Após Coimbra, tivemos o lançamento da excelente revista Glosas4 em Lisboa. Tive o grato prazer de conhecer figura emblemática na composição e no pensar em Portugal, António Victorino de Almeida. Conversamos sobre a música de nossos dias. Ao regressar à minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, escreverei sobre os temas tratados em Glosas4, que publicou igualmente um artigo meu sobre o original para piano dessa obra prima que é Canto de Amor e de Morte, de Lopes-Graça. Os jovens editores de Glosas têm profundo respeito pelo conjunto repertorial português do passado ao presente. Dias após, 8 e 9 de Novembro, houve na Academia de Amadores de Música, o Templo de Lopes-Graça e meu lar musical em Lisboa, conferência e recital, respectivamente. Focalizei o espírito de síntese existente em obras de Francisco de Lacerda e Fernando Lopes-Graça, mormente em obras destinadas ao universo lúdico. Neste, ambos recorrem tantas vezes ao cancioneiro português ou à temática de cariz popular, e uma identificação de propósitos se faz presente em autores distanciados no tempo. Victorino de Almeida esteve presente e ofereceu-me um conjunto de suas obras.

O programa do recital, com obras de Francisco de Lacerda, Eurico Carrapatoso e François Servenière, tem tido aceitação acima do usual. Se Lacerda não é ventilado à altura por desconhecimento — ou mesmo descaso — de tantos, apesar de obras excelsas e acolhidas calorosamente pelos ouvintes, Carrapatoso e Servenière, em criações recentes, recebem também generosa atenção. Importa considerar que o público está ávido para receber o passado obliterado por mentes ou o presente, que também tem de ser apresentado amorosamente. Estudar o novo deveria sempre, sine qua non, estar sob a égide da interpretação a mais fidedigna. Trabalhar a obra contemporânea com o desiderato único de mostrá-la ao público com a mesma emoção das composições sedimentadas. Tenho restrições ao fato de tantas criações hodiernas serem apresentadas como uma incumbência, quase que uma concessão do intérprete. Essa atitude fragiliza a comparação com o repertório tradicional, impõe-lhe o rótulo do capitis diminutio, pois não há envolvimento. Entendo que, mesmo se breve, há  necessidade de um tempo de decantação, que restituirá à criação contemporânea as intenções propostas no ato de compor pelo autor.

No dia 10 pela manhã, o encontro com Paulo Guerra,  da RTP – Antena 2, evidenciou a experiência do consagrado entrevistador na condução das perguntas. Entremeando faixas de meu CD, constante do livro publicado pela Universidade de Coimbra, Paulo Guerra não deixou de me “provocar” quanto a essa dedicação à música portuguesa, que data de 1954. Nunca é demais salientar o descaso de alguns pelo repertório musical de Portugal e louvar aqueles que, heroicamente, lutam para a sua ascensão definitiva nos programas de concertos em terras lusíadas. Quando as sociedades de concerto “oferecem” ao público mínima parcela desse repertório, fazem-no por motivos não decididamente claros. Quanto aos pianistas, ainda há fundamental produção portuguesa que continua ignota. Até quando? O mesmo não ocorre no Brasil com a criação qualitativa submersa? A entrevista na Antena2 teve grande repercussão em todo o território português. Em Évora (11) e Lagos (13), após os recitais, ouvintes atentos externaram suas opiniões.

Dessas apresentações escreverei no próximo post, assim como das outras que se seguirão.

Livro e Recital

O tempo é, também ele, um
arquitecto. E um arquitecto
que não se engana.
Siza Vieira

Deu-se, neste último dia 3 de Novembro, o lançamento de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” pela Imprensa da Universidade de Coimbra. À mesa da apresentação estiveram os ilustres Professores Doutores Delfim Ferreira Leão ― Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra―, João Gouveia Monteiro,  os Doutores Ana Alcoforado ― Diretora do Museu Machado de Castro, local do evento ― e César Nogueira.

Às competentes, sábias, mas generosas palavras dos senhores doutores, seguiu-se meu pronunciamento, quando juntei-me ao coro daqueles que, há décadas, insistem nesse crônico desconhecimento que temos ― Portugal e Brasil ― de nossos repertórios e que tão bem foi colocado no prefácio do livro pelo eminente Prof. Dr. Mário Vieira de Carvalho. Causa-me surda tristeza verificar o descaso que se perpetua, em terras brasileiras, com a extraordinária música composta em Portugal. Nada, rigorosamente nada ― salvo raríssimas exceções ― se conhece da música erudita composta em Portugal desde período a anteceder o Descobrimento!!! Tenho a mais absoluta convicção de que, se nas principais salas sofisticadas do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, apinhadas de um público acostumado à mesmice, alguém solicitasse o nome de um compositor português, do barroco à contemporaneidade, um constrangimento sem precedentes pairaria no ar. Se o mesmo acontecer no eixo Lisboa-Porto, porventura alguns lembrarão de Villa-Lobos. E é só. Pobreza absoluta, descaso sem limite. Samba e fado cruzam os oceanos: o primeiro, rumo ao hemisfério norte, em suas múltiplas vertentes levando personagens carimbados; o segundo, nostalgicamente perpetrado por portugueses da diáspora residentes nos trópicos, mas com ouvidos tampados à música de concerto portuguesa. Essa é a vergonhosa situação a que chegamos. Se um intérprete afamado, nascido em um dos nossos países, apresentar-se nessas geografias irmãs, será preferencialmente para desfilar seu talento em repertório sacro-santo consagrado nos países abastados, hoje nem tanto.

