Flávio Amoreira diante da síntese

O mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas.
Agostinho da Silva (1906-1994)
“Conversação com Diotima”)

Admiro a personalidade do poeta, escritor, crítico literário, tradutor e professor de oficinas literárias Flávio Viegas Amoreira, que a essas qualificações soma a de agitador cultural em sua cidade natal, Santos. Sua coluna em “A Tribuna” não apenas trata de aspectos das várias culturas, como denuncia os desatinos de poderosos e dos nem tanto.

Foi através da dileta amiga Eliane Mendes, viúva do saudoso e querido Gilberto Mendes (1922-2016), notável compositor santista, que uma sólida amizade se estabeleceu entre nós. Desde então, tenho saboreado os seus textos e, inclusive, tive o privilégio de escrever o postfácio de seu livro “Gilberto Mendes – Notas Biográficas”.

No seu recente “Des casulo” (Costelas Felinas, 2023), o leitor habituado à tradição poética onde o verso, a rima, ou formas outras construtivas imperam, poderá se desconcertar, mesmo para inúmeros fiéis ao modernismo pátrio, movimento que, através de várias mutações, legou acervo considerável.

“Des casulo” se aproximaria mais acentuadamente dos haicais, não obstante carregar em suas mensagens lirismo a ser decifrado pelas palavras que mal se contam nos dedos das mãos, autenticando a presença do multum in minimo. Seria possível entender essa miniaturização como um processo de pleno domínio literário e do pensar. É provável que a perfeição, tão difícil de ser concretizada, se dê não quando há algo a ser acrescentado, mas no momento em que nada mais pode ser subtraído. Assim sendo, uma palavra a mais poderia destruir a voluntária abreviação. Sob outra égide, fosse o todo do pensar, teríamos o segredo, passível de deciframento. A síntese da síntese pode pressupor o mistério e este é insondável. Lê-se e o enigma se instala, lê-se e o maravilhamento se dá pela inexistência da obviedade.  

Mencionaria um exemplo tipificado na música. O compositor e regente português nascido nos Açores, Francisco de Lacerda (1869-1934), em algumas das “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste” realiza a síntese dos procedimentos. Todo um universo se encontra em pouquíssimos compassos. Haveria necessidade de mais para apreendê-lo?  Ao acessar o Youtube, o leitor encontrará a minha gravação dessa magnífica coletânea.

A fim de um conhecimento mínimo e, através de dois temas que povoam as 50 poesias não acadêmicas, insiro as alusões voltadas ao mar, tão caro ao Flávio como o foi para Gilberto Mendes, e acrescentando outras, de um sensualismo onírico.

IV

vento libertador
oceano alado

VIII

ah! que a maresia vibra
tenra no ar
enquanto rente
a lua míngua

XI

vê se a dobra
das ondas te enternece
ao horizonte

XXXVIII

mergulhão
o vento nas ondas
tordo
insone

II

foi detalhe
e nele o éden do corpo

III

abrasador
o verão toma-me pelos raios solares
dos teus lábios intocados

VII

demoraria em teu corpo
com a espera
sem sombra

XII

não é teu sexo
são os arredores

XVII

acaso ali
já me habitavas
em pressentimento

XXVII

tinha poesia
por fazer incessante
e o amante
para descobrir sem fim

XXIX

o que de melhor
o homem acrescenta
ao mundo são as coisas inúteis

A síntese proposta por Flávio Amoreira leva o leitor à interpretação. Não o conduz, convida-o simplesmente.

Flávio Viegas Amoreira, the poet and writer born in Santos, in writing “Des casulo” achieves a synthesis of the poetic synthesis, even more concise than the haikais and perhaps with a more lyrical orientation.

 

Joaquim Vieira e o desvelamento parcial de Lopes-Graça através de entrevistas

Uma das fatalidades da música portuguesa foi nunca ter ela encontrado,
nos três ou quatro momentos históricos em que a nossa cultura estremeceu na clara ou obscura consciência da sua missão nacional,
a personalidade ou as personalidades que,
no seu domínio próprio, encarnassem os ideais ou tendências da hora.
Fernando Lopes-Graça (1906-1994)
(“A Música Portuguesa e os seus Problemas” II)

Se pudesse, passava a vida a ouvir música.
Eduardo Lourenço (1923-2020)
(“Tempo da Música – Música do Tempo”)

A montagem de um documentário sobre figura ilustre, que permanece através de obra legada à posteridade, requer do organizador sensível acuidade na escolha dos estudiosos do homenageado. O trabalho investigativo demanda tempo, pois necessário se faz colher essencialidades dos depoimentos, inserindo-as no roteiro, o que implica outro atributo do organizador, saber selecioná-las apropriadamente.

