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Impasse a desprezar a arte do passado

A arte contemporânea
é a narrativa de um naufrágio e de um desaparecimento.
Jean Clair

A arte tornada mercado, a cultura transformada em tudo-cultural,
fazem com que se torne normal que malfeitores,
ainda denominados agentes culturais e mesmo artistas,
aproveitem-se da candura de uns
e da vontade de fazer maldades dos outros,
mormente se esses outros em questão
tenham enfado e sejam riquíssimos.
Didier Desrimais

Por diversas vezes ao longo desses anos abordei a decadência progressiva da cultura voltada às artes. Movida por interesses que buscam o lucro fácil, mais acentuadamente assiste-se à mudança de paradigmas e a todo o processo a visar ao inusitado camuflado de “vanguarda”, não importa o que será exposto, desde que cause impacto a um público numeroso, a cada ano mais bestializado. Acontece o mesmo com a música de alto consumo, que alcançou parâmetros de total alienação, haja vista os shows musicais com sons e ruídos em altíssimos decibéis, parafernália de luzes, correria de berradores que atravessam o palco insuflando a multidão, que, hipnotizada, entra em transe.

O compositor François Servenière me enviou artigo publicado em França (Causeur.fr, 15/12/2019) sob o título “L’art contemporain se mange par le deux bouts…”, no qual o articulista, Didier Desrimais, faz recrudescer ainda mais incisivamente, através de exemplos gritantes, os caminhos, desprovidos do menor bom senso, trilhados por “artistas” e promotores da arte contemporânea.

Desrimais observa: “Há alguns meses, o Museu do Louvre propunha aos seus visitantes um ‘percurso Jay-Z e Beyoncé’, nome de um casal de rappers que havia realizado um clip nas galerias do museu. Nessa oportunidade, sem rir, Anne-Laure Béatrix, diretora de relações exteriores do Louvre, dizia: ‘Buscamos parcerias que tenham bom senso’ (Le Monde, 23/07/2018); enquanto que Pierre Adrien Poulouin, mediador, ultrapassava as medidas: ‘O Louvre torna-se uma marca da moda, onde se passam coisas interessantes’ ”!!!

Estou a me lembrar do notável escritor, Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, em observações sobre a decadência cultural: “Na Cultura, temos retrocedido, sem nossa vontade, por culpa fundamentalmente dos países mais cultos, os que estão na vanguarda do desenvolvimento, os que marcam as pautas e as metas que pouco a pouco contagiam os outros”. Comenta sobre o mercado livre de arte, que fixa preços em função da oferta e da procura, acentuando que a decadência cultural expõe deteriorações sempre mais acentuadas. Afirma: “No domínio da pintura, como exemplo, obras de verdadeiros enganadores, graças ao modismo e à manipulação do gosto dos colecionadores, estimulados pela ação de marchands e críticos, têm alcançado preços vertiginosos” (La Civilización del espectáculo, 2012).

Didier Desrimais menciona conceitos de Jean Clair, escritor e conservador dos museus de França, inseridos em seu livro “L’hiver de la culture” (France, Flammarion, 2011). Escreve o articulista: “Jean Clair denunciava os ‘abatedores culturais’ que enterram definitivamente os artistas mortos, assim como os museus de Arte contemporânea e outros FRAC (Fonds régionaux d’art contemporain), que ignoram os verdadeiros artistas e promovem agentes comerciais de algumas galerias. Ele já pressentia que acabariam abatendo a arte naquilo que ela representa como alto padrão de cultura, tornada ‘marca cool’, presentemente”.

O que levou Desrimais ao artigo foi a absurda notícia de que tomou conhecimento: “Soubemos ontem que uma banana presa por adesivo sobre um muro da Feira de Arte Basel, em Miami, lá colocada por um artista-agente-comercial, foi retirada e comida pela soma de cento e vinte mil dólares e que uma outra foi imediatamente colocada no lugar, devidamente fixada. Igualmente arrancada e devorada pelo mesmo preço. Uma outra substituiu a precedente. Logo não mais se contava o número de bananas a cento e vinte mil dólares arrancadas e comidas. O público se cansará de tais cenas como de outras, evidentemente. O agente-cultural-artista, sempre audacioso, tudo ousando, substituirá a banana por um… morango, ao preço de cento e cinquenta mil dólares, após por um damasco a cento e oitenta mil dólares, maçãs por duzentos mil dólares e cerejas por duzentos e cinquenta mil dólares.

