Ou o Eterno que Enriquece o Cotidiano

Quem não labuta,
não manduca.

Adágio açoriano

Uma das maiores dificuldades de um cidadão em nosso país é abrir uma firma comercial. Maior ainda no momento da desilusão, quando se faz necessário encerrá-la. Se micro-empresário, a dor pode ainda ser mais intensa, pois nada mais resta de seus parcos recursos. O nosso Estado é o Leviatã que tudo devora, nada lhe escapa. Não há sentimento algum, apenas a necessidade de se arrecadar. Desamparado, aquele que tem o infortúnio de viver esse abrir e fechar sabe muito bem a que me refiro.

Há o personagem com recursos humanos e verbais para iniciar um pequeno negócio, não o fazendo pela ausência absoluta de capital, e outros que o próprio Leviatã destruiu com o peso  de encargos. Estou a me lembrar que em 1987 estava em Nova York com dois amigos músicos. Certo dia fomos para a abertura de uma firma em nome de um deles, americano. Indagamos e apontaram-nos um prédio como qualquer dos milhares existentes na cidade. Perguntamos pelo cidadão que fazia abertura de firmas. Era o próprio zelador, que estava em manga de camisa. Ele retirou-se e voltou com paletó e gravata, a trazer um livro e carimbo. Escreveu o necessário. O amigo americano e o outro - brasileiro residente nos Estados Unidos – assinaram,  este último como testemunha, e o cidadão, como “autoridade”, disse que tudo estava sacramentado. Pagaram uns pouquíssimos dólares. Perguntei-lhe se era tudo. Sim, respondeu-me, e não é assim também em seu país? Falei-lhe das longas filas em cartórios, tabeliões, a parafernália de carimbos, os vários compartimentos governamentais a serem visitados, assim como o preço absurdo para essa abertura de empresa. Disse-lhe ainda que as assinaturas levam outro carimbo, a fim de serem autenticadas, etc, etc… Ficou atônito, mormente quando lhe disse que cartórios são hereditários. Incrédulo indagou-me: “seu país tem monarquia”? Após, saímos para almoçar.

Conheço Marcelo há muitos anos. Sempre que atravesso a Avenida Santo Amaro para ir ao supermercado no fim de tarde, sei que vou encontrá-lo. Pelo vozeirão de Marcelo é impossível não o perceber. Há 23 anos carrega consigo suas “mercadorias” e vende nas duas paradas de ônibus, direção Santo Amaro, biscoitos, salgadinhos, balas e refrigerantes. Marcelo é do bem.  Sente-se nele o potencial do “mini-micro” empresário que carrega nas mãos fortes a sua “empresa” ambulante. Tem fiéis compradores constituídos por trabalhadores que sobem as ruas desde a marginal, preferencialmente mulheres que trabalham em residências, e que pegam suas conduções em direção à ampla zona sul da cidade. Retorno aos lares após árdua labuta.

Fascinam-me em Marcelo sua interação com o meio e a qualidade de seus pregões. Todos gostam de nosso personagem, pois jamais o vi de mau humor. Sempre a sorrir e a conversar com passageiros à espera dos ônibus ou trocando palavras amistosas com muitos motoristas dos veículos públicos. Compreende seus clientes. Deles se aproxima, a proferir seus pregões. Participa de suas transitoriedades, pois por vezes senta-se e conversa com alguém, faz afago em uma criança e, mercê da quantidade de guloseimas, vende lá os seus produtos àqueles trabalhadores que terão ainda de enfrentar longos trajetos até destinos finais. E nada mais apropriado do que, por poucos trocados, levarem algo para disfarçar o estômago nesse retorno que pode se prolongar, a depender do caótico trânsito de nossa urbe. Tantas vezes já insisti em blogs sobre o descaso absoluto que as autoridades têm por esses heróis anônimos que se apinham em ônibus e metrôs diariamente.  

Marcelo poderia alardear os produtos, nomeando-os à exaustão, como fazem quase todos os vendedores na mesma situação. Não o faz. Procura sempre frases que pressupõem ao cliente tratar-se de uma firma, mesmo que ambulante. Transmite ao comprador, de maneira sincera, o seu cotidiano, essência de seus pregões.  Daí diferenciar-se tanto dos “colegas de ofício”. Há em Marcelo esse dom do marqueteiro que sabe vender seu produto sem se mostrar, contudo, um interesseiro. Basicamente não os anuncia. Interessa a Marcelo prender a atenção do comprador para oportunidades “únicas” ligadas ao seu cotidiano. Sob aspecto outro, sua presença física a lembrar um profeta à antiga, torna-o figura respeitada por todos. Quase sempre nos cumprimentamos e tenho grande prazer em vê-lo lépido e ativo.

