Quando o Excesso Provoca a Desatenção

Charge de Luca Vitali. Clique para ampliar

Descobri um novo dia
E espero que o céu mo assuma
É o dia mundial
De coisa nenhuma

Idalete Giga

Recebi um substancioso e-mail de minha querida amiga Idalete Giga, competente professora de Canto Gregoriano em Portugal, acompanhado de duas quadras a partir de versos do grande poeta português Agostinho da Silva (vide A Lembrança do Honoris Causa – Encontro Prazeroso com Ilustre Colega, 13/03/10). Vieram a propósito dessa necessidade imperiosa que o homem tem de buscar sustentação em datas comemorativas que saúdam movimentos sociais, membros da família, profissões, e tudo o mais. O calendário contempla por tradição efemérides religiosas e históricas. Em posts anteriores o tema já foi tratado de maneira focalizada. Entretanto, o primeiro quarteto de Idalete levou-me à reflexão. Após a redação li o texto ao amigo Luca Vitali, que sem dizer nada, enviou-me dias após charge instigante.
No Brasil, tudo é reverenciado em dia específico, mas imediatamente esquecido, mercê de outra efeméride a ser festejada. Faz lembrar o fluxo das vagas do mar, pois a cada onda esquecemo-nos da anterior. Nessas datas, há congraçamento e os meios de comunicação tecem comentários, anunciando-as com certa antecedência. Quando categorias profissionais ou sociais, o contingente que tem seu dia realiza aparatosas reuniões em locais públicos ou privados, premiações ocasionalmente, e seria possível supor que o país é lider mundial em homenagear profissionais e políticos em dias específicos, alguns, frise-se a bem da verdade, comemorados mundialmente. Quando bem planejadas, organizadores aproveitam o “seu dia” para ofertar prêmios, diplomas, placas e medalhas que fazem parte da cultura brasileira, pois habituamo-nos a entendê-las como integrantes das trajetórias e os agraciados são considerados merecedores. As inúmeras entidades buscam, em princípio, prestar justas ou não tão justas reverências. Se certo ou errado, não teríamos parâmetros para emitir juízo de valor, apenas para constatar essa provável liderança de nosso país nesse mister.
Fiquei atento à tão anunciada hora mundial da conscientização de economia de energia, um apagão mundial entre 20,30 e 21,30 horas de um certo dia de Abril. Divulgado profusamente, o tema levou-me às ruas em minha cidade bairro àquela hora, pois fui a pé com minha mulher a um restaurante próximo. Rigorosamente nada aconteceu, a ratificar os dois últimos versos da epígrafe. Quantos não são os dias mundiais ventilados antecipadamente e esquecidos no day after ? Efêmeros como as gotas do orvalho. Estiolam-se no calendário a partir do infinitesimal milionésimo de segundo do dia que está a nascer. E o homem tende a repetir as festividades com a convicção – ou nem tanta – de que valeram as intenções. Há toda uma engrenagem oculta por trás dessas comemorações. Seria impossível para um leigo tentar descrevê-la. Interesses os mais diversos, forças de determinadas tendências que abrigam ideologias ou os mais variados propósitos. O fato é que os mais comemorados dias mundiais ou nacionais fenecem de imediato, mas prolongam-se ainda na mídia por poucas horas, pela necessidade da menção ao acontecido. Logo serão definitivamente esquecidos.
Sob aspecto outro, não seria o Dia Mundial ou Nacional uma fuga da solidão? As pessoas têm essa necessidade de perpetuação, de não se sentirem excluídas, de se congraçarem. A exclusão não acentuaria a solidão? Mesmo nas mais conhecidas entidades de classe, o indivíduo é insondável e a solidão pessoal pode lá estar. O alívio proporcionado pela efêmera festividade de classe ou de ideologia, ao resultar no esquecimento no dia posterior, não seria a certeza de que penetramos cada vez mais acentuadamente no disfarce do ser, uma necessidade de não conhecer o nosso interior, que pode ser até desastroso? Esses dias especiais, ao não terem na grande maioria consequências a seguir, não favorecem ainda mais a debilidade do cidadão? Há beneficiados movidos por outros interesses, pois comemorações requerem planejamento. Firmas especializadas encarregam-se de tornar o todo agradável aos participantes envolvidos no evento privado ou destinado às grandes coletividades. Mas, saliente-se, fugazes horas. Tão logo findas, equipes já estão a desmontar toda a parafernália. Sinto isso durante as corridas de rua. Quando trajetos contêm retornos nas avenidas, para regresso ao marco largada-chegada, passamos por contingente de outros atletas que ainda não contornaram. Quando esse grupo finda, pois já estamos em direção ao final da prova, verdadeiro batalhão de limpadores de rua está a recolher quantidade inusitada de copos de plástico espalhados pelas vias públicas. Uma ou duas horas após, ao se passar pelos locais, não há mais vestígios da corrida da qual participaram milhares de entusiastas atletas, profissionais e amadores. Assim também nos Dias Mundiais. Nada persiste, desaparecem os sinais. Outro Dia Mundial ou Nacional está por vir… Alegremo-nos, mesmo que no lampejo. Apesar do efêmero, Idalete, espiritualista, não deixa de ter lá suas esperanças, e a segunda quadra de seu curto poema trazuziria essa intenção:

Mas o Dia Universal
Aquele a que DEUS assiste
É o Dia Mundial
De Tudo quanto existe

A short poem written by my friend Idalete Giga about the “nothing day” was the origin of this post, a reflection upon the human need to celebrate world days proposed by national and international organizations. People gather together feeling they belong to a group and promote activities intended as fodder for stories and photos that will be forgotten the following day.

Um Longo Entendimento

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Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Eugénio de Andrade

O lançamento de CD pela Academia Brasileira de Música (ABM) deixa-me bem feliz, mormente por tratar-se de homenagem ao nosso maior compositor romântico, Henrique Oswald (1852-1931). Trata-se do terceiro CD dedicado inteiramente ao autor gravado na planura flamenga, sendo que os dois primeiros privilegiaram a obra de câmara com piano e o presente contempla unicamente criações para piano solo (vide site, item Recordings). Gravei-o, como o faço nestes últimos quinze anos, na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, na Bélgica. Foi registrado em dois anos (Fevereiro 2006-2007), pois após o terceiro ou quarto dia de gravação de CD, previsto para lançamento em ano posterior pelo selo De Rode Pomp, aproveitava a disposição sempre solidária de meu dileto amigo, o engenheiro de som Johan Kennivé, e, projeto concluso, deixava serenamente fixadas as mensagens oswaldianas. Denominei a junção dessas peças, que penetraram os microfones instalados em Sint-Hilarius, de O Piano Intimista de Henrique Oswald. Se algumas delas contêm arroubo característico do período, seria contudo o intimismo um dos fundamentos essenciais de Henrique Oswald. No texto que segue, encarte do CD, dedico a gravação à amiga e irmã em tantas intenções, Maria Isabel Oswald Monteiro. Foi ela que, desde o primeiro encontro em 1978, quando iniciei as pesquisas, abriu-me o universo por vezes velado, mas extremamente sensível, de seu avô Henrique (vide Henrique Oswald – Nosso Grande Músico Romântico, 19/10/07). Diários, cartas e manuscritos foram amorosamente percorridos por nossos olhares e captados por nossas mentes e nossos corações. Mensalmente visitava-a no Rio de Janeiro e permanecia em seu apartamento durante dois ou três dias. Foram momentos inefáveis que vivi no convívio do casal Oswald Monteiro. O telefonema que recebi da amiga nonagenária após a recepção do CD ficará gravado em meu de profundis.
O texto que segue acompanha o encarte do CD ora lançado que pode ser encontrado na Academia Brasileira de Música, (www.abmusica.gov.br) e na Loja Clássicos (www.classicos.com.br).

