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Pianista Ucraniano entre os maiores

O virtuose dotado de musicalidade
compreende mais profundamente a música do que o músico puro,
que não a vê se não como uma abstração matemática.
Gisèle Brelet
(“L’intérpretation créatrice”, 1951)

Certamente Shura Cherkassky permanecerá na história do piano como um dos mais completos intérpretes. Frequentou o repertório do barroco à contemporaneidade e legou uma arte voltada à tradição, mas plena de uma abordagem pessoal.

Nascido em Odessa, anos após se desloca com a família para os Estados Unidos, fugindo da Revolução Russa. Após aprendizado  com a mãe, Cherkassky estudará no Curtis Institute of Music com Josef Hofmann (sobre Hofmann, vide blog anterior). O mestre foi fundamental em sua formação e a ele estaria ligado até 1935. Uma de suas recomendações foi a do estudo diário de quatro horas, que Cherkassky seguiria à risca durante a existência. Facilidade e obstinação edificaram o pianista que teve carreira até o final de sua existência, atuando na América do Norte, Europa, Rússia, Extremo Oriente, Austrália e Nova Zelândia.

Clique para ouvir, de Josef Hofmann, Caleidoscópio, na interpretação de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=2AdDU6yNcCw

Apesar do respeito à tradição, Cherkassky nem sempre interpretava uma determinada obra seguindo seus próprios postulados anteriores e, apesar de ter tocado com as mais importantes orquestras do mundo, por vezes entre ensaio e apresentação pública poderia modificar sua execução. Se as obras românticas têm na interpretação de Cherkassky um tratamento especial quanto ao rubato, quando interpreta seus contemporâneos — Berg, Stravinsky, Stockhausen —, suas execuções se revestem de uma percepção invejável, sem quaisquer concessões. Harold Schonberg define bem determinadas características de Cherkassky: “Tem o som de ouro, a cor, a técnica infalível, a personalidade e, em seu melhor momento, o fluir e refluir da marca romântica. Suas interpretações são sempre idiossincráticas e interessantes” (“The Great Pianists”,1987).

Clique para ouvir, de Vladimir Rebikov (1866-1920), Valsa, na interpretação de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=HtVtqSJdxLc

Neste espaço apresentei ao longo do tempo uma centena de ilustres pianistas, que se consagraram em seus períodos devido as qualidades múltiplas, pessoais, intransferíveis. Entre os tantos intérpretes que desfilaram, Shura Cherkassky seria um daqueles que permaneceram também pela transcendência absoluta no quesito virtuosismo. Se György Cziffra foi um virtuose telúrico, que até o presente causa admiração e perplexidade (vide blogs: György Cziffra, 10-17-24,/04/2021), se Vladimir Horowitz (vide blog: Vladimir Horowitz, 22/02/2020) ficaria lembrado pelo virtuosismo, pujança sonora e graduações infindas das sonoridades, Cherkassky se insere nesse seleto grupo. Suas interpretações revelam o respeito pleno para com a partitura e, quando a serviço da técnica transcendente, o também virtuose absoluto.

Clique para ouvir, de Chopin, a Tarantela em Lá bemol Maior, op. 43, na interpretação de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=oAjsC9W_phM

Ao longo desses anos tenho ressaltado  a diferença entre notáveis pianistas de antanho e aqueles das gerações mais recentes. Vendo-se vídeos de Cherkassky, as maiores dificuldades pianísticas são transpostas sem quaisquer “recursos” corporais e teatralidade.  Tem-se a impressão nítida de que toda a mensagem está a ser transmitida, apenas ela, na sua integridade. O Eu do músico é passado ao público através do conteúdo que está a ser transmitido e interpretado após debruçamento pormenorizado sobre a composição, pois ela é essencial e duradoura.

Essas considerações fazem-me pensar no aperfeiçoamento tecnológico relacionado à apresentação pública gravada e filmada. Se verificarmos o vídeo abaixo, a câmara situa-se ao alto e por trás do pianista. A gravação é de um recital em 1993 no Carnegie Hall de Nova York. Cherkassky tinha 84 anos. A aclamação aos encores é total. A câmara capta bem as mãos de Cherkassky. Nenhum gesto para impactar o público, nenhum trejeito facial após cada execução. Tudo está lá e a mensagem, mormente no caso da hipertranscendente Islamey, de Balakirev, é assimilada integralmente, assim como nas outras criações interpretadas.