Um dia pedi-lhe que me falasse sobre sua origem e passado. Natural de Feira de Santana, na Bahia, trabalhou durante 18 anos como operário encarregado de bater as estacas que fundamentam as centenas de edifícios pelo bairro. Dirigiu seu olhar para o entorno e disse que muitos daqueles prédios tiveram os seus préstimos. Após tantos anos a suportar trepidação e barulho intenso, resolveu ser independente. Há 23 anos é o ambulante da confraternização, pois todos têm por ele muita afeição.

Em certo momento disse-lhe que tinha guardado na memória uma série de frases por ele ditas diariamente e que têm lá sua graça, tencionando escrever sobre sua atividade junto aos dois pontos de ônibus. Abriu um grande sorriso quando afirmei que tiraria umas fotos durante o pleno desempenho de sua “firma”. Foi o que fiz dias após.

Compartilho com meu leitor alguns dos costumeiros pregões de Marcelo, sempre proferidos em alta voz: “hoje vou vendê tudo mais barato… quero ir mais cedo pra roça”; “liquidação total, tá tudo mais barato”; “só hoje vou vendê mais barato”, e nomeia determinado produto; “você precisa gastá o dinheiro… liquidação… tenho de ir embora”; “estou pedindo um peixinho (moedas) pra sorte me ajudá”; “se todos me derem um peixinho não precisarei  ir mais pra roça”; quando as vendas estão fracas “hoje tô comendo mais do que tô vendendo… vamo lá pessoal”,  “se vocês não me ajudá vou pra roça plantá feijão, arroz e soja”.

Grande Marcelo. Sintetiza ele a figura desse povo que, apesar de todas as mazelas, guarda ainda a pureza nas intenções, não deixando de perder o senso da confraternização. Marcelo persiste em atividade hoje cada vez mais concorrida. É só verificarmos os pontos de ônibus da cidade e pequenos tabuleiros de ambulantes a tudo vender. Marcelo é figura ímpar por ser o autêntico “negociante” a carregar seus cestos com a alegria pela escolha do ofício, décadas atrás. Não é o cliente que vai ao seu encontro. Procura-o e o “seduz”. Que continue com essa contagiante maneira de ser.

His week’s post is about a personality of my neighborhood: Marcelo, a street vendor that, carryng two huge baskets, sells his wares at the nearest bus-stop. Always in a good mood and smiling, he announces his candy bars, potato chips, chewing gums and soft drinks aloud, captivating buyers with attention getting and funny slogans full of originality.

Interpretações Diferenciadas de Tema Crucial

Detesta o cientista toda a contradição;
o artista não a julga;
o religioso a absorve no melhor do seu deus.
Agostinho da Silva

Foram inúmeros os e-mails e telefonemas recebidos após a panorâmica que apresentei do ano de 2011, quando não sentia o que comemorar nesse mundo tão conturbado. Frases curtas, incisivas, desalentos e esperanças marcaram as mensagens. Somos constituídos dessa ambiguidade, razão pela qual ainda encontramos tanto interesse na existência. Há  a intenção dialética a nortear os posts, uns mais amenos, referentes ao cotidiano que me encanta, outros a tentar atingir o cerne de determinados temas sócio-culturais.

Selecionei três e-mails recebidos de França, Portugal e do Brasil. François Servenière, compositor, orquestrador e arguto pensador francês colocou posições de esperança, a acreditar nos ciclos permanentes, na juventude e na renovação do espírito do homem após graves crises.