Esses conceitos cáusticos percorrem mais de um artigo de meu livro. Contudo, a essência essencial que me moveu a aceitar o generoso convite do Prof. Dr. João Gouveia Monteiro, então Diretor da Imprensa da Universidade de Coimbra, foi o de documentar a incomensurável admiração que já lá se instalou em minha mente e meu coração, desde a década de 50, pela criação musical em Portugal. A cada ano incorporo ao meu repertório obras magistrais portuguesas. Não me canso de fazê-lo, antes, excita-me mergulhar nessas composições. Todavia, pasmo, assisto à passagem dos anos e ao descer do silêncio — salvo exceções, a fim de que as trevas não sejam absolutas — abatendo-se sobre Carlos Seixas, que nada fica a dever ao seu notável contemporâneo Domenico Scarlatti; Francisco de Lacerda, cujas Trente-six histoires pour amuser les enfants d´un artiste são diamantes do maior quilate; Fernando Lopes-Graça, um dos maiores entre os maiores do século XX. Qual sociedade de concerto no Brasil conhece sua obra? Quanto a Portugal, há heróis aqui radicados  que labutam diariamente nessa difusão pequena, pois sem uma guarida maior do Estado, tocando e gravando esses autores mencionados e outros de grande valor. Mas há necessidade de ultrapassar fronteiras, ombrear esse imenso repertório àquele freqüentado no Exterior. Há que se mudar mentalidades: das associações de concerto, que buscam o lucro através de patrocínios e das assinaturas de abonés afortunados; dos intérpretes, que se submetem sem rubor à lei do mercado; do público em geral, que, se refletir com consciência, perceberá que ficou preso na armadilha do marasmo, dela a não saber ou a não querer libertar-se. Para tanto, as sociedades de concerto trazem nomes consagrados e todo o sistema se empobrece culturalmente.

Após a apresentação do livro, houve recital com apresentação de obras do grande compositor açoriano Francisco de Lacerda, mormente as suas Trente-six histoires… A coletânea de Lacerda teve precioso data show preparado pelo competente Prof.Dr.Pedrosa Cardoso, que cuidadosamente soube destacar todas as frases e palavras do insigne músico inseridas em cada peça programática do riquíssimo caderno. A completar o recital, tivemos as composições de dois notáveis autores, que prestaram tributos ao músico açoriano: Eurico Carrapatoso e François Servenière. O numeroso público saudou com raro entusiasmo o repertório apresentado.

A tournée prossegue, e os posts estarão a surgir naturalmente nessa caminhada artística movida pelo ato amoroso.

 

Eurico Carrapatoso e François Servenière

Heureuses dans la peur et dans leur solitude…
Francisco de Lacerda (Epígrafe de Tourterelles – 12ª peça das 36 Histoires…)

Sem norte, sem estrela-guia,
levado pela ventania,
o leve pombo-torcaz
bico azul e peito verde,
na tempestade se perde.
Violeta Figueiredo (O Pombo-torcaz do livro Fala Bicho)

Não poucas vezes abordei a interação que determinados intérpretes têm com os compositores. Obras que jamais seriam pensadas, mas que só caberia ao criador fazê-las vivas e sonoras, surgem do diálogo intérprete-compositor. De um autor competente surgirá preferencialmente a composição competente.  Ao intérprete, se for o caso, tocá-la, tornando-se partícipe de uma fase do resultado. Menciono novamente o excelente Aurelio de la Vega. Após ter eu estreado Homenagem, em 1987, e de ter a obra sido apresentada pelo mundo, da América ao Extremo-Oriente, por outros intérpretes, enviava-me Aurelio programas com dizeres alusivos ao nosso amálgama. Motivo de alegria para o pianista.

Ao pensar na obra mestra para a apresentação deste ano, lembrei-me de projetos anteriores, quando agreguei compositores em torno de um nome fulcral. Comuniquei intenções a François Servenière, da França, e Eurico Carrapatoso, de Portugal, que admiram convictamente a produção de Francisco de Lacerda (1869-1934). Contudo, mostrava a eles que suas  criações deveriam estar, de preferência, no espírito das Trente-Six Histoires pour amuser les enfants d’un artiste, do insigne mestre açoriano. Não poderia supor que minha ideia mais aproximada pudesse estar tão distante das extraordinárias composições recebidas. Quando o talento, o métier e a criatividade imperam, resultados necessariamente são de alta qualidade. Obras rigorosamente surpreendentes chegaram às minhas mãos.