O Piano Intimista de Henrique Oswald

Em seu diário de 1906 e em cartas diversas, Henrique Oswald deixa registrado desencantos motivados pela burocracia à qual sua índole era avessa. Quando em Munique para apresentação camerística, é-Ihe doloroso vislumbrar o retorno à direção do Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, onde ambiente inóspito o aguardava. Aos 54 anos, a maior parte a viver em Florença com a família, a compor e a lecionar, comungando austeridade e sonhos, Oswald evidencia seu distanciamento do aspecto prático do cotidiano. Em relatos pungentes, o compositor faz referência à criação de curto fôlego para piano, refúgio incondicional que encontra para revelar estados de alma.
A segunda metade do século XIX abrigaria com inusitada frequência um gênero musical para piano bem próximo à suíte barroca para teclado praticada entre os séculos XVII e XVIII na Europa. Seria possível supor que uma das causas tenha sido o silêncio do cravo, instrumento banido do currículo do Conservatório de Paris anos após a Revolução Francesa, o que determinaria com naturalidade a transferência de todo um repertório cravístico para o pianoforte e, consequentemente, para o piano moderno. Ter permanecido doravante no repertório dos pianistas e nas salas de aula, mesmo com a soberana forma Sonata a dominar parte do cenário musical, possibilitaria a esse repertório cravístico, praticado unicamente por pianistas, influenciar a criação da pequena peça, a formar coletâneas na primeira metade do século XIX. Talvez tenha havido, como saudosismo, a revisitação à forma suíte na segunda metade do século XIX por compositores de todos os níveis; modificada em sua estrutura, mas a fazer reviver danças e outras categorias de peças frequentadas pelos compositores do século XVIII. Mantinha-se, entretanto, a alternância entre os movimentos rápidos e os mais moderados.
Se a forma Sonata foi utilizada com plena competência por Henrique Oswald e sua obra camerística, orquestral e a destinada a instrumento solista e orquestra comprovam a maestria escritural, se a música sacro-vocal revelaria consistência criativa, se três óperas apresentam-no como um cultor do gênero, seria contudo nas composições para piano solo que o Oswald mais intimista se faria sentir. De sua pena fluem mais de duas centenas de criações para piano, da mais pueril à austeridade das Variações sobre um tema de Barrozo Netto, à virtuosidade dos seis Estudos, do Impromptu op 19 ou da Polonaise op. 34 n° 1, como exemplos. Contudo, seria em duas categorias precisas que o autor de Il Neige mais confessaria musicalmente intenções íntimas. Aquelas destinadas aos primeiros anos de aprendizado pianístico, como Machiette, Bluettes, Miniaturas, às coletâneas em forma de suítes que receberam diversas denominações: Fogli d’album, Feuilles d’album, Álbuns, ou simplesmente conjunto de peças constituindo pequenas coletâneas de três, quatro ou mais composições. Oswald presta tributo ao passado e revisita, tantas vezes, danças caras aos cravistas: Gavota, Minueto, Sarabanda. Se o século XVIII privilegiou para o teclado – mormente em França – titulações descritivas, nem por isso o compositor brasileiro deixa de lembrar-se de imagens que lhe são caras. Oswald sabe introduzir conteúdos românticos essenciais quando está a descrever musicalmente. O Eu que persiste na segunda metade do século XIX, a revelar sentimentos que podem ser exacerbados em outros compositores, tem em Oswald o comedimento, a não impedir a presença do sensível estereotipado, mas sempre intenso. Se pratica amadoristicamente o desenho, o olhar diferenciado transforma o que observa ou sente em sons ou traços.
O domínio da arte de compor é completo. Não há segredo escritural para o romântico Henrique Oswald. Ter vivido na Itália em plena efusão da ópera e das melodias contagiantes teria influenciado o compositor, pois sua inclinação para a melodia que penetra corações é imensa. Sabe o limite dessa comunicação direta, pois em nenhuma de suas criações atinge a banalidade de expressão.

