Navegando Posts em Personalidades

Entrevista e debate antecedendo o evento

A única pátria válida: o instante.
Silvain Tesson (Dans les Forêts de Sibérie)

Confessadamente sou admirador do geógrafo, andarilho, viajante, wanderer, vagabond, eremita, narrador e contista Sylvain Tesson. Cinquenta e tais anos após a leitura da opera omnia de Saint-Exupéry, Sylvain Tesson me encanta, como ainda hoje me seduz o pensamento do piloto-escritor. Dois aventureiros solitários, Saint-Exupéry enfrentado na solidão do espaço aéreo, desertos, montanhas e mares, Sylvain Tesson levado à primeira forma do humano seguir caminho, a pé. O aviador a se mostrar espiritualista, sonhador, romântico e poético, o andarilho a evidenciar profundas reflexões sobre a condição humana, tantas delas cáusticas, céticas, mas igualmente plenas de metáforas líricas, que incitam o leitor a também refletir.

Estou a me lembrar de que anos atrás, em Paris, ao buscar livros sobre aventura, mormente títulos sobre montanhas himalaias, fui à livraria de quartier, próxima ao local onde velhos e diletos amigos sempre me abrigaram, e encontrei Petit traité sur l’immensité du monde, de Tesson. Perguntei a um dos atendentes sobre o autor. Disse-me que nada sabia. Ao iniciar a leitura, no dia anterior ao meu regresso à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, interessei-me e voltei à livraria, onde comprei outras obras do jovem escritor.

Tantas foram as vezes, nesse convívio semanal com os leitores, que reiterei preferência por livros de aventura ao atravessar o oceano. Fazem-me companhia, relaxam-me e provocam o aguçamento da imaginação, tão necessária a nós, brasileiros, mormente nesses últimos anos de inquietação crescente e impasse à vista.

Levei comigo Dans les Forêts de Sibérie, de Sylvain Tesson. Ainda não finalizei a leitura, mas durante o voo de ida a neta Ana Clara comentou que tantas foram as resenhas que escrevi sobre as obras do autor francês que seria ótimo se pudesse conhecê-lo. Tranquilizei-a, a dizer que três vezes escrevi às Éditions Gallimard, a partir do site, e jamais recebi resposta. O voo serviu para que o avô lesse à Ana Clara passagens reflexivas que a entusiasmaram. Brevemente escreverei resenha.

Devido ao significado da apresentação em Saint-Germain-en-Laye, tive a grata surpresa de encontrar amigos que foram especialmente para o evento: o musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e a esposa Manuela chegaram de Portugal, meu ex-aluno Paulo Filla e a esposa Noriko, do Brasil, assim como dileta amiga de Regina, a arquiteta Ana Maria Bovério. Especialmente para o recital, da Normandia, o compositor e pensador François Servenière. Nossos e-mails, trocados semanalmente, já ultrapassaram as 1.000 páginas! Música, literatura, artes e cotidiano são temas constantes nessas epístolas eletrônicas.

Passei os dias 9 e 10 de Janeiro a estudar para o recital do dia 11. Generosamente minhas amigas da década de 1960, Nicole Billy e Odile Robert, violinista e pianista, respectivamente, cederam seus pianos para ensaios que se faziam necessários.

Um dia antes da apresentação, após almoço com Paulo Filla e Noriko em café-restaurante junto à estação de metrô Convention, atravessamos a rua a fim de verificar, na mesma Librairie Le Divan onde adquirira o primeiro livro de Tesson, estabelecimento de quartier, friso, se obra nova do autor em questão fora lançada. Foi quando vi cartaz em que se lia que o livro de contos S’Abandonner à Vivre teria manhã de autógrafos no dia 12 naquele local, um dia após meu recital. O acaso de que tanto falo no livro Témoignages nº 4 (Université Sorbonne, 2012) novamente se fez presente.