Haverá o momento em que o público se cansará das frutas, os endinheirados em certo momento se cansam de tudo. Esse público específico e riquíssimo já não se havia cansado dos animais cortados em dois e conservados no formol de Damien Hirst? É preciso convir que é impossível comer um pedaço dessas obras nessas condições.

O tempo virá em que comerão o adesivo que prendia a banana (trezentos mil dólares), ou beberão o formol onde permanecem as obras de Hirst (quinhentos mil dólares o litro) e explicarão, nessa língua estranha que preenche todos os prospectos das exposições de todas as FRAC de França e de Navarra, ‘esse gesto subversivo que interroga o status das frutas, dos adesivos e do formol, e a permutabilidade desses últimos numa mediação artística que não ignora as responsabilidades do artista na instauração de uma obra que alvoroça as normas’ ”.

Esse artigo poderia ser transplantado para nossa realidade. Galerias e leilões de arte apresentam ao público “artistas-doublés de agentes comerciais”, amparando-me na afirmação de Didier Desrimais. Uma classe elitista, que enriqueceu nesses últimos tempos sem o embasamento cultural de raiz, adquire a preços bem elevados obras de “artistas” sem qualidade intrínseca, mas que estão na moda, insuflados pela mídia e pela crítica de arte, bem questionável, diga-se. Esse público, desprovido de ao menos conhecimento cultural mediano, adquire e se gaba da aquisição. É constrangedor verificar que obras de grandes artistas da pintura do nosso passado foram incrivelmente desvalorizadas, contrastando com as “obras” de tantos soi-disant das artes atualmente. Valho-me de frase de Jean Clair acima mencionada: “enterram definitivamente os artistas mortos”.

Vargas Llosa, por sua vez, escreveu que não mais visitaria Bienais de Arte, após exposição em determinada sala em Londres em que as esculturas eram feitas com fezes de elefantes. Filas se formavam e máscaras se faziam necessárias devido ao odor desagradável. O que não dizer do casal de artistas contemporâneos, Christo e Jeanne-Claude, que embalou, décadas atrás, Le Pont Neuf, o Parlamento alemão e tantos outros monumentos, comercializando após, devidamente assinados, retalhos de plástico – matéria prima das propostas – em várias dimensões.

Há dias recebi link, inserido em anúncio de publicação universitária com apoio do Estado, frise-se, contendo música experimental, eletroacústica… Poupo o leitor, não inserindo exemplos “musicais” dessas tendências que tive o desprazer de ouvir por poucos segundos. Um deles, apologia ao grunhido. Contudo, entendem os organizadores dessa publicação estar dando um passo à frente.

O artigo de Didier Desrimais aponta para o limite extremo de uma associação que é real: de um lado, a mediocridade amparada por galerias e marchands que forçam as tendências a serem aceitas pelo público alvo; de outro lado, o comprador sem lastro cultural sedimentado, mas que ascendeu rapidamente à riqueza.

O correr dos anos sempre redescobre os verdadeiros valores, mesmo que décadas ou séculos tenham depositado camadas de esquecimento. Isso é rigorosamente histórico. O medíocre, efêmero, afamado temporariamente, esse desaparecerá na poeira levada pelo vento.

A U$120.000 banana duct-taped to a wall at the Art Basel exhibition in Miami led to an article signed by Didier Desrimais published in France (Causeur Magazine, 15.12.19) about the lack of judgment of pseudo-artists, gallerists and critics to whom art means opposing whatever seems to be the Establishment. The columnist’s words could be transplanted to Brazil, where self-proclaimed “artists” devoid of talent are received with fanfare by the mainstream media and greedily consumed by nouveaux riches with the least cultivated tastes, while great figures of the past fall into obscurity and have their works depreciated. What comforts me is my belief that time always rediscovers true talents, even though decades or even centuries have passed. Mediocrity does not last.


