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“In Memoriam”

O ma vieille compagne, ma musique,
tu es meilleur que moi…
Je ne t’ai jamais trahie, tu ne m’as jamais trahi,
nous sommes sûrs l’un de l’autre.
Nous partirons ensemble.
Reste avec moi, jusqu’à la fin !
Romain Rolland  (Jean Christophe)

Ao longo dos posts publicados desde Março de 2007 muitos foram escritos in memoriam de familiares e amigos que partiram. À medida que a ampulheta faz deslizar lentamente os minúsculos grãos da areia sentimo-nos mais desprotegidos, pois aqueles que estimamos se vão e as salvaguardas concentram-se doravante nas lembranças dos entes queridos falecidos e nos novos relacionamentos sinceros que preenchem nossa existência.

A derradeira viagem desta vez, após longos anos acamada, foi a de minha querida sogra, a ilustre professora de piano Olga Rizzardo Normanha, nascida na fazenda dos pais, bem perto de Santa Rita do Passa Quatro. O falecimento deu-se no dia 16 de Fevereiro. Olga sempre primou pela determinação. Tencionava ser pianista e talento não lhe faltava. Formou-se pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e teve como professores Savino De Benedictis, Guilherme Mignone, Mário de Andrade e outros mestres, que davam prestígio àquela Escola referencial.  Apresentou-se com sucesso em várias audições e o futuro como intérprete apresentava-se risonho. Seus pais, italianos de Treviso, na Toscana, a essa altura já moravam em Campinas. Em dia que jamais seria esquecido pela jovem e promissora pianista, um cão policial da família “surtou” e danificou os tendões de um dos punhos. Encerrava-se, hélas, uma carreira que certamente seria triunfante, mas Olga não perderia a chama sagrada. Nascia a professora, que através das décadas estaria a aperfeiçoar-se para realmente formar pianistas e não apenas pseudo-digitadores. Inteligência viva, ouvidos atentos, amizades que perduraram, como as que manteve com Antonieta Rudge, Guiomar Novaes, João de Souza Lima, José Kliass, Homero de Magalhães, Estelinha Epstein, Camargo Guarnieri, Dinorah de Carvalho, Armando Belardi, Alonso Aníbal da Fonseca,  Eleazar de Carvalho, Edoardo Di Guarnieri, Leon Kaniefsky, Almeida Prado e tantos outros músicos, fizeram-na referência nacional no ensino de piano. Sua irmã Gina casar-se-ia com o competente professor de piano Guilherme Mignone, irmão do grande compositor Francisco Mignone, e uma profunda amizade estaria selada para sempre entre as famílias. Os alunos de Olga Normanha seguiram seus ensinamentos e passaram a ganhar quantidade expressiva de prêmios em concursos municipais, estaduais e nacionais. Torna-se de grande relevância esse fato, pois Olga Normanha vivia em Campinas e não em São Paulo e Rio de Janeiro, os dois “únicos” polos aos quais acorriam levas de estudantes de piano.

O casamento com o engenheiro agrônomo Edgard Sant’Anna Normanha (1914 -2002) deu-lhe a tranquilidade para desafios novos. Formado na tradicional Escola de Agronomia Luiz de Queirós (USP – campus Piracicaba), Edgard foi cientista de renome internacional, trabalhando, até a aposentadoria, no prestigioso Instituto Agronômico de Campinas. Grande especialista em raízes e tubérculos, a reputação do pesquisador, mormente no que concerne aos trabalhos relacionados à mandioca e ao barbasco, logo despertaria a atenção da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e, a convite da Organização, percorreu 19 países, preferencialmente da África, Sul da Ásia e América Central, a fim de ensinar técnicas e salvar plantações contaminadas. Receberia em 1977 o prêmio “Frederico Menezes Veiga”, da EMPRAPA,  pela excelência de suas pesquisas. Um grande homem, que é sempre lembrado por pesquisadores da área, pelas filhas e netos. Poliglota e de extensa cultura, não deixava perguntas sem respostas atenciosas. Sogro impecável.