Clique para ouvir, de Balakirev, Islamey e outros peças mais de Anton Rubinstein, Rachmaninov e Morton Gould, apresentadas como encores em gravação ao vivo (1993), na interpretação magistral de Shura Cherkassky:

https://www.youtube.com/watch?v=_oGB8CC4mJE

Estou convencido de que a parafernália tecnológica utilizada para assimilar o gestual e a indumentária por vezes extravagante do intérprete tem sido impactante para as novas gerações, causando-lhes maravilhamento. Essa assertiva pode ter consequências futuras para novéis intérpretes, que, ao terem as “câmaras” como verdade basilar, transferem para elas parte da concentração.  Já abordei esse fato em muitos posts anteriores. O visual a preponderar. A própria apreensão do conteúdo de uma obra, por mais virtuoses que sejam os novos intérpretes, mormente os oriundos do Extremo Oriente ou do Leste Europeu, sofre a influência dessas novas engenhocas. Entrevistados, alguns desses intérpretes comentam suas carreiras, suas viagens e recepções, mas pouco têm a dizer sobre as obras que executarão e, quando o fazem, há o lugar comum, aprendido de maneira superficial através da oralidade ou de revistas ou livros.

Ouvir Shura Cherkassky é gratificante, pois impera a competência plena e a naturalidade da transmissão, fatores fulcrais para a real compreensão de uma obra.

The Ukrainian-born pianist Shura Cherkassky (1909-1995) was one of the greatest of the 20th century, though somewhat forgotten today. Listening to him is always a pleasure, because he respects tradition without losing spontaneity. An absolute virtuoso, making beautiful music pour from under his fingers.

 

O Império como sonho maior

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Eugénio de Andrade (1923-2005)

Nesse conturbado período em que a Ucrânia está a sofrer a invasão russa, mercê dos planos expansionistas de Vladimir Putin (1952- ), estive a pensar na presença de duas figuras que, oriundas de outras áreas, tiveram papel preponderante em seus países. Ligados à Música e à Comédia, tanto o extraordinário pianista polonês Ignaz Jan Paderewski (1860-1941) como o comediante ucraniano Volodimir Zelenski (1978- ), guardando-se as devidas dimensões, expõem qualidades raramente encontradas em políticos profissionais que, ao conseguirem entrar nessa atividade, não a abandonam. Do lado da Rússia, Putin governa o país desde 1999, devendo permanecer no poder até 2036!!! Alternância do Poder, impossível. Almejo da Grande Rússia dos tempos soviéticos, certamente, mercê inclusive de suas raízes, ligado que foi à temível KGB.

A alternância do Poder evita, entre tantos outros males, a sedimentação de conceitos que tendem a se deteriorar, a acomodação da entourage, o opositor sem voz e a vontade daquele que mantém o Poder como verdade absoluta. A frase, apócrifa talvez, L’État c’est moi, atribuída a Luiz XIV (1638-1715), foi e é praticada por ditadores espalhados pelo planeta, antes e após as sempre lembradas palavras.

Nesse desesperador conflito, Davi combate não contra Golias, mas contra um Colosso de Rodes. Não há a menor possibilidade de que uma simples pedra lançada de uma funda o destrua. Se do lado ocidental a Otan fica impossibilitada de intervir pela não adesão da Ucrânia à Organização, sob outro aspecto a Rússia já rechaçou por duas vezes exércitos numerosos e equipados. Em tempos de Napoleão (1812), expulsou um exército multinacional e, dos 450.000 mil soldados da invasão, 250.000 morreram e dezenas de milhares foram feitos prisioneiros. Entre os russos houve baixa aproximada de 300.000 homens (vide blog “Berezina”, 10/06/2017). A segunda Grande Guerra (1939-1945) assistiu à catastrófica retirada do que sobrou do exército do Führer ao se aventurar em terras da União Soviética. Torna-se inverossímil qualquer tentativa futura das forças da Otan  atacarem a Rússia – pregação defendida pelo Presidente Putin – mormente pelo fato de que o sólido armamento nos tantos países que são signatários da Organização lá está como peças defensivas, caso um Estado seja invadido pela Rússia. Todo o vernáculo proferido nas comissões europeias ou na ONU, assim como sanções impostas pelos países ocidentais críticos à invasão, são paliativos, pois a Ucrânia não pertence à Otan, uma das razões da decisão de Vladimir Putin para a invasão.