Manhã fria de domingo e livraria lotada. A anteceder a sessão de autógrafos, Sylvain Tesson é entrevistado por uma senhora bem articulada e perguntas incisivas tiveram respostas à altura. Perpassou nesse diálogo parte de suas preocupações. A solidão voluntária sempre buscada e as viagens pelo mundo, menos do que apenas descrever territórios percorridos, inserem no pensamento de Tesson reflexões profundas sobre a condição humana. Dir-se-ia que Tesson, nesses desafios físico-mentais extremos, sabe que não mudará a conduta dos homens, mas leva o leitor a abandonar tantos conceitos supérfluos, realmente desnecessários,  que afligem o citadino, preferencialmente. O distanciamento das urbes e o choque de civilizações ao longo  das travessias estabelecem uma mistura rica, a depreender reflexões de profundo interesse. A natureza é imperativa e Tesson sabe extrair lições que estão sendo abandonadas pelas últimas gerações, sob riscos de que só se acentuem. Essencialmente Tesson é autor de narrativas. Todavia, visita o compartimento de contos. Indagado por que não escrever romances e sim nouvelles, respondeu que o desenvolvimento de um romance poderia obstaculizar o narrador das tantas andanças e aventuras e que o conto, pela brevidade inerente, não o impede de continuar narrativas. Paradoxalmente talvez, responderia a outra questão, a afirmar que tem preferência pelo ato que leva à escrita, em detrimento das sucessivas travessias. Insistiria em ponto recorrente, pois não gosta de ficar em lugar fixo, como Paris, fazendo-o brevemente nos regressos das aventuras a que se propõe. Contudo, observou que, a depender da mente, pode o homem ter essa “travessia” na própria cidade, mas que isso pressupõe grande controle mental.

Ao final da entrevista, a senhora que formulou perguntas abriu o debate para o numeroso público presente. Fiz-lhe questões relacionadas à música. Primeiramente, uma relacionada ao livro que estava a ler, pois ao noroeste do lago Baikal, em sua cabana isolada com apenas duas janelas, longe dezenas de quilômetros de qualquer outro humano, certo dia ficou a olhar do interior a paisagem e a ouvir Schubert. Afirmou que estudara música e que Schubert, Schumann, Fauré estavam entre seus favoritos. A seguir perguntei-lhe sobre a flauta doce que utilizou ao realizar a longa travessia de um gulag até Calcutá, fazendo-lhe companhia e a ser de grande utilidade, pois, ao se aproximar de uma daquelas tendas redondas (yourte em francês, ger em mongol) erguidas por nômades na Mongólia, miúdos surgiam à porta e a recepção amistosa era certa. Disse que aprendeu recentemente a tocar gaita de fole, pois seu som é ouvido bem ao longe.

No momento dos autógrafos entreguei-lhe cópia de meus blogs sobre sua obra, alguns de meus CDs, inclusive um com obras para piano de Fauré, e Témoignages. Em Dans les Forêts de Sibérie coloquei uma pergunta: “O que a música representa para você”? A resposta, após olhar-me e pensar uns bons segundos: “O único momento em que não estou melancólico é quando escuto música triste, que se encarrega do peso de minha pena”.

Certamente o pensamento de Ana Clara tem poder muito intenso, pois o encontro realizou-se.

My unexpected meeting with the geographer, explorer and writer Sylvain Tesson during a book signing of one of his titles in a crowded Divan bookstore in Paris, some of the questions raised by the audience and the thought-provoking answers given by Tesson.

 

Urge Desvelar um Grande Artista!

A Essência da Arte, Simplesmente

Pintor superior
Se você quiser sofrer
Nem as verdades, e
Nem as mentiras,
Curam uma dor egoísta.
Porém se eu pudesse hoje
Pintar o amor
Pintaria você…
Simples, pura e bela.
Como uma flor.
Assumo o meu eu e o seu eu
superior.
Luca Vitali

A Exposição que seria realizada na Casa Carramate no último dia 5 de Dezembro em homenagem a Luca Vitali, esse grande artista que partiu em Abril último, estaria sob a égide da emoção. Fortes aguaceiros e uma imensa árvore que caiu, obliteraram passagens e derrubaram a energia elétrica. Prenúncio de um verão que sempre vem acompanhado de tragédias, mercê do descaso de nossas autoridades municipais durante o período de estio. A homenagem teve de ser adiada uma hora antes da Exposição. Contudo, é sempre prazeroso, nostálgico e reverencial falar do imenso artista e saudoso amigo Luca Vitali. O blog já estava montado e, portanto, resolvi publicá-lo, apesar desse impasse. Lembraria o post publicado logo após sua morte (Luca Vitali – 1940-2013, 20/04/2013) e um aspecto quase desconhecido do público: Luca, o poeta de pouquíssimos e argutos poemas.