Olga Normanha, empreendedora e idealista, funda o Conservatório Musical Campinas, que durante décadas semeou o ensino de música e de ballet. O grupo de dança “Vitória Régia”, sob a direção do saudoso bailarino Mozart Xavier, apresentar-se-ia com enorme aceitação em várias cidades do Estado. Conseguia manter com determinação e forte dose de altruísmo as atividades de diretora e professora. Quantos não foram os alunos que, na difícil fase de preparação para recitais e concursos, não receberam incontáveis horas de aulas sem ônus algum para seus pais? Essas eram algumas das qualidades da professora Olga Normanha.

Teve duas filhas que se dedicaram inteiramente à música: Regina e Maria Elizabeth. Apresentações que ficaram na memória de tantos, como as de Regina Coeli, aos doze anos de idade, no “Bach Festival” de Berkley, na Califórnia. Aos 15 anos, em 1956, obtém recepção calorosa no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O registro, guardado com afeto pelos seus pais, demonstra o poder da transmissão, no qual o domínio das estruturas, a partir de uma formação técnica sans reproche, está configurado.

Clique para ouvir o Rondo – Allegro do Concerto no. 3 de L. V. Beethoven, gravação ao vivo do Xº Concerto para Juventude, 1956, com Regina Coeli Normanha ao piano e Orquestra Sinfônica Brasileira sob a regência de Eleazar de Carvalho:

Regina continua a seguir as pegadas da mãe como professora e a desenvolver com denodo sua atividade como pianista. Neste ano, sob a aura musical, comemoraremos nossas Bodas de Ouro. Maria Elizabeth apresentar-se-ia em recitais e concertos e, após seu casamento com o engenheiro Luis Atristain Martinez, fixaria residência na cidade do México, lá desenvolvendo intensa atividade de ensino de piano.

Das alunas de Olga Normanha, Sônia Rubinsky é pianista que se tem destacado. Sempre amorosa, jamais deixou de mencionar a mestra que durante tantos anos a orientou, procedimento raro nessa geração intermediária. Hoje, com carreira internacional solidificada e gravações de extremo rigor, entre as quais a integral de Villa-Lobos para piano, Sônia declarou comovida para o site da Prefeitura Municipal de Campinas, após o falecimento da professora: “Foi uma segunda mãe para mim. Meu primeiro recital foi aos 5 anos e meio e ela já era minha professora. Tinha conhecimento profundo do corpo humano, de música e suas técnicas e do ser humano. Íntegra e séria, além de transmitir conhecimento, ensinava valores para a vida. Faz parte da história da música do Brasil”. Olga Normanha teve alunas que obtiveram êxitos em outras carreiras, mas que durante anos com ela estudaram. Citaria as atrizes Regina Duarte e Maitê Proença e a renomada publicitária e comunicadora Christina Carvalho Pinto. Comovente o relacionamento de Christina que, da infância ao falecimento da mestra, tratou-a como mãe, visitando-a com constância amorosa.

Olga Normanha. Como genro e pianista, fica neste espaço a minha admiração imensa pela professora competente e generosa, pela mãe extraordinária que foi para minha mulher e minha cunhada, pela avó carinhosa e atenta com o desabrochar de seus netos, pela sogra querida, estimuladora e amiga. No velório viu-se o resultado. Ex-alunos, amigos e parentes vindos de tantos lugares, compreendendo a transcendência do momento, mas reconhecendo que Olga viveu inteiramente voltada à sua paixão pela música e pelos seus. Nossas filhas, genro e netas lá estavam. Emanuela, em seus nove anos de idade, acompanhou o féretro até o término e com o avô quis fechar a porta do túmulo. Nesse momento, Valentina, sua irmã,  juntou-se a nós. No retorno, a pé pelas alamedas do Cemitério da Saudade, em tarde aprazível, Emanuela me perguntou, curiosa e tranquila: “Por que bateram palmas após as palavras da tia Christina?”. Respondi-lhe que sua “bivó″ não apenas era carinhosa, mas uma grande professora e que ela, Emanuela, lembrar-se-ia para sempre daquele momento, como seu vovô que, aos 12 anos, rememora com afeto o enterro do pai de sua bisavó. Vida e Morte. Disse ainda a Lela: “viva cada momento com alegria e responsabilidade, mas entenda que você presenciou acima de tudo, nesta tarde, momentos de amor, de amizade e de fé, a passagem para uma outra dimensão, que acontece apenas uma vez, pois a ‘bivó′ já está no céu e mereceu lá ficar. Você viu que todos estavam conformados nesse ato de saudade e carinho?” Emanuela deu-me a mãozinha e caminhamos silenciosos na serenidade.