“A crise é terrível para a juventude européia, mas não é desesperadora. As crises são sempre momentos iniludíveis de tomada geral de consciência, mas também de renovações, da colocação em seus verdadeiros lugares do trabalho, da coragem, justamente quando a verdade dos homens e das mulheres se apresenta por inteiro. Os políticos frente à crise tornam-se também melhores, por definição em todos os países do mundo e em todos os períodos históricos, diferentemente daqueles que se alimentam fartamente nos tempos de riqueza, quando a corrupção mais prospera. As crises permitem zerar aferidores, valorizar e evidenciar pessoas mais sólidas e mais meritórias que tantas vezes, em períodos de vacas gordas, não têm a  ‘capacidade’ nem o cinismo de criar seu espaço nos meandros tortuosos dos negócios escusos. Segundo antiga fórmula, ‘desgraça é bom para qualquer coisa’, o que significa que dos escombros há sempre e invariavelmente o renascimento. Eu não acredito no ‘depois de mim o dilúvio’, que tantas vezes ouvi de antigos desesperados (também, paradoxalmente, viveram períodos mais negros do que nossa atualidade), que em determinados momentos acreditaram que o mundo iria deteriorar-se inteiramente ou ter trágico fim. A força da juventude estará sempre presente para enfrentar novos desafios, sejam eles quais forem. Nós fomos, somos e continuaremos a ser idênticos no fundo de nossas almas. O período é difícil, e o Brasil, através das suas descrições, parece inclinado a conviver com certa facilidade corruptiva. Suas comparações fubebolísticas relacionadas às equipes do Brasil e da Europa devem ser lidas com atenção. É necessário saber que as equipes européias vivem da mesma maneira que os Estados onde se situam e que elas estão endividadas de uma maneira análoga a esses Estados, sem contar que o esporte espanhol, que domina o mundo, é também acusado de abrigar método inusitado de dopping, pois até hoje não detectável. Corrupção, pois, lá também!”

Idalete Giga, especialista em canto gregoriano e pedagoga sensível em Portugal, é mais cáustica e vê a atualidade um pouco à maneira que a entendo, onde a corrupção e a ganância, sem limites de governantes e empresários inescrupulosos estão a destruir costumes, ética, moral e… o planeta.

“Impressionou-me também o post de hoje, E um Outro Final de Ano – Há o que comemorar neste País? O balanço que faz do Brasil e do mundo actual, com tantos problemas por resolver e cheio de políticos cada vez mais corruptos e insensíveis é, infelizmente, uma realidade. Continua a haver uma imensa hipocrisia, mesmo naqueles organismos mundiais que deveriam defender os povos e os mais fracos, como a ONU, FMI, BCE,OMC , etc.etc,etc. Estes organismos estão cheios de corruptos. Se assim não fosse, a fome, as doenças, as guerras, ( que são um negócio absurdo, aberrante), o analfabetismo, a escravização dos que produzem riqueza, o tráfico de seres humanos, a droga e tantos outros males já não existiriam no nosso planeta tão massacrado, tão violentado pela ganância vampiresca do lucro. Mas o sistema económico e financeiro do mundo actual, baseado nesta ganância insaciável, tem os dias contados. Não poderá manter-se. Cairá por si, porque os povos revoltar-se-ão cada vez mais, em escala planetária. Os ditadores estão caindo um a um!!!! A sociedade civil está a organizar-se um pouco por toda a parte para uma desobediência civil generalizada. É uma questão de tempo…. Serão verdadeiras bombas atómicas que destruirão os perversos e criminosos mercados bolsistas que (des)governam o mundo inteiro!”

Flávio de Araújo, radialista, comentarista e jornalista esportivo de grande mérito apreende a mensagem que tentei transmitir da pobreza de nosso atual futebol.

“Aproveitei para me aprofundar em seus conhecimentos sobre a tão falada crise do euro e que trouxe em seguida a excelente análise sobre o nosso futebol. Como temos compreensões que se identificam… Na Copa São Paulo até me inspirou a fazer uma pequena modificação em um texto que estou preparando para segunda-feira. Comentara o assunto e me esquecera dos empresários de cadernetas na mão”.

Oxalá possamos ser mais otimistas neste novo ano. As premissas não são alvissareiras, mas caminhemos. É o que podemos fazer.

Readers of my post about the New Year submitted online comments with their own opinions about the future. The post of this week is a selection of some messages I received, each expressing a different view.