Consensualmente, Fernando Lopes-Graça é o nome maior da criação composicional em Portugal no século XX, quiçá de sua história. Atravessando basicamente todo o século, o músico nascido em Tomar não apenas foi o grande compositor, como regente coral e pianista, legando uma vasta obra literária, na qual aos temas voltados à música se somam a tantos outros, estes, críticos em relação à contemporaneidade portuguesa em seus vários matizes. Como professor, orientou alguns dos mais proeminentes músicos de Portugal.

“Documentário Música de Graça” tem abrangência, e os depoentes, intérpretes – mormente pianistas -, musicólogos e compositores se pronunciaram em breves intervenções intercaladas, na captação precisa de determinadas características de Lopes-Graça.

Joaquim Vieira soube apreender de cada entrevistado elementos para a montagem do puzzle. Assim sendo: atuação do mestre Lopes-Graça, processos de criação, importância do legado, a abranger uma gama extensa de gêneros musicais, desde aquele dedicado aos miúdos em seus inícios pianísticos às canções corais a partir, tantas delas, do cancioneiro popular, e às obras camerísticas e orquestrais, sendo que inúmeras rigorosamente complexas na concepção e na apreensão por parte daqueles que nelas se debruçam. Sua obra para piano é extensa, expressiva, e uma das mais importantes do século XX. A amplitude de sua opera omnia, sempre rigorosa, certamente insere Lopes-Graça entre os grandes compositores do período. Em uma das várias intervenções, o pianista António Rosado, que gravou na excelência obras fundamentais de Lopes-Graça, bem evidencia a complexidade de muitas das criações, “um mundo difícil de se entrar”.

Estar ligado ao Partido Comunista rendeu-lhe inúmeros dissabores durante o prolongado Estado Novo, que se prolongou de 1933 a 1974. As múltiplas dificuldades enfrentadas corroboraram a criação de composições que permanecerão, mercê de uma força de expressão rara no amplo universo das emoções. O musicólogo e sociólogo da música, Mário Vieira de Carvalho, autor de livros fundamentais sobre Lopes-Graça, em uma de suas intervenções comenta que o compositor “… não coloca a música a serviço da política no sentido simplista do termo. Como ele próprio dizia: ‘a música não pode ser imolada em qualquer doutrinação estética ou ideológica’. Ele faz uma distinção entre música, ou seja, arte no sentido lato, e ideologia”. Corrobora a posição de Vieira de Carvalho a colocação do maestro e compositor Álvaro Cassuto, seu ex-aluno, ao testemunhar que, durante o convívio mestre-aluno, jamais Lopes-Graça falou sobre ideologia, mas apenas sobre música. O maestro António Sousa, autor de obras precisas sobre o seu conterrâneo tomarense, mormente no período em que viveu em sua terra natal, comenta que, após o 25 de Abril de 1974, retorna Lopes-Graça à militância do PCP. A preceder a fala de Sousa, ex-diretor do Canto Firme, escola referencial de Tomar, Joaquim Vieira apresenta imagens de locais da histórica cidade, tão caras ao seu filho maior.

O compositor e regente Sérgio Azevedo (1968-), ex-aluno de Graça, destaca a importância do mestre de Tomar não só para a Música, mas para as Artes e a Cultura em geral. Miguel Henriques, igualmente pertencente a plêiade de excelentes pianistas portugueses, destaca processos estruturais das criações, que se estendem das obras mais singelas às mais complexas de Lopes-Graça, posição corroborada pelo pianista francês Bruno Belthoise, intérprete de vários compositores portugueses. O pianista e regente João Paulo Santos salienta a importância das canções de Lopes-Graça. Por sua vez, a pianista Joana Gama, que recentemente gravou tão bem as “Viagens na Minha Terra” – coletânea a conter 19 peças -, ratifica a permanente presença da voz oculta dos campesinos em alguns dos quadros das “Viagens…”. “Em Monsanto da Beira, apanhando a margaça”, Joana interpreta a peça e, engenhosamente durante a execução, Joaquim Vieira insere em surdina o som dessas camponesas cantando “A Margaça” sob o ritmo dos adufes. Resultou. Foram centenas as criações de Graça para coral, criações apresentadas sob sua regência pelo coro da Academia dos Amadores de Música.

O documentário “Música de Graça” exibe excertos de vídeo, a evidenciar momentos do incansável labor do notável etnólogo corso Michel Giacometti (1929-1990), que durante décadas realizou em Portugal relevante recolha de material musical, gravando e filmando cantares do povo em diversas situações do cotidiano, captando, através da música e do diálogo, a vida e o duro labor dos camponeses em suas aldeias. Nesse vídeo, a presença de Lopes-Graça, atento à narrativa e ao som de um flautista campesino, ratifica a sua admiração por esses cantos, tantos deles harmonizados pelo mestre e, nessa versão, apresentados pelo coro da Academia de Amadores de Música, sempre sob sua regência, nas suas peregrinações pelo país.