This post is a tribute to my mother-in-law, Olga Normanha, who passed away two weeks ago after a long illness at the age of 97. An outstanding piano teacher, she formed a legion of students, some of them internationally recognized. Devoted mother , grandmother and music educator, she was a remarkable woman that will always remain in the hearts of those who had the fortune of knowing her.

 

 

 

Comentários que Enriquecem o Conhecimento

Documentos concernentes aos construtores das catedrais não faltam;
contudo, há  problemas e lendas
que tornam ainda obscuras determinadas verdades históricas:
lenda das corporações, dos segredos, do trabalho voluntário, dos monjes construtores…
Jean Gimpel (Les Batisseurs de Cathédrales)

O post sobre Notre-Dame de Paris deixou inúmeros leitores admirados com os eventos que  cercam a possivelmente mais conhecida Catedral de todo mundo e um dos pontos turísticos referenciais do planeta. Buscava o texto expressar fundamentalmente, frise-se, aqueles momentos de intensa manifestação de fé cristã para tantos e a curiosidade de outros mais frente ao inusitado acontecimento da chegada dos Sinos na Catedral de Notre-Dame. Não estava em causa no post do último dia nove, saliento novamente, pormenorizar-me em essencialidades que justificariam aprofundamentos, não apenas pelo caráter do evento como também pela exiguidade do espaço a que me proponho semanalmente para o convívio com os leitores.  Aqueles que manifestaram a alegria pelo que se estava a viver nos dias mencionados fizeram-no com acuidade. Selecionei três mensagens, uma do dileto amigo Antoine Robert, mencionado no post em questão,  e outros dois  de músicos competentes que, sob olhares diferenciados, deixaram testemunhos que enriquecem o presente blog. Nesses  dois últimos, ratifico, abrem-se as portas para estudos pormenorizados daqueles que assim o desejarem. O professor e musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso e o compositor e pensador François Servenière têm, pois, a pena que substancia suas posições.

Antoine Robert comenta de Paris:

“Ontem à noite a televisão divulgou longa reportagem sobre os 850 anos da construção de Notre-Dame. Uma parte da emissão foi consagrada aos novos sinos. A seguir, apresentaram uma sequência de observações sobre as fundições de Villedieu les Poêles. E quem você pensa que foi interrogado para explicar todo o trabalho realizado? Stéphane Mouton, um dos técnicos especializados com quem conversamos longamente naquele café perto da catedral. Fiquei  emocionado ao revê-lo naquela entrevista, como se ele fosse um velho amigo. Sempre preciso  em seus comentários, via-se que estava visivelmente feliz ao transmitir aos telespectadores os seus conhecimentos. Após, assistimos à partida dos sinos para Paris, sua passagem pelos Champs-Elysées  e chegada em frente a Notre-Dame. As últimas imagens  mostravam-nos exatamente como os vimos”. (tradução: JEM).

Pedrosa Cardoso escreve de Portugal:

“Quando visito a histórica Catedral, muito para além da sumptuosidade da linhas, das ogivas e das cores, o que sempre me entusiasma naquele ambiente é o espectáculo imaginado da música que historicamente nasceu com a própria construção daquele espaço, com a superação da simples monodia gregoriana pela contrução da admirável polifonia da chamada ‘Escola de Nôtre-Dame’, os quadrupla, tão absolutamente originais para a época. De facto, os graduais Viderunt omnes ou Sederunt príncipes (www.youtube.com/watch?v=FvJ6xl3l1ek ) de Pérotin, consagrando o cantus firmus tradicional (com a longuíssima pedal, qual bordão lembrado no sino maior por si evocado), levantaram uma nova sonoridade vertical a 4 vozes, nas quais já despontam sinais do contraponto, que tão longe chegaria na música ocidental, só comparável à das majestosas ogivas e cores dos seus vitrais. Pérotin (1160-1230) , mais que o seu mestre Léonin (1135-1201), teve a genial inspiração de inaugurar na música o que se estava a inaugurar na arquitectura, construindo obras tão revolucionárias para a História da Música como seriam quatro séculos depois (casando com altíssima inteligência a prima com a seconda prattica na salvaguarda de tradição e modernidade) os salmos igualmente magníficos de l vespro della Beata Vergine de Monteverdi (1567-1643). Da grande Catedral o post evoca os seus sinos, afinal também instrumentos de música, historicamente, penso eu, mais humildes do que o espectáculo gerado pela música litúrgica de Notre-Dame de finais do século XII e princípios do XIII”.