Quando Interesses Estranhos Sobrepõem-se à Alegria de Milhares

Car, myopes et le nez contre,
ne se préoccupant jamais que de la qualité de l’encre ou du papier
et non de la signification du poème.
Saint-Exupéry (Citadelle. CCXVI)

No post anterior comentava o ano de 2011 e o pouco a ser comemorado, salvo raras exceções, entre elas a família como entidade mater , a dar exemplos de união sincera e amorosa. Em um dos itens escrevi que narraria a “epopéia” do novo percurso da São Silvestre a desnudar equívocos sensíveis por parte da organização do evento, tantos deles provocados por interesses dos patrocinadores. Todas as justificativas referentes ao trajeto último, largamente divulgadas, sempre soaram mal junto aos milhares de participantes. Os atletas amadores que pagaram preços das inscrições muito acima da média – é só conferir os sites de algumas das mais tradicionais empresas que promovem corridas na cidade para que os leitores comprovem a veracidade do que escrevo – não foram ouvidos. Estas dezenas de milhares de corredores da alegria, do prazer, da confraternização são esquecidos em momentos de deliberação. Aqueles excepcionais atletas profissionais, que correspondem a uma porcentagem infinitesimal entre os participantes e que atraem os holofotes por méritos incontestáveis, estão habituados a todos os trajetos. São heróis a serem reverenciados, mas não deveriam jamais servir como opiniões absolutas, o que pareceria evidente em alguns pronunciamentos  dos vencedores da prova, colhidos logo ao término da corrida e divulgados como testemunhos de aprovação da “maioria”.

Quando mencionei a Yescom no último post é pelo simples fato de que é dela que todos nós corredores recebemos e-mails descritivos, da inscrição à prova. Mas pareceria evidente que ela sofreu pressões para liberar a Av. Paulista logo após o último participante passar pelo Masp, à  largada.

Auscultando tantos atletas amadores, assim como alguns profissionais, pareceu-me evidente que eles estavam a sentir por parte dos organizadores uma certa arrogância. Um de meus amigos ouviu em noticiário televisivo a opinião de um dos que ajudou a traçar o novo percurso. A certa altura teria dito que participariam aqueles que quisessem participar e que o problema seria deles! Experientes, dois amigos corredores de fato, José Nicolau (Nicola) e Elson Otake (ranqueado em Maratonas no Brasil), recusaram inscrever-se ao ver o novo traçado, que consideraram muito mal estudado, tornando-o  perigoso para participantes dos mais variados níveis.

Mas vamos à corrida. Há sempre em tempos da São Silvestre a possibilidade de garoas, aguaceiros, chuvas persistentes ou amedrontadoras tempestades. Faz parte de nosso calendário das águas. Nada a fazer, pois delas não temos o menor controle. Todavia, desde o início da semana, aos 26 de Dezembro, já havia previsão, largamente divulgada pelos meios de comunicação, a indicar fortes pancadas que desabariam na passagem do ano. Tudo previsto, pois. Frise-se que todo corredor, profissional ou amador, está sujeito às intempéries. Elas fazem parte de nossa prazerosa atividade esportiva.

Seis integrantes de nossa equipe TA LENTOS participaram nessa última edição. Como nossos tempos são diferenciados, três logo se destacaram: André Shigueo Uchiyamada (1:21:45), Américo Risato Umeda (1:34:30) e Ademir Giacomelli . Corri (1:58:41) ao lado de nosso capitão, Yuji Yokoyama (1:58:41), e de Fernanda Mello, que esteve conosco até a subida da Brigadeiro, quando desgarrou por estar mais rápida. Estivemos sempre debaixo de chuva, sendo que em dois trechos, a perigosa descida da Major Natanael e durante quase todo o percurso da Av. Rio Branco, o céu desabou sobre nós. Panorama mais ou menos inusitado, mas já previsto. Encharcados antes mesmo de cruzarmos aparelhos iniciais de aferição no MASP, assim fomos até o final da prova, no obelisco do Ibirapuera. A descida da Brigadeiro teve características dantescas, mercê do planejamento inadequado da organização quanto ao percurso. Após os 13 km percorridos, incluindo a difícil e tradicional subida da mesma avenida, descer sempre a correr – até o presente jamais andei em prova – tornou-se um martírio para a maioria, que sentiu as articulações dos joelhos e os músculos posteriores de toda a perna sofrerem com esse declive imposto. Tendo já participado de 40 corridas de rua, nunca, friso bem, cheguei com qualquer espécie de dor. Desta vez, se a mente estava super lúcida durante todo o trajeto, joelhos e musculatura sofreram, e mal conseguia andar após a corrida, apesar de imediatamente depois da chegada minha pressão estar como sempre esteve, 11/6, segundo avaliação do posto médico instalado ao final da prova em tenda armada no centro do lodaçal que se formou. A descida da Brigadeiro foi um martírio e outros corredores com os quais cruzei estavam a se lamentar. Dias antes conversara longamente com o grande campeão das S. Silvestres de 1980 e 1985, José João da Silva, que me alertou para essa temível descida, que iria colocar em cheque toda a estrutura dos joelhos e a musculatura das pernas após a histórica subida, que já teria exigido esforço extra depois de tantos km percorridos. Neste domingo (01/01/12), ao iniciar a redação do post, efeitos dolorosos persistem e mal consigo andar. Passarão certamente, mas para que submeter atletas amadores, friso, a esse desafio quase insano?  Minha filha Maria Fernanda e duas netas, que estavam a me esperar na linha de chegada, ouviram inúmeros participantes queixarem-se, e um deles a praguejar  em alta voz que iria processar a organização, pois chegara com os joelhos estourados. Saliente-se, contudo, a bem da verdade, que no regulamento há expresso o não comprometimento da empresa organizadora quanto a percalços físicos dos participantes. Portanto, cabe o ônus ao que se propôs a correr. Inclusive há termo de responsabilidade aceito pelos corredores.

