Saint-Exupéry e Aspectos Ligados ao Futuro

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La pierre n’a point d’espoir d’être autre chose que pierre.
Mais, de collaborer, elle s’assemble et devient temple.

Saint-Exupéry

Quão impossível se possa prever, o futuro, palavra impregnada de mistério está perene durante toda nossa trajetória. O termo adquire metamorfoses na medida em que o afunilamento etário delimita fronteiras. Mas a palavra se adapta a todas as situações previstas: família, comunidade, profissão e almejos os mais variados. Estamos sempre a delinear projetos de toda a ordem, neles acreditando ou até sonhando, e revés ou desiderato atingido farão parte desse caminhar olhando o passo à frente ou o final da senda. Porvir imediato ou longínquo são salvaguardas para aspirações e aprimoramentos ou, hélas, desejos menos nobres. Faz parte do gênero humano pensar naquilo que virá, esse vir a ser que tantas vezes pode ser obliterado pelo inesperado. E ele acontece sem que o queiramos.
A noção que se tem do futuro é elástica e mais será encolhida à medida que as décadas se acumularem. Outra configuração, essa transcendental, pode dirigir o homem às reflexões espirituais. É absolutamente normal, pois tensões, provocadas pelas vontades de toda ordem nas fases que precedem a idade mais serena, estimulam eflúvios para que o futuro possa acontecer e que intenções se realizem.
Estava a folhear Citadelle, de Saint-Exupéry, obra de constantes visitas, mormente nos momentos voltados à meditação. Há precisões do autor quanto ao tema a envolver o futuro. Ele, que nos voos noturnos nos céus da África do Norte, do Atlântico e da América do Sul, previa sempre chegar bem, a ter como bálsamo a atividade cumprida e as correspondências distribuídas pelas casas e empresas, levando toda espécie de mensagem. Em pleno voo, ao sobrevoar o sul do continente americano, ficava a imaginar guaridas para a correspondência esperada. Visão do alto, a pensar em anseios acalantados em terra. Pensamentos que ocorriam ao piloto escritor quando se aproximava da temível aterrissagem, naqueles tempos históricos em que tantos monomotores soçobraram sem missão cumprida.
Saint-Exupéry entendia que o futuro se constrói. Não haveria em Citadelle a visão do progresso material, esse encaminhamento na busca de um bem-estar sem a presença humanística, responsável e ética. Seu ceticismo quanto à preocupação do homem voltado preferencialmente ao ganho é notório. Há nítida preocupação moral que perpassa Citadelle, obra que teria sido citada como uma Bíblia do século XX. Abundam metáforas nesse reino imaginado por Saint-Exupéry e poder-se-ia considerar tantas delas como verdadeiras parábolas.
Os textos reunidos que compõem a obra têm, inclusive, apesar de não sequenciais, um norteamento seguro. O futuro lá está, exemplificado em vários segmentos, mas a obedecer apreensão humanística. A presença, nesse Império imaginário representado por Citadelle, do velho jardineiro que estava a regar com carinho uma pequena muda de carvalho não transcende expectativas? Ao ser perguntado do porquê de tanta devoção a cuidar de uma árvore que teria lento crescimento, a durar décadas somadas, se a vida estava a se estiolar, o homem respondeu que pensava nas gerações que desfrutariam da sombra do cedro quando crescido. Em outro segmento, nessa alegoria à vida vegetal, Saint-Exupéry observa que “nada significa para ele a primavera que não desenvolveu flores”, numa referencia à ilusão do almejar se não houver a expressão verdadeira do presente, ou ainda na menção a outra árvore que vê crescer pouco a pouco os seus ramos: “De presente em presente a árvore terá crescido e chegará, ciclo concluso, à morte”. Citadelle leva-nos a surpresas, e apreende-se que preparar o futuro nada mais é do que fundamentar o presente, “pois a única invenção verdadeira é a decifração do presente sob seus aspectos incoerentes e sua linguagem contraditória”. E em seu idiomático literário surge a metáfora “criar um navio é exclusivamente fundamentar a rampa em direção ao mar”. Para Saint-Exupéry, sonhar o amanhã pode implicar antevê-lo sem bases