De Blangy-le Chatêau, François Servenière historia:

“Li seu artigo desta manhã e o achei-o de muito interesse, pois é um dos temas que me apaixona há muito tempo, as catedrais francesas. Foi uma vasta literatura percorrida sobre elas, a magia da súbita construção (em menos de 150 anos em toda a Europa), ligada ao retorno dos templários e à posse secreta (?) da Arca da Aliança e do ‘bastão’ de Aron’, descobertos no túmulo do Santo Sepulcro… Ainda hoje, as ordens maçônicas descendentes dos templários aqui mantêm uma espécie de fluxo artístico sobre esses aspectos mágicos das catedrais. Podem-se ler livros e mais livros sobre o assunto e a verdade apresenta-se sempre mais obscura. Riqueza dos templários e realeza francesa estão intimamente ligadas, assim como a França e a história das catedrais fazem parte da nossa civilização européia. O tesouro do Vaticano conserva certos segredos que não serão jamais revelados! Malgrado os romances de antecipação, como o Código Da Vinci, que desenvolve teses não comprovadas, mas embaraçosas! O Vaticano não diz constantemente que a França é a ‘filha mais velha da igreja’? O que esconderia essa expressão? Que herança a França possui?  Seria uma herança de monumentos? Do espírito? É pouco provável. Herança em tesouros da antiguidade cristã? Que dívida tem a igreja em relação à França nesses tesouros escondidos? Lá ao sul, em Roma, não há prescrição de 50 anos para segredos de Estado guardados na Biblioteca do Vaticano, pois depositados ad eternum, salvo invasões bárbaras vindas de regiões que professam crenças únicas e fanatizadas e que, nesse caso, colocariam por terra os símbolos da identidade cristã na Europa.  A verdade, talvez, seja muito mais simples do que tudo o que está escrito. Todavia, ela apagaria a magia, e a ausência da magia gera a ausência de ‘dízimos’ próprios dos cultos e das visitas, onde se inclui Notre-Dame de Paris, assim como todos os lugares de culto na Europa, ou seja, o mecanismo mercantil necessário à sobrevivência. Apesar dos recursos financeiros do turismo cristão para a manutenção desses monumentos, há nessas construções aspectos mágicos ligados à acústica, ao gênio inventivo do abade Suger, que foi mestre de obras em Saint-Denis, mas que também influencia toda a Arte da França, ou seja, a Arte Gótica. Ficou essa arte maior e incrivelmente perene; permaneceu  a qualidade do labor de artesões dos quais são descendentes os Compagnons du Tour de France  e os Compagnons du Devoir - confrarias profissionais oriundas de tantas outras, artesanais, que construíram catedrais e igrejas – companheirismo que eu reivindico também na minha formação intelectual e artística, pois ela estabelece a arte profunda, preciosa e elitista de nosso país como um todo, como se gerações sucessivas tivessem transmitido essa noção de exigência e de excelência através dos tempos. É a evidência, bem entendido! Considere-se toda uma ideologia dos últimos cem anos para a qual a igualdade é fundamento – na realidade, jamais almejada pelos detentores do poder – que in facto nunca existiu desde a aurora dos tempos, mas considera o trabalho uma condição de escravidão. Trabalho esse entendido pelos descendentes filosóficos das catedrais como arte sagrada da vida. Compreenda-se que liberalismo e capitalismo são consubstanciais ao espírito das catedrais. Haveria condições de construir tais edifícios sem a liberdade individual e sem o capitalismo? Por acaso foram os escravos que construíram tais obras-primas? Não, foram homens livres, evidentemente, vindos de toda a Europa para participar dessa obra excepcional que estava a nascer. Havia trabalho para todos esses cidadãos e cada um sonhava poder participar, trabalhando e dando o melhor de suas capacidades. A história, sim, a história relata que eles eram bem pagos. Eu não ouso sequer estimar o capital necessário disponível para a construção dessas catedrais e igrejas jamais igualadas na perfeição arquitetônica.