François Servenière, no frontispício das Trois musiques pour endormir les enfants d’un compositeur, observa aos 12 de Maio último: “Desde meu encontro com o pianista brasileiro José Eduardo Martins, via web, em circunstâncias descritas a partir de meu trabalho crítico  sobre a sua discografia internacional – Uma reflexão sobre a discografia do pianista brasileiro José Eduardo Martins -, uma grande amizade nasceu entre nós e materializou-se através de imponente correspondência (circa de 300 páginas até o presente!!!), onde escrevemos livremente e sem barreiras… sobretudo sobre música, assunto inesgotável. Ratificada, através de uma sua encomenda de obra para piano em homenagem ao compositor português Francisco de Lacerda e à sua magnífica criação mundialmente conhecida, Trente- six histoires pour amuser les enfants d’un artiste. Relacionava-se a uma série de recitais em Portugal para Novembro de 2011, oportunidade em que minha peça seria apresentada em primeira audição ao lado daquela obra prima, de Danças de Debussy e de outra obra encomendada a Eurico Carrapatoso, compositor português pelo qual tenho a maior admiração.

A composição encomendada pelo pianista coincidiu com período maravilhoso… e esgotante, pela presença de uma criança de poucos meses em casa, pois Tom tem apenas 16, quando os únicos momentos de descontração são aqueles em que dorme com os punhos fechados. Oportunidade propícia para me associar à homenagem a Francisco de Lacerda e a essa realidade atual de compor músicas para fazer dormir as crianças (não apenas aquelas do compositor), sempre nesse focar o título célebre do músico originário dos Açores que não pode deixar de entusiasmar nesse universo específico para piano, pois conteúdo e títulos das criações lacerdianas são absolutamente geniais”.

O tríptico de Servenière está constituído de Nocturne, Aria e Berceuse. A primeira apreende conteúdos originários do jazz e metamorfoseados no estilo tão original desse notável compositor francês. Entre os vários segmentos que integram a peça, uma seção contrastante intermediária, leggiero e danzante, não estaria a fazer uma uma criativa alusão ao cake-walk tão caro a Debussy quando este visita o universo infantil? Aria (dolce e romantico) apresenta tema cativante sustentado por acordes, e a ter na síncopa e no contratempo elementos que tornam o todo encantador. Na Berceuse, Servenière, antes de apresentá-la, expõe acordes recorrentes e já encontráveis na introdução do Nocturne.

No dia seguinte ao meu recital Lopes-Graça em Tomar, em Maio de 2010, houve um almoço de confraternização em casa do Professor António de Souza, da Canto Firme, Escola de Música padrão. A certa altura, Eurico Carrapatoso, que estivera presente à apresentação, ergue uma taça, a me prometer uma obra para este ano. Passou-se o tempo e, ao fixar o repertório de Lacerda, entrei em contato com o compositor, dizendo-lhe das intenções da homenagem. Da mente criativa de Carrapatoso surgiram as Six Histoires d’Enfants pour amuser un Artiste, baseadas em poemas de Violeta Figueiredo (Fala Bicho. Lisboa, Caminho). O compositor soube captar o conteúdo delicioso das poesias sutis e lúdicas da autora. O raposo, O fax do papagaio, D. abutre e o corvo, pombo- torcaz, O que faz a minhoca e O crocodilo foram as poesias escolhidas. Pede-me o compositor que as leia antes de cada peça. Consegue Carrapatoso criar seis pequenas jóias dedicadas ao universo lúdico. Humor, nostalgia, situações hilariantes estão presentes ao longo da coletânea impecavelmente bem escrita. Em pombo-torcaz, o primeiro segmento tem a descontraída frase “o pianista deve interpretar essa peça como se sentisse no lombo de um dromedário, com um turbante imaginário”. Logo após, uma “dança do ventre da pomba odalisca” em crescendo feérico levará finalmente ao retorno do segmento inicial - com certas modificações -, o jocoso passeio no lombo do dromedário. Ao leitor, transcrevo o inefável O que faz a minhoca, que, em sua simplicidade, atinge o transcendental.

Sem esforço e sem guerra,
minhoca de anéis suaves
faz na terra o que no céu
fazem as aves:
abre espirais incompletas
para todo o sempre secretas.

François Servenière e Eurico Carrapatoso, em França e Portugal,  integram seleto grupo de  compositores que se desviaram das múltiplas tendências atuais que, à la manière de uma Babel, degladiam-se em debates ideológicos, estruturais, tecnológicos, eletroacústicos e tantos outros. Se escreveram outrora obras pertencentes a procedimentos “hodiernos”, encontraram  caminhos que os levam à renovação, sem perder contudo o senso da traditio. Para o intérprete, são momentos mágicos conviver com repertório tão extraordinariamente temático. Francisco de Lacerda e os dois ilustres compositores que o homenageiam constituem o amálgama perfeito, numa belíssima junção que seduz indelevelmente o público que ouve essas composições tão especiais.

On the tributes to Francisco de Lacerda composed by Françoise Servenière and Eurico Carrapatoso. I will premiere both pieces, written in the playful mood of Lacerda’s work, at the recital on November 3 in Coimbra.