Em “Amo-te-me” (São Paulo, Ateniense, 1988), Luca Vitali mostra-se o vate crítico, sem concessão a quaisquer derivativos prazerosos. O pequeno livro de poemas tem por vezes o cunho cáustico e as palavras atingem fundo o leitor. Outros merecem várias leituras para que a compreensão se dê, graças a uma hermenêutica própria, que não se destina a agradar a fim do efêmero reconhecimento. Os poemas lá estão, provocativos mas não intencionais, denunciadores sem máculas. O espaço reservado à torrente criativa que jorrava em forma de desenhos, telas acrílicas, design de interiores é um, inequívoco. O poema poderia ser o resultado do desalento frente à civilização em permanente deterioração. Há em muitos versos o desânimo, a certeza de que o homem Luca não foi moldado para se imiscuir nesse lodaçal que corrompe, deteriora, embrutece. Mergulha em si mesmo: “Olhar para o interior,/ o caminho da luz e/ flutuar na estrada, mesmo que irregular, da vida”. Luca é um puro. Nossa profunda amizade fazia-me apreender a alma generosa do artista, sempre propenso a ajudar o próximo incapacitado para que encontrasse o caminho da arte através da luz, do desenho, da cor, do sentimento solidário. Presenciar tantas injustiças, ou mesmo conviver com o irreparável, deve ter deixado profundas marcas na sensibilidade de Luca e “Amo-te-me” é o grito surdo de quem tudo observa e, apenas através da arte, buscava a diária reinvenção.

Poemas traduzem esse apelo que vem do de profundis do saudoso amigo:

O amor transforma uma mentira
E os males numa digna verdade.
Porque o superior é proposta real
De felicidade íntima.
Conta comigo para estar na Glória de
Deus
Conta comigo para
Estar na glória de
Vocês
Não peço perdão, porque
Não tem pecado na ignorância.

No poema que dá título ao livro, “Amo-te-me”,  Luca me faz lembrar versos do compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915) em “Mysthère”, onde há nítida influência do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900):

Sou eles. Então sou só.
Com eles ou com muitos, seria
sem nenhum, e comigo também
não sou.
Sou com quem?
Antes comigo para ser eles.
E eles?
São meus seus, sigo comigo.
e eles sou eu
único.
Então sou eles, não deles.
Pai, Filho, Espírito.
Sou um só?
Sim, sou o Sol para ser de
muitos, eu para ser de vocês.
Amo-te-me

Uma das grandes qualidades de Luca Vitali está na profunda percepção. Cerca de 50 desenhos Luca criou para meus blogs ou para situações a partir de nossas profícuas conversas. Ao longo dos posts observei, reiteradas vezes, que Luca tinha um lápis na mente e que me impressionava a presteza com que apreendia uma ideia. Em uma das conversas descontraídas disse-lhe que, se seu cérebro fosse radiografado, preliminarmente deveria ele dizer aos médicos que o lápis lá estava e que não deveriam, portanto, tentar retirá-lo.

Após meu recital em Paris em fins de Janeiro, Regina e eu fomos visitar François Servenière, Elisa e os filhos em Blangy-le-Chatêau, na Normandia. Em nossas conversas, um dos temas foi a série constituída de Sept Études Cosmiques, que Servenière compôs a partir de pinturas em acrílico  sobre tela de Luca Vitali, a Série Cósmica. A morte prematura de Luca levou François a compor, sob forte emoção, o Outono Cósmico. Os sete estudos, mais a obra in memoriam de Luca Vitali, penso gravá-los em 2015 na Bélgica. Nessa curta estadia na Normandia, o dileto amigo nos levou conhecer pontos pitorescos da região: Deauville, Trouville, Honfleur. Visitei essa bela região em 1959. A Normandia ficou ainda mais divulgada após o desembarque aliado em 1944, início da grande ofensiva que levaria à derrota do nazismo. Ao contar a Luca os episódios em que milhares de jovens pereceram, o pintor ficou impactado. O desenho “Reenergização da Normandia” representa o duplo tributo, aos soldados que batalharam e ao amigo François Servenière. O compositor não deixaria de pensar um só dia nessa imagem em que, dos arames farpados, Luca tiraria a essência do acontecido, a fazer transcender do ferro retorcido a clave de Sol, a esperança através da música. O desaparecimento do artista, pouco depois, despertou ainda mais as musas que povoam a mente de Servenière. Surgiria a “Symphony for the Braves” para orquestra. São sete movimentos profundamente intensos e emotivos. Dois deles, o sexto e o sétimo, podem ser ouvidos pelo leitor ao clicar os links abaixo.