À chegada desse novo trajeto, rigorosamente sem nenhum encanto, sabedores que haveria aguaceiro previsto tão antecipadamente, os organizadores colocaram as tendas para as entregas de medalhas, pasmem os leitores, muitas dezenas de metros depois do término da prova, num terreno sem asfalto, de terra batida com alguma “ex-vegetação” rasteira pisoteada e afogada. Ocorreu o que somente os dirigentes não sabiam, por puro desconhecimento desse espaço no Parque do Ibirapuera e da meteorologia.  Estava a anoitecer, a chuva não parava e sofremos  humilhação e constrangimento ao  atravessar verdadeiro lodaçal  já às escuras, unicamente devido à irresponsabilidade da organização. Sem possibilidades de caminhos alternativos, por vezes Yuji e eu mergulhávamos os pés até bem acima dos tornozelos nessa lama absoluta. Verdadeira aberração. Uns poucos caíam e se desesperavam, pois totalmente enlameados, como em filmes de pastelão. Os mais exaltados a proferirem palavras que, por respeito aos leitores, prefiro não  publicar. Como pode isso acontecer na prova pedestre mais tradicional do Brasil e na maior cidade da América do Sul? Descaso, despreparo total dos organizadores quanto ao espaço fulcral da São Sivestre. Esse lamentável episódio não estaria a prejudicar a imagem de patrocinadores de peso estampados na camisa distribuída no kit de participação? Branca, não ficaria enlameada, a respingar sujeira nas empresas que emprestaram seus nomes ao empreendimento, como Caixa, Correios, Fisk, Rexona, Globo e outros?   Se a organização do evento arrecadou muito, qual a razão de não contratarem experientes atletas profissionais e amadores para, estes sim, determinarem o percurso como um todo, da pré-largada à entrega das medalhas e, finalmente, à dispersão? E que essa Comissão competente fosse de inteiro conhecimento público. Estava a descer dolorido a Brigadeiro e muitos já subiam a Avenida para  pegar, no entorno da Av. Paulista, a condução de volta aos seus lares, muitos desses anônimos bem enlameados.

A São Sivestre sempre primou pela confraternização e alegria. O percurso mais atualizado de 15km dos últimos anos caracterizou-se pela harmonia, com a descida até suave da Avenida da Consolação, sendo a subida da Brigadeiro o trecho paradigmático que, vencido, dava lugar à satisfação plena algumas centenas de metros depois, aos pés da Gazeta. Internautas, através de e-mails incisivos enviados aos provedores, nomeiam a Globo como responsável pela alteração do percurso. Seria possível supor que seja ela uma das maiores interessadas em ver a Av. Paulista livre a partir das 18:00h para a preparação do show da chamada “virada”. Mas não seria a única. Contudo, apesar da organização indicar que a maioria aprovou, não é essa a mostra que nos apresentam alguns dos mais importantes  provedores dos sites: Uol “Participantes reprovam mudanças no trajeto da S. Silvestre” e Terra “Não foram só os corredores amadores que reprovaram a mudança no percurso da Corrida de São Silvestre”. Ambos expõem dezenas e dezenas de comentários de participantes, muitos deles plenos de revolta. Atentemos. Se os organizadores mostram opiniões positivas de alguns vencedores da presente edição da corrida, representam elas, friso, a infinitesimal porcentagem entre o grosso participativo, constituído por atletas amadores. O grande campeão Maílson dos Santos (S. Silvestre 2003, 2005, 2010), a contrapor positivas palavras de alguns vencedores, comenta: “A gente vai avaliar a situação. Foi um percurso muito duro, com muita subida e descida. Estou todo dolorido, então vou tentar recuperar o máximo para treinar para a Maratona de Londres, em abril”.  Damião de Sousa, sétimo colocado na presente edição, comenta: “Estava caindo muita água. Teve um momento em que eu pensei que era um dilúvio. Deu vontade de correr para a calçada. Tive medo na descida de levar um tombo e deslizar. Tinha muita água, então tive que segurar um pouco mais”.

