guardados em uma pasta especial durante décadas, ficaram amarelados pelo tempo inexorável.

Ambos nascemos em 1938, e este fato serviu para início de conversações e de uma verdadeira empatia. John Howard, um cidadão livre de quaisquer amarras, um outrora hippie em seu país natal, era figura de natureza aberta e generosa. Tinha uma sólida formação cultural. Frequentou inúmeras vezes a nossa morada e minha mulher Regina e as duas filhas sempre o recebiam com alegria. Gostava de provocar as então meninas, fazendo perguntas que as desconcertavam. Adorava música e a maioria dos desenhos nesse período amistoso foi elaborada em torno dessa relação musical. Por vezes nos visitava para me ouvir estudar piano. Podia ficar por longo tempo a escutar e, por vezes, a desenhar. Acompanhou-me em viagens pelo interior do Estado quando de recitais agendados.

John Howard inseria, em caracteres bem pequenos, a data e outras precisões. Ao clicar sobre cada imagem haverá a ampliação, que possibilitará a leitura.

Entre 1980-1982, preparava-me para a integral da obra para piano de Claude Debussy em quatro recitais no MASP e elaborava o livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982). John apaixonou-se pelas criações de Debussy e realizou todas as ilustrações a partir dos títulos poéticos de inúmeras peças. Tornou-se o seu compositor preferido. De interesse a sua curiosidade. Em termos de Debussy, todas as imagens foram criadas após me ouvir tocar algumas de suas obras. Dizia-me que era necessária a escuta. Vendo-me escrever àquela altura o livro, desenhou as mãos.


Um fato marcante em torno dos 12 Études de Debussy ocorreu após eu lhe ter explicado que o compositor francês pensou, para cada Estudo, em um problema técnico-pianístico. Após a minha exposição pediu-me para posicionar a mão direita imóvel a partir do início do primeiro compasso. Surgiu um desenho magnífico, que está entre outros mais no livro em apreço.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, o Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo

Quando da inauguração do Centro Cultural São Paulo participei em dois eventos. Com o meu irmão João Carlos, sob a regência de Roberto Tibiriçá, interpretamos o Concerto em dó menor para dois teclados, aos 11 de Junho de 1982. Três dias após, apresentei recital solo no mesmo local. John Howard registrou os eventos.

Ao selecionar os desenhos para o post semanal, estive a pensar naquele longínquo período em que John e eu estivemos tão ligados. Admirava a sua cultura literária e filosófica. Por vezes citava um de seus eleitos, Shakespeare. Creio que a nossa amizade, estruturada e muito na música erudita, era uma fonte para John me perguntar sempre sobre o porquê de eu estudar determinados compositores fora do grande circuito, a excetuar Claude Debussy, que ambos apreciávamos. Scriabine foi outro compositor de que passou a gostar imenso. Interessou-se pelo pensamento do compositor russo, máxime influenciado pelas teorias teosóficas e o apreço por Nietzsche. O desenho inicial do blog foi traçado com rapidez em traços firmes, enquanto eu interpretava um dos Estudos de Scriabine (op. 42 nº1), cuja integral (26 Estudos) gravaria duas décadas após na Bélgica.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, o Estudo op. 42 nº 1, na interpretação de JEM:

https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI

Um desenho bem amarelado guarda, contudo, a única frase que, por si só, já revela a senso de apreciação de John Howard, no caso, a sua admiração por Mozart: “José Eduardo playing Mozart – we were captiveted” (1981).

Como a sua criação jorrava como uma fonte inesgotável, certamente aqueles que conviveram com John Howard devem ter guardado considerável parte dos seus desenhos e esboços. Causava-me forte impressão a sua volúpia em desenhar quando nos ônibus que faziam o trajeto Centro-Santo Amaro. Ao descermos no Brooklin-Campo Belo, vários desenhos tinham sido feitos, focalizando aquilo que ele via e acrescentava no papel: prédios, cartazes, faróis, ônibus, carros, personagens… Disse-lhe certa vez que nos seu desenhos havia algo encontrável nas gravuras japonesas, a ausência da rasura. O traço firme, preciso, sem falhas.

John Howard foi um artista singular. Pioneiros jamais são esquecidos. Orientar legião de seguidores do grafite artístico no correr das décadas corrobora o legado pessoal. Sua memória permanecerá.

John Howard (1938-2024) was a unique artist, one of the most creative I have ever known. In the early 1980s he made countless drawings, spontaneously documenting my musical journey.