6º movimento: Peace for the Braves

7º movimento: Redemption

Luca pintor, puro, não afeito aos modismos nem à condução de sua arte pelos marchands. Caem como uma luva as palavras do Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, quando afirma que “verdadeiros enganadores, graças à moda e a manipulação do gosto dos colecionadores provocadas pelos marchands e críticos, têm obras que alcançam preços vertiginosos”. Observa que “escritores, pensadores e artistas medíocres ou nulos, mas vistosos e pirotécnicos, espertos em publicidade e autopromoção, manobram com destreza os piores instintos do público e alcançam altíssimos índices de popularidade. Ficam parecendo os melhores para a inculta maioria, e suas obras valorizadas e divulgadas” (La Civilización del Espectáculo). Estou a me lembrar que visitei com Luca uma galeria de arte que expunha obras contemporâneas. Pormenorizou-me as técnicas de pintura empregadas, elogiando algumas e execrando outras, que considerava verdadeiros embustes. Luca desconhecia alguns dos expositores. Na sequência, vimos que um desses medíocres exemplares era um dos mais festejados. Realmente pinturas sem plano estabelecido, sem nuances, sem alma… sem nada. Fatos como esse, que ocorrem no mundo inteiro, levaram Vargas Llosa a não mais visitar Bienais de Arte. Acrescentaria, nas Artes Plásticas e na Música pululam exemplos, a todo instante.

Certamente a data da homenagem será remarcada. Não retirei o convite acima, pois as palavras nele contidas traduzem muito a intimidade e o carinho de familiares e amigos pelo homem, o artista, o amigo. Um pintor que não pode ser esquecido.

An exhibition in tribute to Luca Vitali, who passed away last April, was scheduled to take place on 5 December, but was postponed due to the heavy rain that hit São Paulo. Anyway, this post was written as a tribute to his memory. A multi-talented painter and graphic artist, Luca was also a poet with a book published. In this post I comment on some of his poems and also on François Servenière’s work for orchestra, “Symphony for the Braves”, inspired by one of Luca’s drawings. By clicking on the links provided readers may listen to two movements of Servenière’s symphony.

  

“No 100º Aniversário de Maria Augusta Barbosa”

O homem olímpico não ignora o seu contrário,
não foge à sua dor: utiliza-a como a um instrumento de perfeição. 
Agostinho da Silva

O culto às figuras que marcaram determinada área na busca incessante direcionada ao conhecimento e ao caminhar pela História de maneira integrada e harmoniosa deveria ser constante absoluta. Nem sempre o é e tantas personalidades que realizaram obras meritórias permanecem em penumbra constrangedora, no mínimo.

Bem houve a Imprensa da Universidade de Coimbra publicar o resultado de projeto acalentado pelos professores e musicólogos José Maria Pedrosa Cardoso e Margarida Lopes de Miranda, intencionados há longa data em prestar homenagem à musicóloga Maria Augusta Barbosa (1912-2012), figura singular na musicologia portuguesa (“Sons do Clássico – no 100º Aniversário de Maria Augusta Barbosa”. Coordenação J.M. Pedrosa Cardoso, Margarida Lopes de Miranda, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, Dezembro de 2012, 280 págs).

Para que o leitor apreenda a importância da homenageada, transcrevo o breve perfil traçado na “Abertura” do livro por seu mais próximo discípulo, Doutor Pedrosa Cardoso:

“Maria Augusta Barbosa investiu grande parte dos seus anos no estudo: aos 31 anos, após a conclusão dos cursos superiores de Piano e Composição no Conservatório Nacional de Lisboa, concluiu a sua licenciatura em Ciências Musicais na Universidade Humboldt de Berlim e aos 58 obteve o grau de Doctor Philosophiae, área de Ciências Musicais, na Universidade de Colônia.

No Conservatório Nacional fez duas etapas: a primeira, por força da II Grande Guerra, durante 13 anos, aceitando um convite do Diretor, Dr. Ivos Cruz, e a segunda, durante 9 anos, compelida pelo Diretor Geral do Ensino Superior a regressar ao país.

O resto de sua vida foi o ensino universitário: primeiro, na Universidade Nova de Lisboa, onde aliás viu reconhecido o seu doutoramento e onde criou a primeira licenciatura em Ciências Musicais em Portugal, aí permanecendo até sua jubilação (1982). Em seguida, gratuitamente, na Universidade de Coimbra e na Universidade de Lisboa, prestando ainda notável contributo na Universidade Autónoma e na Universidade Lusíada. E foi em plena actividade nas Universidades de Coimbra e Lusíada que viu chegar ao fim, em 2001, aos 89 anos, inesperadamente para ela, a sua carreira universitária”.