concretas, o que levaria ao equívoco: “ O futuro não se pode prever, mas permitir”. Ou ainda, recorrente: “Construir o futuro é construir o presente. É criar um desejo pertinente ao hoje. Que é hoje em direção ao amanhã.” Estar focalizado no presente destrói a antevisão que poderia configurar o sonho, a idealização sem bases, a vontade sem esforço. Esse presente de que nos fala Saint-Exupéry não seria o stress preocupante em direção ao amanhã perturbado, mas a construção pedra por pedra, que se realiza no hoje “O passado é irreparável, mas o presente nos é apresentado como material a granel aos pés do construtor. Compete a você forjar o futuro”.
Através de constantes imagens, muitas delas repetitivas, mas sob outra vestimenta, Saint-Exupéry constrói e solidifica seu pensamento. Explicam seus escritos a insistência da pedra que, trabalhada, tornar-se-á templo, da semente que será cedro. Essas metáforas servem à explicação de seu edificar um mundo responsável, amoroso e solidário.
No reino imaginado por Saint-Exupéry não há acolhida para o pragmatismo voltado à exatidão dos números, a geometria a serviço da construção sem fervor, o general que entende a guerra pela guerra. O futuro idealizado com alicerces no presente consciente, mas não direcionado ao determinismo imediatista do amanhã, revaloriza o estado do homem, posiciona-o como ente a entender o desenvolvimento natural em direção ao aperfeiçoamento. O ser humano e seus valores, preocupação constante do autor. Esse futuro entranhado no presente estabelece a relação que liga o homem a Deus. Valores como a família – prioritário –, o semelhante, a profissão amorosa, a casa onde tudo acontece e a comunidade como entidade onde todos devem ser responsáveis. A responsabilidade como respiração. Cresce o homem. A grandeza se edifica lentamente, e a força e o fervor, concentrados nesse dia a dia com pleno sentido, estabelecerão as bases em que o futuro será consequência. Se o inesperado acontecer, a obliterar aspirações, haverá outro comungante a levar o estandarte. A metáfora dos galhos de uma árvore, tema caro ao autor de Vol de Nuit.
Poder-se-ia pensar em utopia. Tantas décadas se passaram após Citadelle e vê-se que o homem permanece basicamente voltado aos seus princípios egoístas e direcionados à auto satisfação. A legião operante e trabalhadora continua à mercê de interesses de uma minoria. Pensar o futuro? Infelizmente, parte considerável dos povos mal pode “prever” o presente, mas os poderosos, tantas vezes em ligações espúrias lobby-empresa-poder, levam àqueles que ainda acreditam o gosto amargo ao ver o homem, que deveria ter como aspiração maior a semelhança com Deus, corrompido em suas entranhas. Todas as decorrentes quedas em direção ao abismo mostrar-se-ão evidentes. Todo o mal estará perpetrado. E a degradação do planeta, nesse permanente, denunciador e lamentável day after ocorrido pós Kyoto e Kopenhagen, persistirá, pois os poderosos teimaram e teimam em não ouvir os lamentos da Terra. E o planeta reage nos limites da agonia. Não foram as desmesuradas enchentes que invadiram São Paulo nestes dois últimos meses, a imprevisão do amanhã? A incúria de governantes e empresários gananciosos não seria a causadora de desordenada construção de prédios cada vez mais altos – lucros igualmente – e da incorporação de cerca de 1.000 carros novos à frota da cidade, diariamente? Ouvi há poucos dias especialista na área viária dizer que, em determinadas horas, não mais se vê asfalto num sobrevoo sobre a urbe, apenas um mar de tetos metálicos, em alusão aos carros que trafegam, ou tentam fazê-lo, ao menos.
Aos que acreditam na integridade do homem, o tempo que está por vir alicerçado no presente poderá ser menos caótico, na medida em que consciências ajam em defesa de um Bem que o Sistema tenta sempre escamotear, a confundir as mentes. Futuro, está ele aí, no amanhã que poderá apresentar, ao alvorecer, a luz de um céu de esperanças – oxalá isso ocorra. Em metáfora outra, a sombria manhã sem brilho, apenas a mostrar no cerceamento de nuvens e terra sem luminosidade, a névoa das poluições físicas e, sobretudo, morais.