A Polônia é o país que mais tem abrigado os refugiados desta insana guerra. Foi invadida e dominada pelas tropas nazistas e, finda a Segunda Guerra, anexada à URSS. Essas duas trágicas situações deixaram marcas e dão margem ao afloramento da acolhida aos infortunados ucranianos. Hoje a fazer parte da Otan, revela-se acolhedora, suprindo essenciais necessidades de centenas de milhares que adentram seu território. Rússia e Polônia têm divergências sólidas que se prolongam. Incontáveis ucranianos dessalojados viverão doravante numa tebaida.

Paradoxal a atitude de Putin nesta premeditada invasão à Ucrânia. Considerados como “povo irmão”, cidadãos ucranianos estão sendo obrigados a se refugiar em países fronteiriços ou a resistir em solo pátrio. Quantos já não morreram! Indiscriminadamente, militares ucranianos e civis estão sendo mortos, sem contar a destruição do rico patrimônio arquitetônico da Ucrânia, assim como de seus edifícios residenciais. Certamente é incalculável o que custará ao invasor a restauração do país ou, parte da Ucrânia, se sob a direção de Zelensky. As cenas diárias são horripilantes e evidenciam os horrores da guerra, palavra proibida na Rússia a respeito do conflito, substituída por outras duas, “operação especial”.

Em plena vigência da URSS, os hotéis Metropol e o gigantesco Ukraína – o mais alto hotel do mundo à época, com seus 34 andares – figuravam entre os dois mais destacados de Moscou. Fosse o ucraniano um povo hostil, teria o establishment dado esse nome ao monumental hotel construído por ordem de Stálin, e cuja pedra fundamental foi fincada em 1947? Lá estive hospedado em 1962 durante o IIº Concurso Internacional Tchaikowsky. À noite, da janela do 25º andar observava os contornos do lendário rio Moscova. Perpassava-me parte da história da Rússia. Após reformas, o Hotel Ukraína presentemente é ainda o mais alto da Europa e integra a rede Radisson Collection Hotel. Fico a pensar na monstruosidade da guerra e, no caso Rússia-Ucrânia, na catástrofe atual, em que “irmãos russos” matam diariamente cidadãos indefesos através de ataques cirúrgicos que impossibilitam respostas. Será que Putin sabe - tenho lá minhas dúvidas - que alguns dos mais notáveis pianistas “russos” da história nasceram na Ucrânia: Vladimir Horowitz (Kiev), Sviatoslav Richter (Jitomir), Emil Guilels e Shura Cherkasky (Odessa), assim como o grande compositor Sergei Prokofiev (região de Donetsk)? Ao menos por respeito ao povo ucraniano, Vladimir Putin deveria propor a substituição definitiva do nome do Hotel icônico Ukraína. Máscaras cairiam.

Clique para ouvir, de Sergei Prokofiev, a Sonata nº 3, na interpretação de Emil Guilels:

https://www.youtube.com/watch?v=ogcbQfOMFa8

Chama-me a atenção, sob outra égide, o retalhamento que o Ocidente faz à cultura russa, o que demonstra o estágio atual das cabeças “pensantes” que elaboram programações pelo mundo. Festivais de cinema suspenderam filmes russos, livros russos estão sendo boicotados, temporada do célebre Ballet Bolshoi foi suspensa fora da Rússia, salas de concerto evitam a apresentação de composições do país litigante, intérpretes russos são substituídos.  Atitudes vergonhosas,  que apenas demonstram a obliteração e decadência da Cultura que se acentuam pelo planeta. A Rússia teve e tem um manancial criativo extraordinário em todas as áreas artísticas. Esses dirigentes das programações, cidadãos que na grande maioria não são músicos, tantos deles oriundos de outras áreas –  industrial, comercial, financeira… – não têm sensibilidade cultural e tentam punir a humanidade privando-a de bens perenes, irretocáveis. A estreiteza humana não tem limites. Punir a cultura russa pelos atos do ditador Putin que sonha com a Grande Rússia é algo absurdo. Neste ano se comemora o sesquicentenário de Alexandre Scriabine (vide blogs: “Alexandre Scriabine”, 22 e 29/01/2022). Deverei interpretar, em turnê em Portugal, dez Poemas do compositor russo. Já está programado. Tocarei.