Para a elaboração do livro, os coordenadores buscaram a colaboração de especialistas que tiveram relação com a ilustre homenageada, seja através de estudos conjuntos, ação pedagógica ou laços de amizade. Os textos inseridos compõem-se harmoniosamente e estudiosos da dimensão de  Mário Vieira de Carvalho, Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Gerhard Doderer, entre outros, oferecem contributos de valor. Dois artigos dos coordenadores têm igualmente grande relevância. Há sequência histórica nas contribuições de Vieira de Carvalho e Castelo-Branco, o primeiro a tratar da “Investigação em Música no Ensino Superior”, traçando, com a competência que lhe é peculiar, as origens da organização da musicologia no sentido mais amplo e das ciências musicais no âmbito da universidade e Salwa El-Shawan a buscar desenvolver o tema em torno da “Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa: os Primeiros Anos”, tributo à homenageada, que criou o curso de Licenciatura mencionado acima, ponto de partida para o desenvolvimento da música como ciência nas universidades portuguesas.

Destacaria a contribuição de Pedrosa Cardoso, que sintetiza em texto fundamental – “Em Busca do Peculiar na Música Sacra Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” – parcela de seus aprofundamentos que resultaram em livros essenciais. Em posts anteriores já pormenorizei algumas de suas obras relevantes.

Tiveram os doutores Pedrosa Cardoso e Margarida L. de Miranda a feliz ideia de inserir dois textos da homenageada, referentes a uma breve autobiografia e ao período em que passou pesquisando em Berlin durante a Segunda Grande Guerra. Recolhida ao Lar “Casa de Saúde e Repouso da Amoreira” em 2002, após problemas físicos, Maria Augusta Barbosa ditaria esses textos à fiel Sónia de Carvalho, funcionária do estabelecimento. Os títulos foram dados pelos coordenadores. No primeiro relato, “As Curvas de Meu Percurso”, Maria Augusta Barbosa evidencia a vocação plena à pesquisa, sem subterfúgios. Uma vida inteira dedicada à Música, ao estudo aprofundado, ao ensino em alto nível. No segundo, “Debaixo do Fogo: A Música em Tempo de Guerra”, a homenageada descreve os tempos difíceis vividos de 1939 a 1943 em Berlim “… Facilmente me adaptei a um estudo absorvente no início de uma guerra ainda relativamente calma, evidente apenas no racionamento inteligentemente elaborado e obrigatoriamente seguido, além de alguns bombardeamentos nocturnos, durante os quais os estrangeiros, ao contrário dos nacionais, não eram obrigados a recolher aos abrigos. Aproveitei portanto essas vigílias forçadas para avançar no estudo das novas matérias e preparar os trabalhos marcados, entre os quais as longas transcrições de paleografia musical”. Tem-se nessas frases o sentido pleno do denodo e da obstinação voltada à mais precisa investigação.

Generosa, Maria Augusta Barbosa doaria todo seu acervo à Universidade de Coimbra (2003), onde foi uma das fundadoras, em 1986, do Mestrado em Ciências Musicais na Faculdade de Letras. Como bem se expressou, “concretizou-se aquando da minha fixação na residência actual”, a Casa de Repouso já citada. Aos c. 8.000 livros, mais farta documentação e registros fonográficos, somar-se-ia seu piano de concerto, um Bechstein de 3/4 de cauda, que hoje se encontra na Biblioteca Joanina da Universidade. Tive a honra de por duas vezes (2004 e 2005) nele interpretar meus recitais, sendo que o primeiro inteiramente dedicado ao notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), festejado por ocasião do tri-centenário.

O magnífico e justíssimo tributo à grande mestra servirá de imediato para a lembrança mais acentuada de uma das figuras fundamentais da música em Portugal no século XX. Seus numerosos e competentes ex-alunos, espalhados por terras lusíadas e alhures, saberão reverenciar Maria Augusta Barbosa ad eternum.

This post is an appreciation of the book Sons do Clássico (Sounds of Classic), written by a team of experts as a tribute to Maria Augusta Barbosa on the 100th anniversary of her birth. Musicologist, university teacher, founder of the Music Sciences Department of Universidade Nova de Lisboa, Maria Augusta was one of the most significant figures in music in Portugal in the last century.