Worried about the future and about our planet at risk thanks to men’s greed for power and wealth, I took refuge in Saint-Exupéry’s masterpiece Citadelle (The Wisdom of the Sands), in which he demonstrates his personal philosophy, stressing the importance of individual responsibility and moral soundness as our only safeguard for the future.

Quando mensagem tem guarida

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Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.

Edmundo Bettencourt

A carta ao jovem pianista (vide post de 13/02/10) propiciou número inusitado de acessos. Muitos leitores se interessaram pela problemática do amadurecimento artístico. Friso sempre que a idade não significa aprioristicamente status mais adequado para que a compreensão se dê. Se vícios adquiridos em quaisquer atividades artísticas se enraizarem, natural supor que eles recrudesçam com o decorrer do tempo, o que compromete o aprimoramento. Não obstante, se houver equilíbrio no todo de um desenvolvimento, certamente o amadurecer será fato real.
Após a publicação do blog, o jovem respondeu-me e, dias após, inseri no post a missiva eletrônica por ele enviada. Outras mensagens chegaram ao meu correio eletrônico e seis, entre inúmeras significativas considerações de leitores, transcrevo a seguir.
Um dos maiores músicos brasileiros, Roberto Duarte, regente e pesquisador, gravou inúmeros CDs no Leste da Europa contendo a obra sinfônica de Villa-Lobos. Escreveu-me a relatar sua arguta compreenção desse ato mágico, a gravação competente: “Notas na pauta, ritmos assinalados, sinais de agógica, indicações de dinâmica e instruções para a execução não bastam para que uma música exista. Falta o elemento básico: o som. Sem ele tudo aquilo que está ali escrito será apenas um lembrete, uma representação muda e sem vida do que aquela obra de arte poderá ser. Para produzir o som é necessária a figura, a presença do intérprete cantor, instrumentista ou regente. É o mediador. Sua posição, extremamente importante, entre o compositor, através da partitura (texto musical escrito), e o ouvinte (público) é difícil e delicada. Torna-se cada vez mais complexa à medida que o autor e o intérprete se distanciam no espaço e no tempo. O significado dos sinais gráficos vai se alterando com o passar das décadas e aos poucos esses sinais vão perdendo o sentido original. O artista é obrigado a um estudo cada vez mais profundo sobre a maneira de escrever dos diferentes compositores e das diversas épocas em que as obras foram criadas.
As coisas se complicam ainda mais quando o intérprete moderno (dos últimos 50 anos, pelo menos) entra em um estúdio de gravação para perpetuar as suas interpretações. É uma enorme responsabilidade, mesmo para um artista experiente. Hoje, com a fantástica difusão da internet em todas as camadas da sociedade, ouve-se de tudo: desde os grande mestres do passado até aos inconsequentes jovens talentosos, mas sem o devido preparo que se lançam ao mundo de forma completamente impensada”.
Da Califórnia (U.S.A), o leitor Paulo de Matos Machado demonstra a extensão do tema. Escreve: “Soube dos blogs do senhor professor através de um amigo que vive em São Miguel nos Açores. Dizia-me lá ele que está a ler seus textos desde o ano que passou. Acompanhei o conselho e tenho seguido semanalmente a diversidade dos posts do senhor professor. Calou-me muito ‘Carta a um Jovem Pianista’, pois o senhor professor transmite ao novel artista toda a experiência vivida, inclusive a comentar ocorrências não muito alvissareiras. Reporto-me à investida dos mosquitos durante gravações e a ganância de colega que não teve a decantação que se faz necessária para um amadurecer, a trocar a exatidão pela pressa em ‘aprender’ material para registo de Lp em apenas três dias ! O texto acabou por ser a resposta ao questionamento interior que me faço ultimamente sobre a decantada ‘idade madura.’ Acompanho integralmente o posicionamento do senhor professor quando pormenoriza a qualidade como meta maior a ser atingida, a única na verdade. Numa visão mais pragmática, ao mencionar gravações sem zelo, talvez mais não pretendesse o senhor professor do que alertar gerações em todas as áreas do conhecer. Quero parabenizar o senhor professor Martins pelos ensinamentos transmitidos”.