As catedrais têm esse aspecto maravilhoso. Nelas adentrar é tecer reflexões sobre o período, a história, o passado, o presente. É talvez o único lugar, hoje, onde podemos permitir-nos a reflexão sobre todos os conceitos acima, além de nosso entendimento e que ocultam nossos pragmatismos e obrigações cotidianas aqui na Terra. Frequentemente vamos às Basílicas de Lisieux e de Sainte-Cathérine, em Honfleur, por esses motivos transcendentais. Para sair de nosso tempo presente tão forte e inquisidor. Partilho de sua emoção à chegada dos sinos de Villedieu-les-Poëlles, que eu conheço muito bem, assim como o fabricante, que visitei várias vezes.

Incrível história das catedrais, de suas raízes, de sua descendência! Mundo real, histórico, humano e esotérico se amalgamam permanentemente. Magia, pedras, feitiçaria, crenças, recolha… Toda essa argamassa secular da qual, infelizmente, nunca conheceremos todos os ingredientes”. (tradução: JEM)

Agradeço aos dois ilustres especialistas, que tão bem esclarecem aspectos pontuais que enriquecem os espaços do presente post. Quanto a Antoine Robert, ele é partícipe de uma amizade que remonta ao ano de 1960.

My post on the bells of Notre Dame cathedral received much feedback. This week’s post is a selection of messages I received on the subject: one is about the bells and how they became news on the French television; a second tells us of composers and musical experiments of the Notre Dame School of Polyphony ; the last one is about the workforce involved in building cathedrals in the Middle Ages and the secrets of the Catholic Church.

 

Região Plena de Encantos

Circunstâncias agradáveis levaram-nos à Baixa-Normandia. Lá estive em 1959, a visitar Deauville, Trouville e Honfleur. O regresso deveu-se a uma visita amistosa ao compositor François Servenière e sua encantadora família, que habitam Blangy-le-Chatêau.

Partimos de comboio da estação Saint-Lazare, em Paris, e em menos de duas horas, passando por cidades como Pont-l’Évêque (do renomado queijo) e Lisieux (cidade de peregrinações voltadas à Sainte Thérèse de l’Enfant Jesus, ou Santa Terezinha do Menino Jesus, da ordem das Carmelitas descalças), chegamos a Deauville, onde Servenière nos esperava. Permanecemos menos de vinte e quatro horas na linda região da Baixa-Normandia, pernoitando em Deauville, bem em frente ao Porto. Sempre acompanhados pelo dileto amigo,  foi-nos dado o prazer de ouvir pormenorizadas observações a respeito de uma região com história, tradição diferenciada a partir das próprias construções nas comunas e, sobretudo, repleta de belas paisagens, mas preenchidas por moradias de diversos períodos e estilos. Normandia que não nos deixa esquecer os episódios trágicos do célebre dia D e suas consequências logo a seguir, durante a Segunda Grande Guerra, quando milhares de jovens  perderam a vida, mas fincaram as bases para a libertação dos povos. Casamatas alemãs ainda podem ser encontradas quase frente ao mar.

Apesar de toda a notoriedade, Deauville pareceu-me agora, como há mais de 50 anos, menos interessante do que Trouville ou Honfleur.  Após ser erigida Estação Balneária em meados do século XIX, surgiram com o passar dos anos  inúmeras outras construções, muitas delas palacianas, cassino famoso, pistas para treinamento e corrida de cavalos. Deauville abriga festival do cinema americano, congressos de toda a sorte e tantas mais atrações voltadas aos aspectos por vezes mundanos e superficiais do ser humano. Inúmeras demolições, muitas delas de casas com perfil histórico, estão a se processar. É, pois, frequentada preferencialmente por detentores da economia, artistas prestigiados, políticos e cidadãos mais afortunados. Logicamente, Deauville não tem apenas essas características, pois um certo charme persiste em muitas construções, no porto, no mercado…