André Posman e um de seus promissores gêmeos

A grande amizade e o grande amor são aqueles que dão sem pedir,
que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz ativa, não passiva.

O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
é tê-las feito.
Agostinho da Silva

Inúmeros blogs foram dedicados, desde o longínquo Março de 2007, à Bélgica Flamenga, precisamente Gent e Mullem, afetos, música e geografia. André Posman – fundador da De Rode Pomp, gravadora que lançou muitos CDs meus gravados em Mullem sob a supervisão do extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé – jamais deixou de acalentar os programas que eu apresentava para a sua gravadora. Amante inveterado do inusitado, acolhia o repertório tradicional, mas proporcionou em sua sala de concertos recitais memoráveis, camerísticos e instrumento solo, interpretados por músicos europeus e tantos outros da Rússia, a preferenciar programação pouco frequentada, do barroco à contemporaneidade mais hodierna. Naquela sala de cerca de 200 lugares, aproximadamente, promovia cento e tantos concertos todos os anos.

Infelizmente, De Rode Pomp teve suas atividades encerradas anos atrás, como aliás muitas associações de concertos e selos seletivos europeus, esses cuidadosos, de pequenas e significativas tiragens. A indústria cultural é implacável e dificilmente organizações pequenas e voltadas unicamente à qualidade subsistem. Sempre confessei que os anos a gravar para a De Rode Pomp foram os mais felizes de minha atividade musical. André Posman, professor de história aposentado, fundador da De Rode Pomp e da galeria de artes La Perseveranza, também desativada, continua sempre um entusiasta apaixonado pelas artes. Sou-lhe eternamente grato, pois foi dele o convite para que desse anualmente recitais em sua sala de concertos a partir de 1996 e gravasse para seu prestigioso selo.

Creio já ter narrado em blog bem anterior episódio ocorrido logo após ter interpretado, em recital na sala de concertos da De Rode Pomp, os 12 Estudos para piano de Debussy, que gravaria nos dias subsequentes em Mullem. Para os recitais especiais, André oferecia ceia de quinta a sábado para frequentadores que reservavam mesas. A ceia se dava na sala da galeria La Perseveranza, sob os cuidados do grand chef Philippe. Após meu recital, jantava com amigos quando se senta à nossa mesa o representante de um selo mundial de grande tiragem. Disse-me que gostaria que eu fizesse parte da lista dos pianistas que gravam para a empresa. Fiz-lhe três perguntas: “poderia escolher o programa do CD, gravar em Mullem com Johan Kennivé – meu templo mágico e engenheiro de som de alto nível -, escrever texto do encarte? O cidadão disse-me que a empresa escolhia o programa dos integrantes da lista, a cidade para a gravação, que poderia ser na Europa, Ásia ou América do Norte, e que muitos CDs saiam inclusive sem texto a explicar o programa. Acabara de falar e meu diletíssimo André, flamengo fisicamente avantajado, passava frente à mesa. Levantei-me, dei-lhe um beijo na face e disse-lhe que nossa amizade era eterna. André sorriu abertamente e o cidadão que me convidara levantou-se polidamente e se retirou.

Estou a me lembrar da gestação de alto risco de Jamila, dedicada  esposa e colaboradora de André, que esteve meses num hospital público – excelente padrão belga – para acompanhamento. Fui visitá-la nesse difícil período. Os gêmeos, Yassine e Taha, nasceram saudáveis e desde a tenra infância revelaram dons musicais inequívocos, Taha ao piano e Yassine na clarineta, hoje saxofone. Acompanhei o desenvolvimento dos gêmeos, pois todos os anos, quando em Gent para recitais e gravações, ouvia-os e observava o rápido evoluir dos irmãos.

Frisei inúmeras vezes nesse espaço a importância da formação dentro do lar. Taha e Yassine nasceram em berço propício, pois Jamila é mãe devotada, que acompanha atentamente o desenvolver de seus filhos.