Tantos outros preciosos depoimentos enriquecem o importantíssimo documentário organizado por Joaquim Vieira e produzido pela Nanook para a Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Vale lembrar que algumas ilustres figuras que tiveram ligação com a vida-obra do compositor não estão presentes. Nos mais diversos documentários produzidos alhures isso ocorre. Antolha-se-me que essencialidades do intenso labor, configuram Lopes-Graça como uma das mais completas personalidades da Cultura em Portugal no século XX, pois é notável a diversidade que lhe era qualidade natural.

Não poucas vezes neste espaço tenho salientado a importância extraordinária da música portuguesa, que mereceria uma divulgação ampla no planeta. Para tanto, partituras deveriam ser distribuídas pelos governos de Portugal às entidades que se espalham pelo mundo.  A limitada atenção à Alta Cultura não é sentida apenas num só país. Sem a divulgação, sem a presença de ótimos intérpretes portugueses tocando obras referenciais fora das fronteiras, o obscurantismo se perpetuará. As qualidades insofismáveis de Carlos Seixas (1704-1742) e de Fernando Lopes-Graça, apenas como alguns exemplos da criação portuguesa, estariam a merecer o empenho dos detentores do poder. Se assim fosse, certamente suas obras entrariam em repertórios além-fronteiras. Em um colóquio em Lisboa afirmei que, se numa sala de concertos em Portugal fosse pronunciado o nome de Villa-Lobos, nosso mais ventilado compositor, uns poucos levantariam as mãos afirmando conhecê-lo. Em termos do Brasil, corre-se o risco de, ao ser mencionado o nome de Lopes-Graça, um silêncio sepulcral atestar o desconhecimento.

Tive o privilégio de participar de algumas entradas no documentário, máxime a falar sobre “Canto de Amor e de Morte” que, na opinião do saudoso compositor Jorge Peixinho (1940-1995), vem a ser “… obra mais consequente e coerente na relação entre os diversos níveis de organização que a música portuguesa, com toda a verossimilhança, terá alguma vez logrado”. Joaquim Vieira soube muito bem intercalá-las com sábios pronunciamentos sobre “Canto…” dos ilustres António Victorino de Almeida e Mário Vieira de Carvalho. Tive acesso ao único manuscrito autógrafo de “Canto de Amor e de Morte”, obra original para piano (1961), logo após obtendo duas versões realizadas por Lopes-Graça, para quarteto de cordas e piano e para orquestra. Em 2012, em edição conjunta Numérica, PortugalSom e dgARTES, foi lançado o duplo CD contendo “Canto de Amor…”, “Músicas Fúnebres”, “Música de piano para crianças” e “Cosmorame”, obras que gravei na Bélgica. Preparei a edição crítica do “Canto de Amor e de Morte” publicada pelo Movimento Patrimonial da Música Portuguesa (mpmp).

Que o relevante “Música de Graça” seja estímulo para outros documentários focalizando compositores incontestes que dignificam a criação musical em Portugal. Parabéns efusivos ao ilustre jornalista e escritor Joaquim Vieira pela organização de documento tão precioso para a arte musical.

Clique para assistir o documentário “Música de Graça”:

https://www.rtp.pt/play/palco/p12547/e735550/musica-de-graca

The documentary “Música de Graça” pays homage to the great Portuguese composer Fernando Lopes-Graça. The productor, Joaquim Vieira, an accomplished journalist and writer, selected musicians still active, some of them having known Lopes-Graça personally, who enrich the documentary addressing a variety of topics.

O planeta sentirá saudades?

Seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau;
mas é nessa mesma maldade
que devemos procurar o apoio em que nos firmamos
para sermos nós próprios melhores e, como tal,
melhorarmos os outros.
Agostinho da Silva

Há muitas décadas não passávamos por uma transição de ano tão prenunciadora de tempos ainda mais controversos. O pipocar dos fogos, as festanças espalhadas pelo país anunciam 2024, que não configura um ano alvissareiro. Os vaticínios se mostram cautelosos ou pessimistas.

Nesta coluna, publicando posts hebdomadários desde Março de 2007, sem jamais ter perdido um sábado, nunca me posicionei politicamente, apenas mantenho distância das ideologias extremadas.

