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O Encontro de Precioso Livro Perdido no meio das Estantes

Esforcei-me em reunir nesse livro
segmentos de diversos gêneros de nossa antiga literatura narrativa, 
Encontraremos amostras da epopeia nacional,
assim  como fábulas e contos.
Enfim, extraídos dos livros de história escritos na língua vulgar.
Gaston Paris

Em diversos posts referi-me às leituras de minha adolescência-juventude e da grande alegria que sentia ao penetrar no conteúdo dos livros que estavam à altura de meu entendimento. A obra de Monteiro Lobato, os incontáveis livros biográficos e de história das civilizações, o “Thesouro da Juventude”, “O mundo Pitoresco”, romances e narrativas. Um livro era o que de melhor poderia ser-me ofertado.

Em Maio último, ao procurar uma publicação específica sobre um tema musical que me interessava, encontrei, escondido entre livros maiores, um pequeno volume, menor do que um de bolso (15×9.5cm). Sem capa de rosto, quase “desmontado”. Desci a escada de alumínio que me leva às prateleiras mais altas e comecei a folheá-lo. Trata-se de “Contes et Récits extraites des Poètes et Prosateurs du Moyen Âge – Mis en Français Moderne” e escrito por Gaston Paris (1839-1903), (Paris, Classiques Hachette, 1896, 232 pgs.). Foi-me oferecido nos anos 1970, juntamente com outros de poesia francesa medieval e clássica, pela saudosa amiga Lourdes Duarte Milliet, irmã de Paulo Duarte (1899-1984) e viúva de Sérgio Milliet (1898-1966), dois entre os mais ilustres intelectuais paulistas do século XX. Lourdes e eu fazíamos parte do Conselho Deliberativo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Tinha prazer de com ela conversar longamente, pois aguardava-me pontualmente à porta de seu prédio para irmos ao Museu, àquela altura presidido pelo Padre Antônio de Oliveira Godinho (1920-1992).

O livrinho é simplesmente delicioso. Gaston Paris, medievalista, filólogo romanista e membro da Académie Française, tem muitos dons. Competência, qualidade ímpar da escrita e da comunicação, pois a obra é destinada aos adolescentes: “Acredito que eles lerão com prazer e tirarão proveito de todos os textos que eu traduzi para eles, seja de nossos velhos poetas épicos, de nossos contistas e historiadores. A inspiração de nossa epopeia propriamente nacional, em sua ingenuidade simples, forte e por vezes sublime, irá direto ao coração dos jovens franceses”.

Gaston Paris reúne uma quantidade apreciável de narrativas poéticas, contos e fábulas francesas que vêm desde a Idade Média, vertendo-os, como afirma, para o francês moderno. Fá-lo com maestria, sem abandonar determinados termos que ficaram perdidos no caminhar da civilização. Quando isso ocorre, um asterisco determina que essa palavra estará no glossário ao final do livro. Paris descreve as palavras como damoiseau “um jovem de família nobre”, pierrière “máquina de guerra que lançava grandes pedras”, prud’homme “essa palavra designava, na Idade Média, um homem possuidor de todas as virtudes puramente laicas, sobretudo de sabedoria, de prudência e de integridade”, ost “exército acampado ou em movimento; por vezes, esquadra marítima de guerra”. Durante a leitura, constantemente temos de recorrer a esse útil glossário, que deveria enriquecer o vernáculo do jovem leitor francês. Sob outra égide, as notas de rodapé são precisas, claras e sem o ranço acadêmico, que as torna tantas vezes enfadonhas e desnecessárias, mormente nas últimas décadas.

O autor, ao reunir textos que se estendem do século XI ao XV, deles consegue obter a versão, diria competente, dando uma uniformidade que certamente facilitava a leitura dos jovens que viveram nas fronteiras dos séculos XIX e XX. Certamente os textos originais inseridos desse período mencionado impossibilitariam a leitura pelo leigo e, como filólogo respeitado, Gaston Paris transforma-os em agradáveis e profícuas leituras. Há igualmente a intenção de transmitir aos jovens um sentimento de amor à construção da história da “Douce France”, como era chamada a França em tantos textos medievais.