Honfleur é simplesmente encantadora. Lá nasceu o compositor Erik Satie (1866-1925). Com sua arquitetura típica, ruelas com construções geminadas e diferentes, por vezes  lembrando miniaturas. Diante da casa que viu nascer o autor das Gymneopédies, como não visualizar as travas rústicas de madeira que sustentam as estruturas externas da morada e não pensar nas organizações musicais do compositor, por vezes tão imbuídas de rude escritura? Digna de atenção, a Igreja de Sainte-Cathérine, cuja nave em madeira, da segunda metade do século XV, tem o formato de um fundo de grande barco invertido. Construída após a  Guerra dos Cem Anos, interessa o fato dessa utilização de material próprio à construção dos barcos dessa pequena localidade voltada para o mar. O todo é harmonioso.         

Ao adentrarmos uma das galerias da cidade, Sainte-Catherine, deparamo-nos com obras do escultor francês Bruno Catalano, nascido no norte da África em 1960 e que, a partir de 1990, criou um modelo escultural que desdobraria em incontáveis situações, o homem e seu destino, que abandona fragmentos corporais ao partir. Cria o artista uma atmosfera que impressiona pela realidade latente do ser humano, que deveria, na essência, estar voltada ao desapego, mas que dificilmente consegue se liberar de tantos acúmulos. Segmentos do corpo no vazio sintetizam o desprendimento, e a indefectível mala, sacola ou valise são  símbolos do conteúdo que deve acompanhá-lo na trajetória. Solicitei à gentil Céline, da referida galeria que me enviasse uma foto da escultura em bronze de Catalano, “Le destin du voyageur”, com mais de dois metros, e prontamente fui atendido. Partilho-a com meus leitores.

Pelas ruelas de Honfleur continuamos o passeio e uma casa chamou-me a atenção pelo emprego de tantos materiais. Minúscula, parecia traduzir todas as dificuldades e privações dos moradores ancestrais para a construção que os abrigasse, protegendo-os dos fortes ventos e do inverno nessa região voltada para o Atlântico Norte.

Já ao final da tarde dirigimo-nos a Blangy-le-Chatêau (circa 670 habitantes), para o jantar em casa de François Servenière, sua encantadora esposa Elise e os filhos menores, Ambre e Tom. Dádiva do entendimento. Nossa correspondência em dois anos já ultrapassou 700 páginas. Música, artes, literatura, cotidiano e, hélas, política são temas recorrentes. Nosso desencanto quanto a esse último tema é recíproco. Servenière é compositor autêntico e um sábio. Por vezes, com seu consentimento, compartilho seus e-mails escritos em francês literário com  amigos diletos, sabedor de que haverá uma recepção sempre extasiada devido ao conteúdo essencial. Uma raqlette servida com todos os ingredientes que se fazem necessários selou uma noitada inesquecível.

Pela manhã, o amigo acompanhou-nos do hotel em Deauville à estação ferroviária Deauville-Trouville. Ainda tivemos tempo, sob frio e chuva, de passear pelo passeio frente à praia. Em 1959, na visita que fiz com amigos às cidades da região em pleno inverno, andamos pela areia praiana e, em certo momento, tracei uma linha para um salto à distância, realizando-o. Com humor, François observou: “é possível haver ainda a linha demarcatória”.

No trajeto de volta não deixei de refletir sobre a passagem dos anos. A visita de 1959 vinha-me por inteiro e os 54 anos de distanciamento ratificariam certas constâncias ao olhar o que nos circunda. Alterações houve nessas pequenas cidades. Em Deauville elas são mais notórias devido ao afluxo turístico e a essa vocação já mencionada. Todavia, as modificações menores nas outras localidades não estariam em conformidade com certas determinantes que já existiam naquele jovem que eu fui? Transformações que não esquecem a arquitetura do passado. Elas podem ser encontradas também na interpretação pianística, mas a indicar sempre a origem. Nosso DNA não nos deixa trair características essenciais. Salvaguarda? Talvez.

On my trip to the Lower Normandy in France, visiting Deauville, Trouville, Honfleur and Blangy-le-Chatêau, and the reason why I prefer the last ones — with their delightful backstreets and old houses — to Deauville, turned into a glamorous holiday resort with sophisticated distractions for the upper class.