Tive admiração plena pelo Supremo Tribunal Federal, outrora constituído por juristas incontestáveis, que se mantinham como guardiões da Carta Magna. Ministros reverenciados. Esvaiu-se o apreço. Para muitos e para um leigo nessa temática, como eu, a nitidez de determinadas decisões do STF apenas evidencia “desvios” do que rege a nossa Constituição de 1988. É sempre bom lembrar que, desde o século XVI, a Justiça é representada com venda nos olhos em estátua grega, venda esta a significar a isenção absoluta nos julgamentos. Daí as consagradas palavras “Justiça cega”, imparcial e sem máculas. A retirada da venda nos olhos apontaria para a parcialidade. O meu saudoso amigo e excelente artista plástico, Luca Vitali (1940-2013), fez uma charge a ilustrar o meu blog “A Justiça – Interpretação de uma charge” (24/10/2009). Luca não pensou na balança de dois pratos, isenta e equilibrada. A suportar o Código, um medidor com apenas um prato, muito comum nas feiras de antanho e, a subsituir o cão fiel, uma raposa. Futuramente a História se posicionará de maneira criteriosa, sem paixões, sobre os tempos conturbados que estamos a viver.

Sobre a Cultura, ou Culturas, progressivamente se instaura no país uma decadência sem retorno, como uma rocha a despencar de uma montanha e que, no seu avanço, torna-se mais veloz e destrói o que há pela frente. As conquistas internéticas atingiram, para o bem e para o mal, as mais variadas camadas da população. A “grande” mídia impressa, falada e presente nos sites, que deveria publicar noticiário isento de partidarismo, basicamente não o faz, perpassando a atualidade política e econômica com propósitos tendenciosos. Sob outra égide, dedica parcela dos espaços à derrubada dos costumes, à ascensão de temas sobre sexo nas mais variadas configurações, aos polêmicos temas raça e gênero provocando embate e cizânia, à violência em ritmo geométrico, à insegurança que atormenta as populações. Acresce-se o absoluto desvio do bem escrever, pois erros propagam-se na maioria das colunas de jornais, revistas e sites. Outrora essas falhas eram corrigidas no exemplar seguinte! Presentemente elas são assimiladas e se tornam rotineiras, trágica certeza.

Converso com muitos jovens. Raríssimos leem livros ou, quando muito, poucas páginas e… desistem. O desprezo pela Cultura Humanística terá consequências irreversíveis com o decorrer do tempo. Estas serão sentidas tardiamente com a ascensão de gerações que não mais terão ligações com o passado literário, artístico, espiritual… Perder as origens e ter como fundamento a história recente desde a início da proliferação dos celulares, como exemplo, é trilhar o caminho da homogeneização das mentes sempre em valores decrescentes. Sombria visão no horizonte.

Quão pouca importância se dá hoje à família tradicionalmente constituída e que permanece como legado a ser preservado. Raríssimas vezes a mídia no sentido amplo sobre ela se debruça.

As guerras que assolam várias regiões do planeta forçosamente trazem dúvidas quanto à saúde mental de dirigentes. Terroristas sempre serão terroristas. Não há, hélas, possibilidade de exterminá-los. Gerações afetadas pelas ações extremistas guardarão tenebrosas lembranças, mas a consequente represália em excesso apenas estimulará descendentes sem ligações com o terror a aderir à causa extremista. À testa dos governos autoritários, hélas, vários títeres que permanecerão títeres.

Esperanças? Aos 85 anos continuo a tê-las. A música é uma respiração que não falha até… Tenho à cabeceira do meu leito frase a anteceder o final do extraordinário romance “Jean-Christophe”, de Romain Rolland (1866-1944), no qual o personagem confessa sua devoção à Música: “Eu jamais te traí, tu jamais me traíste, disso temos plena segurança. Partiremos juntos, minha amiga. Fique ao meu lado até o fim!”.

A família e os fiéis amigos permanecem como âncoras que possibilitam ver melhor o mundo que nos cerca.  Meu saudoso Pai, admirador confesso de J. Krishnamurti, legou-me um precioso livro do mestre indiano, “Auto-Preparação”. Dele extraio um segmento essencial:

“Cada um de nós emergirá, ao fim do Ano Novo, ou maior ou menor; ou então absolutamente não teremos crescido, permanecendo em completa inércia, exatamente aquilo que agora somos. Porém, para aqueles dentre nós que sentem entusiasmo pela vida, o que um Novo Ano significa? Poderia ter esta significação: somos semelhantes a viajantes, penetrando, em nossa longa jornada, por um país novo e desconhecido, onde fados estranhos e estranhas aventuras nos esperam. Nesta terra, à medida que o peregrino observador a percorre, oportunidades se acumulam sob seus passos. Porém, para aproveitá-las necessita ser sábio e estar alerta. Pois de uma coisa deve lembrar-se – que é um viajante e que o que lhe compete não é se deter, mas passar adiante.”

A todos os meus leitores envio meus votos de um Ano Novo promissor, mas também de resiliência frente às adversidades que se descortinam.

As the year closes, I wish all my readers a promising New Year, but also one of resilience in face of the adversities that lie ahead.