Desfilam personagens reais e lendários. No primeiro texto, “La Chanson de Roland”, Gaston Paris se atém a uma das versões primevas dessa história que encantou gerações através dos séculos, ou seja, a expedição de Carlos Magno (742-814), rei dos Francos, à Espanha, quando em desfiladeiro nos Pirineus sucumbe aos 15 de Agosto de 778 Roland, marquês da Bretagne, que permanecera para garantir o regresso do Rei à França. Traído, morre com seus homens numa emboscada ardilosa dos pagãos (na narrativa assim eram tratados os muçulmanos). Estudos bem mais recentes a partir de outras versões de “La Chanson de Roland” nomeiam bascos e não muçulmanos como os guerreiros adversários. Carlos Magno, distante com suas tropas, ao ouvir Roland soar o olifante (espécie de “berrante” feito de marfim de elefante) de maneira estrondosa retorna com seus homens, vê toda a guarda por terra, persegue e aniquila os sarracenos, de acordo com essa versão apresentada por Gaston Paris. Enfatizo particularmente esse texto, pois as notas de rodapé são interessantíssimas (neste e em outros textos) e poderiam tão bem orientar mestrandos e doutorandos de nossos dias. As explicações são concisas. Não há a necessidade de acréscimos inúteis. Tudo na justa medida. O autor, no curso do texto, explica o significado da “Chanson de Roland” ou de “Roncevaux”, situa historicamente os personagens, comenta a “Chanson de Geste” (narrativa em versos relatando histórias de reis, nobres e cavaleiros na Idade Média: geste quer dizer história), a permanente luta a colocar frente a frente cristãos e muçulmanos, o processo escritural que faz com que determinadas passagens sejam repetidas três vezes de maneira quase similar. Assim procede Gaston Paris, a fim de que o adolescente compreenda o processo literário. Palavras referentes ao cerimonial, o simbolismo da luva ofertada, o sepultamento de ilustres mortos combatentes em sacos de couro costurados. O autor menciona em 1896 que o mais antigo poema sobre a morte de Roland foi escrito nos arredores do Mont-Saint-Michel.

Entre as narrativas, poesias e prosas, tantas vezes a sofrer a influência do imaginário e da tradição oral da Idade Média em França, Gaston Paris perpassa episódios sobre Guillaume d’Orange, a morte vaticinada do duque de Bégon e traços de Aïoul, de Jean de Paris, a lenda concernente a Blondel e outros mais textos épicos que foram objeto de estudo por parte do autor.

No segmento de “Contes et Fables”, Gaston Paris se atém àqueles que perduraram durante gerações. O historiador igualmente mantém o processo utilizado nos compartimentos históricos. Não deixa pairar dúvidas e as notas de rodapé lá estão, pertinentes e concisas, para esses contos escritos mormente por poetas no século XIII e colocados em prosa pelo historiador. Desfilam os divertidos “Les trois aveugles de Compiègne”, conto de Courtebarde; “La Couverture” de Bernier; “Merlin Merlot”, conto de origem oriental readaptado poeticamente no século XIII; “Le partage de Renard”; “La pêche d’Isengrin” e outros mais. Particularmente, a nota de rodapé desse conto tem interesse pela argúcia: “Extraído do ‘Roman de Renard’. O romance, ou seja, o ‘livro francês’ da Raposa, é um conjunto de contos de animais nos quais alguns deles têm nomes próprios, como os humanos. Os dois principais personagens são o lobo, chamado Isengrin e o goupil, também conhecido como raposa. Esses contos foram tão populares que raposa substituiu goupil como nome comum. Em nossa tradução, nós empregamos goupil ao invés do nome comum raposa. A maioria dos contos nos apresentam a raposa aprontando sempre dissabores para seu compadre Insengrin”. Gaston Paris observa que La Fontaine (1621-1695) inspirar-se-ia em alguns desses contos e fábulas medievais.