Essa ligação amorosa com Gent e diletos amigos persiste há mais de 23 anos e teve fatos marcantes. Em 1996 recebi de André a chave de sua morada. Quando chegava à Gent para atividades musicais, tinha livre acesso aos pianos da casa, inclusive à geladeira. Ficava hospedado a cento e poucos metros, na casa dos sempre amigos Tony e Tania Herbert, e dirigia-me à sala de concertos, contígua ao prédio da residência dos Posmans, para estudar durante a alta madrugada. Realmente André é figura rigorosamente singular. Quanto a Yassine e Taha, raramente encontrei jovens tão bem educados e respeitadores de valores hoje raros em nossa sociedade. E não estão numa torre de marfim, pois praticam esporte, lutas marciais e logicamente, de maneira preferencial, música no melhor sentido, instrumental e coral. Quanto aos estudos escolares, são ótimos alunos.

Vem-me à lembrança divertido acontecimento que se deu em 2008 ou 2009. Após recital à noite na De Rode Pomp, André perguntou-me se podia, pela manhã seguinte, dar um recital especial dedicado aos colegas de classe de seus gêmeos. Aquiesci com prazer e, ao tocar Viva-Villa de Gilberto Mendes, peça minimalista com muitos ritmos brasileiros, espontaneamente a gurizada subiu ao palco e começou a dançar.

Em Maio último retornei à região flamenga – creio que pela 25º vez – para recital e gravação, que se deram em Mullem. Em Gent, tive a grata oportunidade de ouvir Taha, que preparava o Concerto nº 2 para piano em Fá Maior op. 102, de Dmitri Shostakovitch (1906-1975). Pediu-me para que o ouvisse e qual não foi meu prazer ao verificar a evolução desse talentoso jovem.  Preparava-se para apresentação em Junho.

Taha estudou inicialmente com Elisa Medinila, filha de meu dileto amigo e pianista Alfonso Medinila. A seguir, com Timur Sergeyenia, pianista de vastíssimo repertório nascido na Bielorússia. Ao ser aceito no Conservatório de Bruxelas, ficou sob a orientação de Boyan Vodenitcharov e Hans Ryckelinck.

Foi pois com prazer inusitado que ouvimos, Regina e eu, pelo vídeo que me foi enviado por Lucien Posman – irmão de André e compositor de mérito, de quem dele gravei, para o selo De Rode Pomp, Le conte de l’étude Modeste, que faz parte do CD New Belgian Etudes – a apresentação de Taha Posman a interpretar o Concerto nº 2 para piano e orquestra de Shostakovitch. Tendo conhecido seus pais bem antes de seu nascimento, ouvi-lo nesse desabrochar seguro é motivo de emoção.

O Concerto nº 2 (1957) tem um caráter poder-se-ia dizer didático, e o compositor pensou em seu filho Maxime, de 19 anos, que teria realizado a primeira audição. Shostakovitch expõe um piano basicamente integrado à orquestra e durante quase toda a extensão da obra o instrumento participa, salvo em momentos precisos, mormente no segundo andamento. O primeiro, Allegro, pleno de vivacidade, possibilita ao intérprete verdadeiro prazer na execução. Bem digital, técnica dos cinco dedos, ele evolui basicamente com poucas interrupções e sua cadência apenas ratifica essa técnica digital. O segundo andamento, Andante, extremamente lírico, proporciona ao pianista a exploração de belos matizes sonoros. Quanto ao terceiro andamento, Allegro, Shostakovitch faz alusão a Charles-Louis Hanon (1819-1900), pedagogo francês, cujo método é mundialmente frequentado por todos os que iniciam o estudo de piano no que concerne à técnica dos cinco dedos, empregando algumas de suas “fórmulas” copiadas ou modificadas. No todo, a notoriedade desse jovial Concerto para piano e orquestra vem, em parte, da engenhosidade da construção, mesmo que voltada à tradição; da destreza digital e de uma esfuziante jocosidade.