No plano esportivo, sanções do Ocidente para quase todas as modalidades individuais e coletivas punem os atletas que, com dedicação e esforço, prepararam-se para as competições como almejo único.  Burocratas do esporte agem sem pensar na única razão da existência de seus empregos, os atletas, figuras fundamentais não ouvidas. Os dirigentes, orgulhosos pelas sanções; os atletas vendo estiolar-se a esperança. Sanções comerciais devem existir, mas estendê-las às artes e aos esportes!!!

Finalizando, estou a me lembrar da tragédia de Maurice Maeterlinck, “Pelléas et Mélisande”. Após a morte de Pelléas, assassinado pelo irmão Golaud, o avô Arkël dirá: “Se eu fosse Deus teria piedade do coração dos homens”.

O próximo blog será dedicado ao grande pianista, compositor e estadista polonês Ignacy Jan Paderewski, que bem poderia servir de exemplo a Putin, há mais de 20 anos no Poder a sonhar com a restauração do Império da Rússia. Em Citadelle, de Saint-Exupéry (1900-1944), há conceitos referentes ao Império, que deveria ser edificado a partir do fervor, da responsabilidade e da fraternidade.

Everything is indicating that President Vladimir Putin’s premeditation foresaw the catastrophic events arising from the invasion of Ukraine. Some of the greatest musicians of the 20th century were born in Ukraine and were considered “Russian”. Is this President not touched by the millions of refugees, formerly “brothers”, thousands of dead and the destruction of the country? For such tragedy there is only one culprit.

 

 

 

 

 

Tema natural, mas sob incontáveis apreensões

A morte dos outros me afeta:
e seu morrer, a sua morte,
são parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

Joan Reventós i Carner (1927-2004)
(“Os anjos não sabem velar os mortos”)

Às voltas com momentos críticos que está a passar um de meus mais intensos amigos, amigo-irmão, estive a pensar sobre a morte e a percepção que dela se tem a partir de tantas circunstâncias. Apreendida com naturalidade e resignação, mercê de fatores voltados às religiões; recepcionada na solidão de quem perde um ente querido; exacerbada por multidões quando atinge figuras mediáticas, a morte, sem se importar com essas reações, segue inexorável. Mors certa hora incerta, como reza o latim.

O notável filósofo e musicólogo Vladimir Jankélévitch (1903-1985), em seu livro “La Mort” (France, Flammarion, 1977), a tratar do mistério e do fenômeno da morte, no capítulo inicial, escreve sobre o cotidiano do destino final: “Podemos considerar que o problema da morte seja propriamente um problema filosófico. Se ponderarmos objetivamente e de um ponto de vista geral, não podemos basicamente saber o que seria uma ‘metafísica da morte’; contrariamente, ‘entendemos’ muito bem uma ‘física’ da morte, seja ela referente à biologia ou medicina, sociologia ou demografia: a morte é um fenômeno biológico, como o nascimento, a puberdade e a velhice; a mortalidade é um fenômeno social como a natalidade, o casamento ou a criminalidade. Para o médico, o fenômeno letal é determinável e previsível, segundo especialidades, em função da duração média da vida e das considerações gerais dos meios. Sob o aspecto jurídico e legal, a morte é um fenômeno também natural: nas prefeituras, a seção voltada às mortes é como as outras existentes e, ao lado dela, há uma subdivisão do estado civil, outras para nascimentos e casamentos; o serviço funerário é um órgão municipal, nem mais nem menos do que o das vias públicas, dos jardins públicos ou da iluminação das ruas; a coletividade mantém indistintamente suas maternidades, suas escolas e suas casas de saúde. A população aumenta com os nascimentos, decresce com as mortes: nenhum mistério, simplesmente uma lei natural e um fenômeno empírico normal, ao qual a impessoalidade das estatísticas e dos meios retira todo o caráter de tragédia”. Essa percepção, que condiz com a realidade cotidiana, mesmo que dela muitas vezes não tenhamos consciência, minimiza até certo ponto a extensão da tragédia, a depender de convicções, crenças e idolatrias.