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A escolha do repertório do presente CD obedeceu a critérios que possibilitam a percepção de Henrique Oswald nas várias destinações pianísticas, da simples à complexa. Sob aspecto outro, ao iniciar as pesquisas sobre o compositor em 1978, mercê do apoio incondicional da neta do compositor, Maria Isabel Oswald Monteiro, durante nossos primeiros encontros presenteou-me a dileta amiga com alguns manuscritos autógrafos. Algumas dessas obras constam do CD: Tre Piccoli Pezzi, Berceuse – a mia carissima Madre, Menuetto de Machhiette, Polonaise op. 34 n° 1 e o Estudo-Scherzo de 1902. Bem posteriormente, em 1994, Maria Isabel doaria seu acervo particular à Universidade de São Paulo.
Quando em Florença, Henrique Oswald sente-se atraído pela composição da pequena peça, que viria a atender desideratos precisos. Serviria como material didático, assim como figuraria nas audições de alunos ou serões familiares. Na pena de Oswald flui a peça de curto fôlego com maestria escritural, senso absoluto das proporções nas várias formas e sensibilidade aguda para o melodismo. Machiette (12 Piccoli Pezzi), dividida em quatro cadernos, revela a proximidade com obras primas como Cenas Infantis op. 15, de Schumann. Ambas economizam nos meios, a fim de propósitos específicos. Macchiette não apresenta ênfase a mais, multum in minimo, e tudo lá está, destinado ao encantamento. Os fascículos foram escritos nas fronteiras dos anos 70-80 do século XIX e editados.
As Variações sobre um tema de Barroso Netto datam de 1919. O compositor presta tributo ao amigo, pianista e professor, e constrói uma de suas mais significativas criações para piano. Na maturidade dos 67 anos, Oswald revela rara austeridade, e o sóbrio tema de Barroso Netto conduz a criação oswaldiana a outra possibilidade de reflexão, pois as variações já possibilitam vislumbrar o autor em direção à síntese de procedimentos.
Tre Piccoli Pezzi foram escritas em começos de Junho de 1885. Mais tarde, integrariam a pequena coletânea de seis peças Fogli d’Album op. 3, por mim gravadas em LP lançado pela Funarte em 1982. A presente opção pelas três peças vem do frescor do traço que caracteriza a reunião primeira de Oswald. A segunda miniatura, denominada Romance, terá em Fogli d’Album o título Sognando, e dela o compositor ainda realizaria uma versão para violoncelo e piano.
A pequena Berceuse dedicada à “Mia carissima Madre” data de 22 de Setembro de 1886, data cara à progenitora de Henrique. A singeleza e o mínimo material empregado revelam um profundo sentido expressivo.
Dois dos seis Estudos para piano de Oswald constam do CD. Bem diversificados, apresentam a familiaridade do autor com gênero amplamente sedimentado no século XIX. Terminado aos 23 de Janeiro de 1902, o Scherzo-Étude, verdadeiro perpetuum mobile, foi dedicado à então Mlle. Antonieta Rudge, que se tornaria uma das maiores pianistas de sua época. Obra virtuosística, contrasta com o sóbrio Étude pour la main gauche escrito em fins de Junho 1921 e dedicado à filha do compositor Alberto Nepomuceno, Mlle. Sigried. Após recital que apresentei em Lisboa (26/02/82), inteiramente dedicado a Henrique Oswald, o crítico e musicólogo Humberto d’Ávila, do Diário de Notícias, assim escreve sobre o Estudo: “Se algum dos números em programa fosse de distinguir, bastaria citar o ‘Étude pour Ia main gauche’, de 1921, para se ter a certeza da garra dum compositor capaz de escrever uma das melhores páginas da literatura do gênero.”
Das coletâneas oswaldianas para piano, uma das mais expressivas é a que reúne as Six Pièces. O compositor, em suas obras de curto fôlego destinadas ao instrumento, emprega titulação francesa, italiana ou portuguesa, a partir de fixação geográfica, múltiplas afinidades em determinados períodos, ou mesmo a origem de amigos a quem as peças foram dedicadas. Six Morceux tem todos os títulos em francês. Se Valse, Menuet e Impromptu são mais estereotipadas, o intimismo maior estaria reservado às três peças centrais – Revêrie, Berceuse e Barcarolle. Vladimir Jankélévitch, ao se debruçar sobre as criações de Gabriel Fauré, defende uma posição absolutamente aplicável a Henrique Oswald, “o Fauré brasileiro”, no entender do grande pianista Arthur Rubinstein. Berceuses, Barcarolas e Noturnos pertencem, segundo o filósofo-músico, ao universo do doce ondular. O balanço do berço ou da gôndola e a magia do sonho do Noturno pressupõem inalienável identidade. Oswald, em cada peça do álbum, revela seus segredos sonoros.
Finalizando o CD, a Polonaise op.34 n° 1, cujo manuscrito autógrafo data de 5 de Fevereiro de 1901. Igualmente dedicada à Mlle. Antonieta Rudge, a obra difere das anteriores desta gravação, pois contém elementos pomposos caracterizando a dança tão habitualmente frequentada por compositores, mormente Chopin.
Claude Debussy escreveria sobre seus Études, a dizer que não se pode abordar a maiúscula obra apenas com os dedos preparados. Diria que o mesmo se aplica à obra para piano de Henrique Oswald nesse outro conteúdo essencial, a anima. Sem a relação amorosa com esse piano intimista, tantas vezes coloquial, uma lacuna existirá. O absoluto domínio escritural e a não vinculação com o nacionalismo que emergia deram a Oswald a possibilidade de transferir integralmente para o papel pautado o seu interior, a sua noção do belo pelo belo, sem se importar com a possibilidade da plena divulgação.
Dedico este CD à Maria Isabel Oswald Monteiro, neta do compositor e filha do grande pintor Carlos Oswald. Foi ela que, desde 1978, acreditou nesse resgate que amorosamente nós ambos estivemos a realizar. É com alegria que verificamos que lentamente, uma década após, trabalhos acadêmicos foram surgindo a partir de nosso pioneirismo, o que nos dá a certeza de que Henrique Oswald permanecerá e a execução de sua obra no Brasil e no Exterior tem revelado um dos mais sensíveis compositores do caudaloso movimento romântico.