O belo Concerto nº 2 de Shostakovitch tem inúmeras notáveis gravações no Youtube, inclusive a realizada pelo próprio autor ao piano. Foi um excelente desafio para o jovem Taha, que à altura tinha 17 anos. Ao longo de toda a apresentação realizada no dia 16 de Junho deste 2019, junto à Sonores Symphoniorkest Gent conduzida por Joeri van Hove, mostrou-se rigorosamente à vontade, realizando com estilo definido os três andamentos do Concerto. Se nos Allegros demonstrou maturidade invulgar no tratamento proposto por Shostakovitch quanto às passagens virtuosísticas e suas flexibilizações dinâmicas, seria no segundo andamento, Andante, que Taha Posman revelaria a presença do músico sensível que sabe conduzir a frase musical com raro cuidado. Quanto ao terceiro andamento, Taha Posman transmitiu o frescor inerente na partitura. Apesar de ter mostrado ainda uma certa timidez, antes e depois da expressiva apresentação, muito descontraída, diga-se, o que é raro nesse primeiro contato com a obra junto à orquestra, Taha Posman já é uma realidade promissora. O público que lotou o Groene Zaal, a Sala Verde da Escola Católica de Saint Bavon, testemunhou, através de longos aplausos, a convincente apresentação.

Clique para ouvir o Concerto para piano e orquestra nº 2 em Fá Maior op. 102 de Dmitri Shostakovitch, tendo ao piano Taha Posman.
Áudio e vídeo preparados por Johan Kennivé, tendo a ajudá-lo Yassine Posman.

https://www.youtube.com/watch?v=Pk-IXInukwk

Um longo e esperançoso caminho se abre para Taha. Tenho a convicção de que deverá ter brilhante carreira e será mais um pianista a manter a excepcional tradição pianística da Bélgica.

Many times I’ve mentioned in this blog my love for Belgium and for the friends I’ve made there, among them André Posman and his family. André is the founder of the label De Rode Pomp, which released most of my CDs recorded in Mullem. Unfortunately De Rode Pomp does not exist anymore, but the years I’ve recorded for this label were the happiest of my musical career. I still remember the high-risky pregnancy of Jamila – André’s wife – that culminated in the birth of the twins Yassine and Taha, whom I’ve known since babies. Now young adults, they are a result of their good upbringing: polite, responsible, productive, both having revealed an early talent for music (Taha piano, Yassine clarinet and saxophone). It was with emotion and delight that I watched the video sent by composer Lucien Posman in which Taha performs, as a soloist, Shostakovich’s Piano Concert nº 2 in F major with the Sonores Symphonieorkest Gent conducted by Joeri van Hove. In this Concert, the piano is almost integrated with the orchestra and participates virtually throughout the entire piece. Taha plays with competence and ease, confirming he is a promising young talent with a brilliant career ahead of him, in the best tradition of great Belgian musicians.

Sem a menor possibilidade de melhora

Hoy ya nadie es inculto o, mejor dicho, todos somos cultos.
Ahora todos somos cultos de alguna manera,
aunque no hayamos leído nunca un libro,
ni visitado una exposición de pintura, escuchado un concierto,
ni adquirido algunas nociones básicas de los conocimientos humanísticos,
científicos y tecnológicos del mundo em que vivimos.
Mario Vargas Llosa
(“La Civilización del espectáculo” 2012)

O acúmulo das décadas tende a acurar a observação, realidade multidirecionada a depender do conteúdo de impactos diários que interferem na apreciação. Nas áreas em que o humano atua, transformações naturais, no decorrer dos decênios, servem de balizamento no todo. Poder-se-ia dizer que a observação, essa qualidade benfazeja, acentuada com o passar dos anos, preferencialmente conduz a um saudosismo. É natural, sempre foi assim. Quantas e quantas vezes a frase “No meu tempo…” é dita para atribuir vantagens ao passado que não mais volta? Sim, temos de nos adequar. Tenho como exemplo meu saudoso pai, que, ao completar 100 anos, comprou um computador, escrevendo na nova engenhoca seu sétimo livro, que deveria ser lançado uma semana após uma queda que sofreria e que o levaria ao óbito meses após. Sua observação era diariamente atualizada. Creio que exceção absoluta.