Importa considerar que essa literatura, preparada para adolescentes a partir dos 12 anos de idade, era pormenorizada e utilizada certamente em sala de aula. Gaston Paris observa: “Malgrado o mérito de muitos historiadores do século XV, eles não me ofereceram narrativas que me parecessem claras e interessantes para agradar aos jovens”.

A leitura do pequeno livro, folheado com o maior cuidados, pois as folhas amarelecidas mostram-se quebradiças, proporcionou-me momentos de deleite, mormente nesses outros tantos dias em que nós, brasileiros, encontramo-nos seriamente preocupados.

I found among my books a small volume published in 1896 by the French writer and scholar Gaston Paris. This post is about this book, a delightful collection of legends, fables and tales of the Middle Ages, condensed and translated into modern French.

              

Quando o Povo Saiu às Ruas

Nenhum político deve esperar que lhe agradeçam
ou sequer lhe reconheçam o que faz; no fim de contas,
era ele quem devia agradecer
pela ocasião que lhe ofereceram os outros homens de pôr em jogo
as suas qualidades e de eliminar, se puder, os seus defeitos.
Agostinho da Silva

Já não estamos anestesiados. Se o leitor consultar meu post de 18 de Maio último (“Anestesiados – Há solução para nossa índole?”), observará que os motivos que propiciaram as manifestações já lá estão embutidos. Quando mencionava essa “letargia”, mal podia prever que logo após haveria o despertar de um povo que acorreu às ruas das principais cidades brasileiras. Manifestações no Exterior fizeram-se sentir igualmente.

A ilustração de meu saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013) sintetizava naquele post a inquietação. Não estaria a presente charge, no mesmo espírito, mostrando parte da realidade atual? Conversávamos, Luca e eu, sobre políticos e descasos. Revela o desenho ingredientes prenunciadores, e o megafone proclamaria desmandos que nos avassalam. O povo aguentou, aguentou, aguentou… mas há o infinitesimal instante da gota d’água.

Nessas últimas semanas conturbadas, plenas de manifestações de rua pacíficas, mas infiltradas por minoria absoluta de desequilibrados, baderneiros, bandidos de carteirinha, drogados, tantos deles menores,  o leitor deve estar a acompanhar todo o desenrolar pela mídia. Realidades não são mostradas por nenhum meio de comunicação, mercê das polpudas publicidades patrocinadas pelo Governo, o que impede a exibição de muitas faixas a condenar sobretudo a ação do partido majoritário. Elas estavam entre as muitas, algumas alusivas ao último ex-presidente. Estas não foram exibidas. Estranho. Só estamos a conhecer parcela da verdade, pois, tal tsunamis, as passeatas invadiram as cidades brasileiras, mesmo que sem líderes confessos. Preferencialmente, a mídia focou a exceção, a quebradeira realizada pela ínfima minoria. Um enorme desserviço. E foram imagens da exceção que inundaram a mídia internacional. A beleza das aglomerações pacíficas, a reunir quase todas as camadas da sociedade, pouco foi mostrada. Saques, quebradeiras, incêndios, barricadas eram escancarados nos noticiários televisivos. Infelizmente, e a mídia bem sabe tirar proveito, são os fatos deprimentes que conseguem altos índices de audiência. Uma de minhas netas esteve em uma das maiores manifestações da Av. Paulista e contou-me sentir-se segura, pois o povo na mais conhecida via pública paulistana estava a revindicar direitos dos cidadãos que foram abandonados pelo poder público. Pacificamente a multidão se deslocava, segundo ela.