Clique para ouvir as faixas 2, 23 e 26 do CD “O Piano Intimista de Henrique Oswald”, com José Eduardo Martins ao piano.
Scherzo – Machiette Op.02
Berceuse Op.04 No.04
Polonaise Op.34

Agradável Surpresa em Horário Escolhido

Av. Santo Amaro vista de um ônibus. Traços de John Howard, 1981. Clique para ampliar.

Um dia nossas ruas e avenidas
se tornarão depósito de carros sem destino.

Francisco Osório de Oliveira Freitas Guimarães

O transporte urbano sempre me despertou interesse. É nele que se capta o estágio de um povo. O humor traduzido através das feições. Se majoritários os semblantes descontraídos, tristes, felizes ou resignados, pode-se aferir o momento social daquela população. Estou a me lembrar de comboio entre Potsdam e Berlin, seis meses antes da queda do muro. Nestas duas cidades dei recitais de piano àquela altura. Era visível o desalento, assim como em Sófia no ano de 1996, pois o país, saído há pouco do regime comunista, ainda não se encontrara. Nem por ser Democracia plena observam-se descontração ou alegria em semblantes. Existem índoles de determinados povos. Clima, religião, costumes enraizados favorecem esse estampar nas fisionomias parte do que vai no de profundis. É só querer observar e o livro se abre.
No longínquo 1981, percorria de ônibus o trajeto de minha cidade bairro ao centro, com um amigo, o grafiteiro Johan Howard, e passei a apreender atento seus traços que estavam a brotar em folha de papel durante o percurso. Dizia-me ele que seus olhos fixavam o que lhe causava impacto ou curiosidade, pois jamais uma viagem era igual à qualquer outra precedente.
Reiteradas vezes abordei o tema do transporte coletivo. Nos poucos horários diurnos em que o trânsito flui, é alternativa bem plausível. Nos outros, verdadeiro caos. Quando entendo viável prefiro o transporte urbano à utilização do carro. Evita o aborrecimento dos longos períodos a mudar as marchas em baixa velocidade e dos estacionamentos nem sempre confiáveis. Sob aspecto outro, possibilita a observação do povo e seu humor, do trânsito travado para os veículos particulares e incita-me à leitura. Enfim, tem lá seus prazeres.
Nesses últimos dias tive dois apontamentos em locais diversos. Seriam quatro trajetos em transporte urbano. Resolvi fazê-los. Primeiramente iria ao Shopping Eldorado, na Eusébio Matoso, a fim de retirar o kit da Corrida Circuito das Estações (21 de Março, 10km), e à Polícia Federal na Xavier de Toledo receber meu passaporte. Na minha cidade bairro, às 10hs, peguei um ônibus que percorre a Rua Guararapes e faz a curva à esquerda na Av. Berrini. Lá desci e fui até o comboio que vai do Grajaú a Osasco. Fiquei na terceira parada, Hebráica-Eldorado. Desconhecia esse trajeto. Limpeza na estação, vagão confortável com ar condicionado, verdadeiramente primeiro mundo. Entre as informações transmitidas pelo alto-falante, uma delas insistia na proibição da venda de produtos nas vias e nos comboios. Garantia de ausência de detritos. Disseram-me que nos momentos de pico o transtorno intenso faz esquecer a passividade de horários amenos, pois os comboios vão abarrotados. Apesar de ser exceção, cometeria ledo engano aquele que acreditar ser toda a malha ferroviária urbana dessa qualidade. Problemas que se arrastam há décadas apontam até para o descaso das autoridades. Aplica-se a mesma fórmula para os ônibus da cidade. Em ambos os casos, a agravar a situação, a insegurança, mormente nos transportes da periferia, leva o passageiro a temer diariamente pela vida, tanto pelo estado dos veículos como pela ação de meliantes.