Não compro jornais e revistas há mais de 20 anos, acompanhando online o noticiário de nosso país, assim como o internacional. Cada cidadão sabe onde encontrar o que lhe interessa. Essa prática possibilita uma “atualização” constante, e o fato de ler artigos de múltiplas tendências corrobora a formação opinativa.

Lê-se sempre mais acentuadamente, nos principais provedores de internet, o pretenso debate ideológico. Majoritariamente enfadonho, pois dirigido e supertendencioso, a depender da orientação dirigente. Não se debate, opina-se de acordo com enraizadas ideologias. Rarissimamente há textos isentos. Triste realidade a acometer jornalistas que não conseguem ser imparciais. Sem falar em periodistas camaleões, louvadores de determinada tendência e que partem para outra posição bem oposta sem o menor rubor. Nesta instalados, insistem à exaustão, a denegrir determinado personagem da política ou do judiciário, antes louvado.

Ao escrever que a cultura erudita estava num declínio sem volta, Mario Vargas Lhosa, em “La Civilización del Espectáculo”, apenas conceitua triste realidade que está a se acentuar de maneira vertiginosa. Estou a me lembrar do competente acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007), editor-chefe do Suplemento Literário e do Suplemento Cultural – Suplemento Cultura de “O Estado de São Paulo”. Colaborei de 1980 a 1990 com artigos agendados bem previamente. Nilo Scalzo reunia sua equipe para pautar matérias que deveriam ser publicadas no ano seguinte, geralmente a contemplar efemérides significativas nas várias áreas, a abranger literatura, artes, música, ciência… Quando entendia fato relevante indispensável, ponderava eu na reunião que precisaria de três páginas, a fim de ter espaço necessário à temática. Nilo Scalzo aquiescia e foram vários meus artigos nessa dimensão em Suplemento que era semanal e robusto. Minhas colaborações foram publicadas no livro “Encontros sob Música”, (Belém, Cejup, 1990), tendo eu a honra de ter sido prefaciado pelo saudoso Nilo Scalzo.

A menção a esse período poderia parecer ao leitor nostálgica de minha parte. Como não entender como hecatombe o que se lê nos principais provedores de internet? No noticiário fundamental, a apontar importância de determinado acontecimento, geralmente político-judiciário, com espaço nem sempre à altura do fato em si, anexam besteirol ilimitado dos chamados “famosos”, personagens que pululam em profusão, geralmente incensados pela insensatez de seus atos insignificantes, mas que os provedores sabem ser destino certo de milhões de seguidores enfeitiçados pelos “iluminados” por possantes holofotes. Despreza-se a Cultura com C maiúsculo, sim, em detrimento de superficialidades idiotizadas que acabam por destruir moral, costumes, família… Em nome da liberdade da comunicação, o que se vê é uma ilimitada visão a tornar o caricato, verdade; palavras de baixíssimo calão, naturalidade aplaudida; a distração da realidade, o divertimento duvidoso; a profusão de “possibilidades sexuais”, a divulgação do equívoco essencial, pois antinatural; a vestimenta destroçada, moda. Estou a me lembrar de comentário de meu ilustre amigo, o musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso. Em Oeiras, Portugal, ao ver passar por nós uma mulher com jeans rasgado, moda presente e altamente aceita, comentou: “Trata-se de uma ofensa aos pobres”. Completou “um necessitado prefere receber uma calça bem velha, mas rasgada é um escárnio”. Sinal dos tempos. Creio que doravante ainda assistiremos degringoladas mais acentuadas. O tempo infalível.

This post addresses the poor quality of mainstream media reports, which favor sensational journalism — especially accounts of the private life of public figures — over substantive stuff. If gossip, scandal and banalities are what people want, that’s what the media gives them, it’s part of the business. My pessimism about today’s society has only gotten worse with time and I believe the decadence of Culture with a capital C has reached a point of no return.