Na passeata da quinta-feira (20 de Junho), deu-se a glorificação do apartidarismo. O Presidente Nacional do PT, ao solicitar aos simpatizantes o comparecimento na passeata do dia  citado empunhando bandeiras do partido, sofreu duro revés, acachapante diria, pois a manifestação não admitia esse tipo de oportunismo e estandartes foram rasgados ou retirados. Fiquei atento a uma frase pronunciada por um dos presentes a um jornalista da AFP para o “Le Point” da França, sob o título “Manifestations historiques au Brésil” (21/06), em que afirma que continuaria a votar em Dilma para que as reformas no país possam ser aceleradas. Preocupante. Há um partido desde 2002 a comandar o país.  Esse mesmo jornalista francês ouviu frases enfáticas dirigidas aos simpatizantes do PT no momento em que o povo não permitiu o agitar das bandeiras: “Opportunistes ! Partez à Cuba ! Partez au Venezuela !”  A situação é grave e pode prenunciar caminhos para radicalismos futuros sem precedentes. Tenta-se blindar de todas as maneiras a Nomenklatura, como se estivesse o governo de Brasília na oposição! Oposição essa, diga-se, pífia, pois polifacetada e com discursos críticos não cirúrgicos, mas evasivos. Quem protesta é a sociedade apartidária consciente, a contrariar palavras infelizes do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, ao dizer que sem partidos tem-se a ditadura, ou outras, não menos inquietantes, a culpar a mídia pelo o que está a ocorrer.  É a sociedade que está a clamar por condições, ao menos potáveis, nas áreas da Saúde, Educação e Segurança e contra a paquidérmica burocracia, que tanto suga do contribuinte, assim como a vociferar contra a endêmica corrupção. Esporadicamente, sem prazer algum,  comento rumos tortuosos de nossa política. Nenhuma novidade escrevi, apenas deduzi e ouvi pessoas de determinadas camadas sociais, mormente a popular e a média, pois preferencialmente, nos deslocamentos pela cidade, utilizo-me de ônibus públicos em horários com menor afluxo de passageiros. Basicamente não tenho ligações com as denominadas camadas abastadas ou elites. Tampouco tenho tendência para qualquer partido, não me relacionando, felizmente, com nenhum político. Contudo, reflexões surgem a partir de determinados inchaços da máquina pública que desafiam a lei física da ocupação de espaço: Qual não foi o aumento de comissionados na esfera pública nestes últimos anos? Se conclamados para se apresentarem para o desempenho de suas funções, esses e mais os apadrinhados não poderiam, no mesmo instante, friso, ocupar salas que lhe são destinadas. O número extravasa e muito e é o contribuinte que arca com todas as despesas, pois o governo não gera rendas, só arrecada e distribui parcamente. Como gostaria de ouvir a Presidente dizer que milhares não mais necessitam receber os 70 reais, essa esmola destinada aos desvalidos. Isso sim seria progresso. Contudo, os votos saem da massa desafortunada que recebe esses parcos reais.  

As causas de muitas revoluções são por vezes periféricas. Que nos ensine a Revolução Francesa de 1789, que teve manifestantes invadindo uma Bastilha com pouquíssimos prisioneiros. O jornal francês “Le Monde” de 26 de Junho aponta nossas manifestações tendo como estopim a mínima parcela de um euro e os vinte centavos foram, na realidade, pretexto para um basta generalizado. Apesar de não gostar do tema, como expressei em tantos posts, tudo o que está a ocorrer já estava anunciado através dos desmandos: corrupção generalizada, gastos exacerbados dos que detêm o poder, pródigos cartões corporativos, viagens da cúpula ao Exterior com gastos nababescos, segurança basicamente nula, minoridade assassina, droga a infestar a sociedade, conluio governo-empreiteiras-construtoras, obras faraônicas abandonadas, estradas semidestruídas, ausência quase que total de vias férreas, portos ultrapassados que enriquecem com o acúmulo de containers e com a imensa lentidão do embarque e desembarque dos navios, Mensalão que caminha para as calendas com figuras proeminentes do PT, Mensalinho que nem sequer teve início, a envolver figuras do PSDB, personagens republicanos que se perpetuam apesar de fichas imundas e tantas mais mazelas, guetos impenetráveis nas grandes cidades controlados pelos chefes do tráfico, movimentos como o MST, que obtém polpudas verbas e destrói o campo produtor com invasões insanas e violentas, os três Poderes caindo no descrédito. Somatória de governos em que a corrupção esteve presente, mormente nestes últimos dez anos, com escândalos que estiveram sempre estourando, e a Justiça extremamente morosa a beneficiar com essa situação decisões que certamente levariam colarinhos brancos para trás das grades. Por fim, toda essa discussão em torno da PEC 37 que, devido à pressão da sociedade, certamente fez o Legislativo recuar. Se aprovada, tiraria o direito e o dever do Ministério Público de apurar delitos praticados por figuras poderosas.