Poucos metros antes do término do Circuito das Estações, 21/03/10 (10km). Foto: MidiaSport. Clique para ampliar.

Ao sair do Shopping peguei o ônibus que leva à Praça Ramos de Azevedo. Passarela a contento, e o veículo bem cheio, o que fez com que viajasse em pé. Jovens sentados ignoram a terceira idade. A um deles, que aparentava boa índole, solicitei que cedesse o lugar a uma senhora idosa. Aquiesceu, felizmente. Curiosamente fiquei a observar nesse longo trajeto as fisionomias das pessoas, pois em pé não é possível a leitura. Havia uma certa descontração e, por vezes, sorrisos dos ocupantes. O motorista, um negro extremamente simpático, era falante. Nomeava cada parada. Aos que entravam com carteiras a exibir fotos, sempre tinha uma resposta pronta. Tudo dito em voz alta. Para as senhoras idosas dizia sempre que, se não estivessem na terceira idade, assim mesmo as deixaria descer pela porta da frente, por serem bonitas. A lisonja servia como alisamento do ego das referidas mulheres e de motivo de risos descontraídos dos outros passageiros. A senhora sentada à minha frente olhou-me a dizer: “O senhor já imaginou se todos fossem assim? Como a vida seria melhor !” Ao chegar no ponto final, o motorista, figura realmente especial, levantou-se e desejou um bom dia a todos, esperando rever seus passageiros. Fiquei a pensar que encontrara um cidadão realmente amante de sua profissão, fato bem raro neste país.
Na Polícia Federal foi tudo muito rápido. A seguir desci as escadas rolantes do metrô Anhangabaú e fui ao terminal de ônibus. Impressionou-me a organização. Um povo enorme e as coisas a funcionarem com certa regularidade. Peguei o Terminal Santo Amaro, previsto para às 11:45. Saiu pontualmente. Sentado, aproveitei finalmente para ler, o que fiz até a chegada em minha parada, às 12:05. Ao todo realizei esse longo trajeto em duas horas e cinco minutos, rigorosamente impossível se tivesse usado meu carro.
Contudo, mercê do rush diário, fizera dias antes de ônibus, a mesma distância Anhangabaú-Campo Belo, com meu amigo maratonista Elson Otake, em duas horas. A todo o momento Elson dizia: “Se estivéssemos correndo já teríamos chegado”. E é a pura verdade, pois o percurso tem 10km. Poucos dias após, realizei essa distância, no Circuito já mencionado, em 01:06:28. Tornou-se cultural, e jovens não cedem seus lugares aos idosos ou mulheres grávidas. Observei que, quando “ameaçados”, fingem dormir. Como partimos do ponto inicial viemos sentados; mas, tão logo cheio o ônibus, Elson cedeu seu lugar a uma senhora da chamada terceira idade. De minha parte tentei por duas vezes fazer o mesmo, mas as passageiras disseram que desceriam logo após.
Todo esse trânsito enlouquecido não seria culpa do desvario da indústria automobilística, a despejar “com euforia” 1000 veículos-dia em São Paulo, e da não preocupação das autoridades com o aumento e alargamento das vias públicas principais? Fatalmente seremos levados ao grande impasse. A nossa malha urbana permanece basicamente a mesma. A indústria automobilística, contudo, só imagina o aumento da produção e do lucro. Não ouço um dirigente de empresa automotiva comentar as dificuldades à vista. Inacreditável ! Orgulham-se dos números crescentes, antecâmara do caos. Mentes esclarecidas, que pregam no deserto, afirmam que, em mais cinco anos São Paulo, trava. Há o metrô, mas em horários de pico pode representar a descida aos infernos. Capitalismo sem freios. Batalhas perdidas por cidadãos que ainda têm vãs ilusões.
Finalizava o post da semana quando se deu a inauguração de mais um extenso segmento do Rodoanel, monumental obra do governo estadual. Há que se louvar esse empreendimento. Desafogará – por quanto tempo? – região adensada de São Paulo. Oxalá, um dia, tenhamos governantes e empresários que entendam célebre frase proferida no início dos anos 70 pelo notável prefeito, engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, que preconizava que São Paulo “precisava parar de crescer”. Chegará esse tempo? As esperanças são mínimas.

On the good and the bad of public transport, its role as a good indicator of a nation’s socioeconomic development, and on the insane increase in the number of private vehicles in São Paulo, a city where the demand for space is already greater than the available road capacity.