Idalete Giga, professora e regente coral, especialista em canto gregoriano envia-me e-mail de Lisboa, a pormenorizar a qualidade da epígrafe escolhida e a problemática do YouTube: “Quanto à ‘Carta a um Jovem Pianista – A qualidade como Destino’ a quadra do querido e saudoso Prof. Agostinho da Silva, a coroar o texto, é a síntese das sínteses do maior Tratado de Filosofia ! Que lucidez, que sabedoria ela contém ! Olhe esta, também de Agostinho da Silva, que é um hino à humildade: Descobri um novo título/ E espero que o céu mo assuma/ É ser Honoris Causa/ Em coisa nenhuma. A pintura de Deleener vem completar a quadra de Agostinho da Silva: mas vejo mais do que via/ E sonho mais que sonhava… Infelizmente, o YouTube transformou-se numa espécie de Feira da Ladra, onde aparecem pequenas preciosidades ao lado de montes de lixo. Para os jovens que ainda pulam muito e saltam muito, mas pouco vêem e menos sonham, o YouTube é uma miragem”.
De Belo Horizonte escreve-me a professora e juíza Mônica Sette Lopes: “Meu caro amigo, gostei imenso do post de hoje, por várias razões. Porque fala do tempo e de como ele nos constrói, porque fala do que é importante, dos rastros que se deve deixar, porque fala da nossa relação com os mais jovens.”
Rosana Costa, de São Paulo, comenta: “Quando você diz: A vaidade humana é incomensurável; toca-me profundamente, pois tenho notado o quanto uns se julgam superiores ao outros, a mania de subjulgar a capacidade alheia. Sua delicadeza em dizer ao Jovem Pianista que não podemos ‘atropelar’ o tempo, há sabores que necessitam do processo de maturação, o tempo sempre sábio, embora a nossa impaciência teime em querer burlar a sabedoria do mesmo”.
José Bezerra Medeiros, de Pernambuco, tem visão cética, e considera que as: “… atividades culturais dependem de um complexo envolvendo economia, estágio da sociedade, saúde e formação do povo. A cada dia, crescentemente, a massa dirigida perde o contato com o passado. Discutir qualidade não seria elitismo? Muitos dos jovens que ouvem ‘música’ imediata, mas esquecida depois de nova gritaria de sucesso, tomam sua água de coco, fumam sua maconha, fazem sexo livre, cobrem o corpo com tatuagens extravagantes e se vestem como maus palhaços. O cidadão que vê notícias sobre manifestações coletivas desse tipo de música percebe a total alienação desse povo. Professor, esse povo que vai a todo show com a participação de ‘cantores’ berrantes não pensa nem no passado e nem na qualidade. É só o presente alienado que provoca adrenalina nesse mundão de gente, e parte do povão alucinado saiu da universidade ou ainda continua nela. O Professor luta e acredita. Eu não creio em mais nada. Estamos indo para o caos dos costumes. Essa é a realidade”.
Outros mais abordaram o fulcral amadurecimento; a incógnita quanto ao tempo em que ele ocorre e se sedimenta; as cargas de toda ordem que acompanham o amadurecer; os frutos consequentes; o aprimoramento espiritual que pode surgir, a levar ao recolhimento individual sem contato com o exterior. Neste último caso, foram citados eremitas, anacoretas, carmelitas, trapistas, budistas e tantos outros, que intensificam a prática do auto conhecimento e a comunicação por meio da prece com o Poder Maior. Tornou-se evidente que as mensagens concentraram-se preferencialmente nessa busca incessante do aprofundamento, e a gravação, que foi motivo central, motivou tantas interessantes observações dela derivadas.