Sob outra égide, desde o início sabia-se que abrigar três eventos, como as futebolísticas Copas das Confederações e do Mundo e mais as Olimpíadas, iria acarretar desvios incomensuráveis de verbas que deveriam ser destinadas às tantas áreas carentes do Brasil. O grito de satisfação dos políticos brasileiros no Exterior, ao serem anunciados os eventos em nosso país, traduzia o prenúncio de espúria festança com a associação governo, empreiteiras e construtoras. O que se apreendeu pela mídia é a realidade, os gastos foram fabulosamente superiores ao previsto. Enorme verba pública está sendo destinada para as realizações esportivas que, diga-se, são passageiras e voláteis, mas que, mercê da farta gastança, deixará espalhados pelo país muitos Mamutes Albinos. Mais um ingrediente para essa gota transbordar.

Quem sabe essa manifestação, rigorosamente inédita no Brasil, sensibilize governantes. Precisamos de líderes verdadeiros, que não se comprometam com conluios estranhos para a perpetuação no poder. A aproximação, para fins inconfessáveis, de partidos  antagônicos, de políticos – antes ferrenhos inimigos e ideologicamente distantes – com pactos de “eterna” amizade através de sorrisos e afagos, a prodigalização de verbas para emendas parlamentares, a acomodação de figuras sem quaisquer experiências anteriores em Ministérios e Secretarias fundamentais, fazem parte dessa substancial gota d’água que ora escorre. Como confiar num governo que entrega um Ministério importante a um apaniguado, sem a menor experiência na área? Quantos são os Ministérios em Brasília ou Secretarias de Estado ou de Município pelo país que têm profissionais verdadeiros e apartidários? Isso tudo é amar o país, querer servi-lo para o bem de todos, ou é apenas aguardar apoio que reconduza governante e partido novamente ao Poder? Como esta palavra tem feitiço!    

Governantes têm de ouvir o povo que esteve presente maciçamente nas ruas e praças. Sem essa atitude, poderemos estar a caminho de recrudescimento das ações de multidões insatisfeitas ou entrando numa sinistra senda totalitária. O certo é que não mais estamos anestesiados. Contudo, evitemos a conturbação. Mensagens, o povo soube transmiti-las. A persistência das manifestações poderá não ser benéfica ao país. Há necessidade da decantação, única possibilidade para que ânimos voltem a serenar.

A presidente se pronunciou no dia de São João a favor do Plebiscito e de uma Constituinte. Que a sociedade esteja atenta às intenções! A Constituinte já estaria descartadas, mas… Que o Santo nos guarde!

This post discusses the recent protests that swept the country. The tipping point of the demonstrations was the bus fare increase, but the focus soon changed to other issues: corruption, high taxes in exchange for poor public services, vast sums spent on hosting the Confederatin Cup and the 2014 World Cup. The outcome of the riots is uncertain: maybe manifestations won’t achieve anything, political parties may capitalize on social unrest and return to totalitarianism is always lurking around. Let’s hope for the best.

Manuscrito versus Obra Impressa

Nunca e em passagem alguma o texto musical notado é idêntico à obra;
antes é sempre necessário captar, na fidelidade ao texto,
aquilo que ele oculta dentro de si.
Sem tal dialética, a fidelidade transforma-se em traição.
Theodor Adorno

Ao escrever artigo em tributo à grande gregorianista Júlia d’Almendra abordei a qualidade da escrita da ilustre homenageada (vide:  “A transparência através das cartas”, Site, item Artigos), debruçando-me não apenas no conteúdo das missivas, mas na transformação da caligrafia durante nossa profícua troca de missivas entre 1981 a 1990. A cada duas ou três semanas cartas eram recebidas de ambas as partes e nossa correspondência epistolar encontra-se preservada no Centro Ward Júlia de Almendra, em Lisboa.