Urge repensar. Poderia essa massa humana majoritária, constituída por milhares de corredores amadores, estar de acordo com o novo trajeto? Teria a organização de se mostrar surda aos apelos da maioria que mantém a S. Sivestre, mediante polpudo preço da inscrição? Não deveriam repensar o término novamente na tradicional Av. Paulista? As justificativas dadas pelos organizadores continuarão a distorcer realidades? O constrangimento e a humilhação por que passaram milhares de corredores, logo depois de transpor a linha de chegada insossa, já não bastariam para ratificar o falhanço do percurso atual? Seria prudente que os organizadores não pensassem em alternativa ao percurso 2011 da S. Silvestre, pois abyssus abyssum invocat, como reza preceito latino, nessa sábia interpretação do abismo chamar outro abismo. Aos responsáveis, reconhecerem o equívoco e restaurar a chegada naquele ponto da tradição, intenso, pleno, da confraternização total. Não voltaram atrás depois do absurdo da prova de 2010, quando entregaram as medalhas junto com o kit, verdadeira blasfêmia para os corredores que têm nesse símbolo de metal a recompensa pelo esforço voluntário e prazeroso? Reparar o erro seria um belo e necessário gesto, pois a experiência vivida no último dia 31 foi para tantos a antítese da essência da prova, congraçamento e alegria.

Aos 73 anos, essa foi minha quarta participação consecutiva. Conheço bem organizações outras que promovem as corridas de rua. Jamais tive algo a reclamar, e lá se vão tantos percursos transpostos. Tencionava, talvez visionarismo, chegar a correr 10 S.Silvestres. Assim como tantos e tantos corredores que buscam a alegria, a confraternização e a qualidade de vida, caso o percurso atual seja mantido, o que provavelmente ocorrerá – quantos não foram os blogs em que apontei que praticamente nada podemos, hélas, contra interesses econômicos poderosos – essa terá sido minha última participação na lendária prova, hoje maculada. Nada que deva  inquietar a organização da São Silvestre. Um corredor da terceira idade entre milhares de tantas faixas etárias! Havia redigido o post quando leio surpreso no site da Midiasport pronunciamento do diretor da Yescom, Thadeus Kassabian. Algumas frases merecem destaque: “Mesmo com a chuva, os atletas aprovaram toda a estrutura oferecida nos 15 quilômetros, incluindo largada e dispersão” (sic); “O temporal não estava nos planos. Seria impossível atender a todos na Avenida Paulista com a chuva e o evento que aconteceria em seguida” (sic); “A área de dispersão para 2012 será ampliada e garantirá ainda mais conforto e infraestrutura aos corredores” (sic) (grifo meu). Saberão os organizadores conseguir, através da ampla divulgação pela mídia daquilo que querem passar ao público, adesões sempre crescentes. Faz parte de nosso Sistema, em que a verdade verdadeira pode ser camuflada. Mas não podem tirar-me o direito de deixar em meu blog o protesto. Arma virtual, imaginária, mas necessária.

The 2011 edition of the St. Sylvester road race, the main event of the Brazilian street race circuit, was held on New Year’s Eve through the hilly, twisting and skyscraper-lined streets of São Paulo with 25.000 participants. The new route of the race made things very hard for nonprofessional runners like me. It now ends after a long, exhausting and steep slope that comes immediately after the long, exhausting and steep climb of Brigadeiro Luis Antonio Av. Afterwards many participants complained against the organizers’ lack of vision, but I managed to complete the 15 kilometers under a steady downpour, despite an inevitable leg pain that still persists for me and probably for thousands of other participants, even after some days of rest.