Many readers of my last post (Letter to a Young Pianist) deemed it noteworthy and wrote me to share their thoughts on the subject. I selected only a few of such messages – for space reasons – and they are the post of this week.

Abrir a Mente para Poder Compreendê-lo

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Desenho de Luca Vitali a partir do livro Ultime Lettere di Jacopo Ortis de Ugo Foscolo. Clique para ampliar.

Le tombe non giovane ai morti,
perché non restituiscono la vita.
L’aldilà non esiste….

Ugo Foscolo (I Sepolcri)

Estava a tomar um curto com velho e dileto amigo. Cláudio Giordano é editor. Presidente da Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, doou toda a coleção, constituída de livros, jornais e revistas (circa 30.000), à UNICAMP, que a acolheu em sua Biblioteca Central. Generosidade, altruísmo e amor à atividade marcam a sua existência. Editou três de meus livros. Na conversa sempre enriquecedora com Giordano surgiu o nome do escritor italiano Edmondo de Amicis (1846-1908), o célebre autor de Cuore, que encantou gerações. Na juventude, ambos lemos a preciosa obra e nunca mais a esquecemos. Igualmente perdemos o contato com o livro primeiro, percorrido com quase devoção. Extravios ou destruições? Não soubemos dizer. A permanência de um livro pode ter motivos tão díspares…
Giordano, em suas andanças por alfarrábicos da cidade, encontrara edições da obra em italiano e em português, e presenteou o amigo. Já estou a reler, movido por nostálgico prazer, após mais de meio século de uma primeira visita. Será motivo de blog futuro. Regalou-me ainda Giordano com A Voz de um Livro, do autor de Cuore, em que de Amicis narra a saga de um livro e as inúmeras mãos por que passou ao longo de sua existência. Causou o artigo profundo impacto em Giordano, que o traduziu para o português (Revista Bibliográfica e Cultural, Julho 2000, nº 2, pgs. 20-25). Tive a mesma reação frente às elucubrações contidas na narrativa. Escrevi o post a comentar o hipnótico, longo e instigante A Voz de um Livro. Em curto posterior, no mesmo lugar, li o presente texto ao amigo e artista plástico Luca Vitali, que igualmente emocionou-se. E surgiria em sua mente criativa a imagem a ilustrar o post da semana.
De Amicis, ao ter em mãos um exemplar da 1ª edição de Ultime Lettere di Jacopo Ortis, romance epistolar do escritor e poeta italiano Ugo Foscolo (1778-1827), cria um interessantíssimo texto a partir daquilo que ele denomina “singularíssima alucinação”. O livro ganha nesse devaneio estranhas formas, e aparências humanas de expressão, como rosto, olhos, boca, dimensionam-se na imaginação de De Amicis. Adquire vida e o exemplar, agora personagem, conta sua saga. O autor escreve, a anteceder o resultado da alucinação: “Existe coisa inanimada – afora a foto de nossos semelhantes – que nos possa dar tal ilusão melhor do que um livro?” O calvário se inicia em 1802, logo após o nascimento da edição de Foscolo, e prosseguirá décadas após a morte do criador de Jacopo Ortis. O autor de Cuore segue os caminhos tortuosos a que foi submetido o livro nas suas mais variadas moradas. A sua permanência, essa “coisa inanimada”, pode merecer carinho ou desprezo daquele que o possui, mas tantas vezes desconhecemos sua trajetória. Penetrar nesse mundo imaginário, mas a conviver conosco, sugere outras elucubrações.
No desenrolar da narrativa, o exemplar passa pela leitura de amigas de senhora piemontesa que o adquirira. Prossegue, mais tarde, nas mãos de Comissário austríaco que fazia inspeção na casa da adquirente e viverá, após, sete anos em estante. Ao morrer a senhora, seu irmão leva o espólio, e o livro sentirá a censura de um padre, permanecendo recluso “com outros livros excomungados, em um cubículo morto”. Lido, posteriormente, por soldados na Guerra da Criméia. A seguir “ fui molhado pelas águas do Mar Egeu, a bordo do navio inglês que transportou o 4º Regimento Provisório da Divisão de Alexandre Lamarmora”; esteve em tendas turcas onde grassava a cólera; amargaria em hospital; um dono seu foi morto na batalha de Cernaia. Seria vendido posteriormente a “revendedor que tinha banca na Praça Castelo. Lá fiquei vários