Importante considerar que essa tradição basicamente estiolou-se com o avanço progressivo dos PCs, inicialmente, e com o estonteante avanço tecnológico, a tornar cada vez mais impessoal  e volátil a troca de mensagens. Quantos são aqueles que têm a paciência ou a disciplina de preservar a mensagem eletrônica, se considerada for a massa humana extraordinária que está a cada segundo trocando informações, e-mails e outras mensagens? Seria algo para lamentação de saudosistas? Creio ser a realidade inexorável e a ela temos de nos adaptar. O certo é que a tecnologia trouxe a comunicação em velocidade espantosa e benefícios muitos, mas deixou pelo caminho processos importantes para o desvelamento da obra de arte musical e literária.

Há no manuscrito a presença integral da alma do autor. Relatei, no artigo sobre Júlia d’Almendra, que apreendia seu estado de espírito através do cabeçalho do envelope. Nessa circunstância previa o conteúdo, se descontraído, esperançoso ou envolto em sombrias névoas. Assim também comentei o fac-simile dos Quadros de uma Exposição, de Moussorgsky, que serviu para o estudo fundamental da obra. Fi-lo também com a integral para piano de Claude Debussy e com obras de Henrique Oswald. Comentei, em posts bem anteriores, todo o processo de investigação concernente ao dramático Canto de Amor e de Morte, do grande compositor Fernando Lopes Graça, em seu original para piano. Toda a angústia de um homem atormentado lá está, e as rasuras que inutilizam compassos ou as notas corrigidas sobre as já traçadas evidenciam a ânsia do músico em vê-lo terminado.

Mário Vieira de Carvalho, ilustre professor, pensador e sociólogo musical português, observa em texto exemplar (“A Partitura como Espírito Sedimentado: em Torno da Teoria da Interpretação Musical de Adorno” – 2003) ao comentar posição de Theodor Adorno sobre a prevalência do manuscrito: “Adorno interessa-se sobretudo pelo que a caligrafia musical pode revelar quanto à dimensão gestual-figurativa da música, quanto ao seu elemento mímico, que, em larga medida, se perde com a transposição para os sinais dir-se-ia reificados e normalizados da edição impressa. Qualquer músico fica profundamente impressionado quando se lhe depara, pela primeira vez, por exemplo, um dos autógrafos de Beethoven”.

O manuscrito faz parte de um passado. Fundamental para o conhecimento intrínseco de uma obra, seja ela musical ou literária. Há subjetividades que só ele contém. Percebe-se o processo canhestro de um menos favorecido pelas musas. Tudo está expresso e as rasuras, tão comuns em tantos autores da maior expressão, apenas ratificam a certeza da hesitação, da reinvenção do processo criativo, dos riscos que inutilizam frase literária ou compassos musicais, mas que são o húmus que substancia o que vem após. O manuscrito é, e os que permanecem tornam-se a luz que leva ao conhecimento do ato criativo de um autor.

A tecnologia levou-nos a só ter diante dos olhos a obra impressa. Basicamente  todos recorrem aos novos processos, que são hoje ferramentas para a criação. O que constrange em certo ponto é o fato de nos depararmos com impressões pasteurizadas, saídas de programas similares do compositor ou escritor de grande mérito ou do medíocre exemplar. Não há mais retorno. É fato. O leitor ou o intérprete não conhecerá a hesitação que levou à certeza da definição. Até mesmo a gravação sofreria os impactos do perfeccionismo. Os primórdios dos registros fonográficos foram marcados pela não edição e determinadas falhas de execução aparecem, mas que evidenciavam o todo do intérprete. Certa vez um músico romeno me disse sobre a gravação editada, o que a coloca em outro patamar frente à composição ou a obra literária: “editada ou não, a alma do músico lá está, se por acaso ele a tiver”.