Jankélévitch desenvolve considerações sobre um quadro de Domenico Fetti (1589-1623), “Melancolia” ou “Meditação”, alegoria a representar a Sabedoria meditando sobre um crânio.  Ao ver do filósofo, “não há nada a se pensar sobre a morte e a Sabedoria está tão vazia quanto o crânio sobre o qual ela medita. Diante da morte, o homem está como se estivesse diante da profundeza superficial do céu noturno: ele não sabe o que fazer”.

Deparamo-nos com a morte nesses tempos pandêmicos. Parentes e amigos partiram e legião de infortunados, que não resistiram,  fizeram-me refletir sobre o tema. A apreensão da morte num meio familiar tem uma  dimensão, mas quando atinge figuras amplamente mediáticas recebe por parte da multidão recepção desconcertante.

Estou a me lembrar de três fatos determinantes. Quando do assassinato da atriz de novelas Daniela Perez, aos 28 de Dezembro de 1992, uma turba compareceu à Delegacia e em número maior ao cemitério. O fato serviu para que escrevesse ao jornal “O Telégrafo” da Horta, sede da ilha Faial, pertencente ao Arquipélago dos Açores, pois era correspondente do Suplemento Literário “Antilha” do diário faiense, artigo a responder texto precedente do ótimo poeta da ilha, Heitor Aghá Silva, sobre o malefício que as novelas traziam à língua mãe praticada no arquipélago (vide blogs: “A Voz e o Eco Captados Além-Mar” e “Um trágico amalgamar”, 20 e 27/03/2010, respectivamente). Em “Um trágico amalgamar”, publicado no “Antilha” aos 12 de Março de 1993, fazia referência a essa multidão: “No cemitério ou junto à Delegacia de Polícia, durante dias, um público absurdo buscava vaticinar o veredicto para os réus e, na histeria, idolatrar os mitos vivos que compareciam aos lugares citados”.

A colocação se faz necessária após dias recentes, quando mídias nacionais voltaram-se sem tréguas para noticiário semelhante, ou seja, a trágica morte da jovem Marília Mendonça, quiçá tão ventilada e abrangente como o foram as mortes de Tancredo Neves e Airton Senna! Tantos pronunciamentos de figuras conhecidas profetizando a “eternidade” da jovem cantora. Tancredo Neves faz parte essencial de nossa história e Airton Senna está perpetuado como herói nacional.

Dias antes morria um dos maiores pianistas da atualidade em termos mundiais, Nelson Freire (1944-2021). Sem exagero e sem ter o mínimo conhecimento de “leis” estatísticas, ousaria dizer que a divulgação de sua morte nesses recentes dias talvez tenha correspondido a bem menos de 0,1%, se comparada for à dispensada à morte e ao sepultamento da cantora. Nelson Freire se apresentou durante cerca de 60 anos nas mais importantes salas de concerto do planeta e foi glória absoluta de nossa arte. A perenidade certa já lhe foi garantida, pois Nelson Freire está no panteão onde só os iluminados repousam.

Resignado, cercado de amigos e familiares que o amam, meu amigo-irmão aguarda o momento de partir.

A imagem inicial, “L’arbre des morts”, da artista Jeanne Esmein, inspira-se num poema de Louis Gillaume (1907-1971) que rememora lenda nórdica, segundo a qual, à chegada do recém-nascido, plantava-se uma árvore, futuro esquife a deslizar rio baixo após a existência. A primeira estrofe…

“L’arbre funèbre atteint la pleine mer
il se croit seul quand mille autres l’entourent
offrant leur flambée obscure à la lune”

The critical condition of a friend who is like a brother to me made me think about death. I quote remarks by the noted philosopher Vladimir Jankelévitch on the subject and also comment on the public’s reception of death.