meses, exposto ao sol e ao vento, banhado às vezes por chuvas inesperadas, aberto e manuseado por centenas de ociosos”. O drama continua e um comprador “jovem, pobre e triste” o leva, mas o infortunado teria como destino o suicídio, e gotas de sangue respingaram sobre o exemplar. Foi ter a seguir a um Gabinete de Leitura “com taxa de dez soldos mensais e eu, marcado com um número como objeto de bazar, passei de sócio a sócio; no bolso de um deles, que fugia, fui desmantelado por uma bala dos carabineiros, no funesto tumulto da Praça Castelo pela Convenção de Setembro”. Em 1864 vai ter às mãos de açougueiro, que o mantém durante sete anos em caixote. O que segue tem aguçado humor: “Em 1871, soando na boca de todos o nome de Foscolo, por causa da remoção de suas cinzas para Santa Cruz, o açougueiro me retirou do sepulcro e me deu de presente ao dono de sua casa, que era um velho bibliófilo. Este me dedicou grandes cuidados, fazendo crer aos amigos que as marcações de algumas frases minhas eram do punho do meu autor. Depois de sua morte, por uma série de empréstimos, presenteamentos e trocas, passei de um professor a um advogado, a um estudante, a um dono de pensão, a uma atriz dramática e, por fim, a uma criada romântica, que me trocou por Mon voisin Raymond, de Paul de Kock, com um revendedor da Porta Palazzo, onde você me encontrou sobre uma esteira estendida no chão, entre uma antiga espada da Guarda Nacional e um São Roque de terracota. Eis a minha história de cento e cinco anos, desde o Consulado de Napoleão até o Reinado de Vitor Emanuel III. Meu autor tinha 28 anos quando vim à luz e há oitenta anos está sepultado! Mas, o meu fim também se aproxima, como você vê.”
Após a exposição da saga geográfica, De Amicis percebe a boca aludida reabrir-se, e uma segunda etapa, introspectiva, a penetrar o âmago das percepções, é revelada: “Quantas coisas não vi ! Nada há mais respeitado e mais maltratado no mundo do que um livro”. O exemplar narra essas apreensões, que se estendem desde estar presente em bibliotecas arrumadas e envidraçadas até aquelas onde os escaninhos imundos fizeram-no estar misturado a trapos e teias de aranha. Se pessoas respeitadas trataram-no bem, outros o usaram para apagar velas, espantar insetos, pregar tachinhas, cobrir cafeteira e até servir como raquete em folguedo infantil. Torna-se de vivo interesse a descrição do autor a respeito de marcadores. O exemplar do livro Jacopo Ortis revelaria que fitas douradas, espátulas artísticas, chaves enferrujadas e palha de cigarro serviram de sinalizadores para o estágio da leitura, assim como lágrimas vertidas, fios de barba, rapé de nariz caíram sobre páginas indefesas de maneira aleatória. A contrapor, cabelos de belas jovens permaneceram “e adormeci na tepidez perfumada de seus travesseiros”.
Descreve conformado a qualidade de outros leitores. Daqueles interessados que chegavam à emoção, aos que percorriam o livro sem quaisquer reações fisionômicas, aos indiferentes que abandonam a leitura, ou até aos que o lêem para provocar o sono deixando-o cair, o que o obrigou a dormir ao lado de chinelos e sapatos. Bilhetes e fotos tantas e tantas vezes estiveram entre suas páginas. Nesse passar de mãos em mãos, o exemplar fala dos “carregadores que me encaixotaram para mudanças; encadernadores que me deram vestes novas. Três vezes mudei de revestimento; três vezes fui desfeito, refeito, costurado, colado, dourado e devolvido rejuvenescido aos meus donos.”
O exemplar não deixa de comentar sua vizinhança em tantas estantes: “Quantos e quão diversos vizinhos tive ao longo da vida! Em estantes organizadas por ordem alfabética, estive entre Fedro e Franklin” e outros mais com a letra F. Em outra organização, essa familiar, cercou-se de diversas outras obras de Foscoli, “outros filhos de meu pai”. Sob contexto diferente, esteve ao lado de “grossos volumes austeros, revestidos de pergaminho, tratados de moral e teologia com mais de cem anos de idade, os quais, percebendo quem eu era e as aventuras que vivera, trataram-me como malfeitor e vagabundo. Tinham mais de um século, mas estavam mais conservados do que eu; há tempos imemoriais ninguém os abrira, eu vivera, vira e conhecera mais mundos em cinquenta anos do que eles em trezentos, e sentia-me mais velho, mais cansado, mais próximo da morte do que eles”.