Estou a me lembrar que, na elaboração de três coletâneas que organizei na Universidade de São Paulo nos anos 1980, homenageando compositores referenciais brasileiros – Henrique Oswald (1985), Villa-Lobos (por ocasião de seu centenário em 1987) e Camargo Guarnieri (1989) – recebi 24 preciosas colaborações. Nos cadernos dedicados a Henrique Oswald e Villa-Lobos cinco compositores internacionais relevantes, como Jorge Peixinho (1940-1995), Ramón Barce (1928-2008), Aurelio de la Vega (1925- ), Wilhelm Zobl (1950-1991) e Stephen Hartke (1952- ), enviaram fotocópias de manuscritos, extraordinários contributos. Outros tempos. Contudo, chamavam-me a atenção, quando da preparação dos dois primeiros cadernos que apresentei em várias cidades do Brasil e do Exterior (meu ex-aluno Helder Araújo se encarregou de apresentar as seis homenagens a Camargo Guarnieri), a diferença da escrita, a personalidade (conceito subjetivo, no caso) dos autores, e especificamente na obra de Jorge Peixinho, esta a evidenciar uma força telúrico-impulsiva que propiciava ao intérprete uma atenção redobrada, a envolver outras percepções.

Diferentemente, nos últimos quinze anos as dezenas de Estudos para piano (tantos extraordinários), que estão a compor uma panorâmica da criação específica contemporânea para piano iniciada em 1985 (circa  noventa, quase todos por mim apresentados no país e no Exterior), já vêm, a maioria, em programas computadorizados. Salientaria os 15 Estudos do belga Raoul de Smet (1936- ), cuidadosamente compostos em mais de um lustro a partir de nossos entendimentos a respeito do técnico-pianístico, do francês François Servenière (1961- ), que criou a partir das magníficas telas do saudoso Luca Vitali, oito Études Cosmiques e do português Eurico Carrapatoso (1962- ), que compôs a singular Missa sem Palavras (cinco Estudos Litúrgicos).   Se Gilberto Mendes (1922- ) honrou-me com sete Estudos compostos ao longo de 20 anos e escritos com pena nítida e precisa, outros sete foram-me dedicados pelo também belga flamengo, o pós-modernista Boudewijn Buckinx (1945- ), identificado prontamente por seus manuscritos peculiares. Almeida Prado (1943-2010) escreveria quatro  e Gheorghi Arnaoudov (1957- ) da Bulgária um precioso Estudo Et Iterum Venturus. Mendes, Buckinx, Almeida Prado e Arnaoudov têm caligrafias bem diferenciadas, que fazem desvelar interioridades! Diria que a de Almeida Prado apreende na escrita personalíssima uma outra percepção da arte caligráfica. Aliás, legou-nos expressivas aquarelas. Torna-se evidente que a obra impressa facilita e muito a função da edificação da obra pelo intérprete. Na realidade deveria ser sempre o destino final de uma composição. Não obstante o fato, tendo, desde os anos 1970, convivido particularmente com manuscritos excelsos do passado, apraz-me o “trabalho” adicional que me permite ler além do que o compositor fixou no papel pautado.

  
    

O intérprete hodierno praticamente só se depara com a obra impressa. Caberá a ele saber distinguir a qualidade composicional, a sua ausência ou o simples embuste, que infelizmente existe nesse universo onde pulula legião de “compositores”. Não é difícil para quem labuta na área fazer a distinção. Quantos não se escondem no exaustivo “tratado”, em que buscam justificar uma criação específica? Quando o talento transborda, até que há mérito inconteste, mas…

Da ideia que leva à criação, do “manuscrito mental” à edição via programas específicos. Os incontáveis processos que surgem a todo instante não devem jamais obstaculizar a intenção qualitativa. Esta deve ser o norte, a bússola, a busca imaginária de um Preste João a “ajudar” o “compositor”. O simulacro está à espreita. Jamais ele esteve tão presente. Imiscui-se à evolução tecnológica extraordinária. Só o conhecimento poderá evitá-lo.

This post discusses the importance of the autograph manuscript to unveil a composer’s “soul” (his mood and intentions when composing) versus the use of modern technology with the work printed through a computer program, something that in my view prevents the interpreter from capturing the composer’s inner feelings behind the printed score.