Um outro aspecto curioso nesse segmento refere-se ao tratamento dado às páginas, antes imaculadas. O exemplar, através de seu escriba De Amicis, considera que ninguém ousava escrever sobre suas páginas nos primeiros anos. Com o tempo, passaram a fazer anotações a lápis ou a caneta e todo tipo de comentário surgiu, dos elogiosos às injúrias contra a obra. E profeticamente “Serão estes os juízos definitivos do porvir? Não posso acreditar nisso. Mudou o coração humano ou a linguagem da paixão? Que língua se fala hoje aos homens para comovê-los? Que estranha reviravolta ocorreu nos ânimos e nas idéias para que aquilo que comovia profundamente a geração em que nasci deixe frios ou faça sorrir ou irrite os leitores dos novos tempos? Pode então estar sujeita uma obra de talento, em sua beleza e em sua eficácia, à mesma decadência a que estão condenadas a substância e a forma em que essa obra se materializou? Vede a que estou reduzido ! Que miséria e que tristeza !”
É o autor que, ao sair temporariamento do devaneio, considera o estado do exemplar de Jacopo Ortis de Ugo Foscoli: “De fato, nenhuma coisa inanimada é mais triste de se ver do que um livro estragado pelo tempo e pelo abandono…”. Com amargor menciona as vicissitudes a que foi submetido o livro, no mais profundo estado valetudinário. Moscas, traças e ratos, pó e umidade deixaram suas marcas. Manchas de toda ordem, “páginas inteiramente amareladas como faces de ictéricos”, dobras em outras folhas, furos provocados por cigarros, tintas várias, remendos grotescos por todo o livro e páginas “que se soltaram, foram enquadradas em papel mais branco, de sorte que têm a aparência de rostos de feridos, enfaixados com uma tira de pano, que cobre o crânio e ata-se sob o queixo”. E continua: “A capa de papelão soltou-se do volume como couraça desprendida; há páginas pela metade: alguns cadernos não se prendem aos demais senão por um fio frouxo, como se prende ainda ao tronco por um nervo um braço amputado”.
No epílogo do texto, um diálogo sombrio se produz entre De Amicis e o exemplar. “Estou no fim – suspirou”. A cada alento do autor de Cuore, o livro responde ceticamente. Não acredita na perenidade e à afirmação de De Amicis “Mas existem irmãos imortais. As odes, os sonetos, I sepolcri renascerão eternamente”, a voz do livro responde “Não. Também esses acabarão destruídos um dia, sem deixar sucessores, e os últimos não serão mais compreendidos”. À insistência do autor em buscar uma luz de esperança, “Que seja para os teus irmãos, mas os filhos dos supremos entre os supremos, pouquíssimos ao longo dos séculos, apenas os que se possam nomear num só fôlego, salvar-se-ão”, combalido, o livro responde com voz ainda mais distante “Nenhum”. E, com ironia e compaixão, ainda diria “Só resta resignar-se, meu caro”. A servir de reflexão, De Amicis ouve voz bem fraca que advém de uma livraria “À infinita vaidade de tudo”.
O texto de Edmundo De Amicis ultrapassa gerações. A tecnologia que levou às fotocópias e à internet, que tudo revela instantaneamente, não teria provocado abalo crucial no culto ao livro? Perdurariam o afeto mantido pelos livros e suas moradas, as estantes a abrigá-los, perpetrado por gerações precedentes e o entusiamo evidente a cada novo tomo ou compêndio que vinha somar ao que era percorrido avidamente pelos olhos? Parcela imensa dos que nasceram nessas últimas décadas não estaria fixada na rica informação que a internet oferece, mas geralmente esquecida após consultas feitas? A biblioteca física, amorosa, que permanece e que um dia é transferida para destinos vários, não teria perdido para legiões a aura do conhecimento a ser retido pela razão, coração e fisicamente? Não perde o homem uma raiz essencial? Àqueles que ainda acreditam, o texto sombrio e profético de De Amicis apenas ratifica afeições. Para tantos outros, um texto perdido no tempo. Prefiro ainda ter lá minhas nostálgicas esperanças, à la manière do cronista português António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios”.