A Qualidade como Destino

H.Deleener. Técnica mista. Clique para ampliar

Não corro como corria
nem salto como saltava
mas vejo mais do que via
e sonho mais que sonhava

Agostinho da Silva

Estava para colocar o post da semana, a abordar o instigante texto A Voz de um Livro, de Edmundo De Amicis, quando respondi a um e-mail de promissor pianista que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente. Ao reler o que acabara de escrever, optei por publicar os comentários sobre A Voz… na semana vindoura. Torno pública a carta eletrônica endereçada ao jovem, guardando o anonimato do remetente que estará a ler via blog.
O pianista em formação escreveu-me a dizer que colocara no YouTube gravações a apresentar suas performances. Dias após, dele recebi nova mensagem: “Quero informar que retirei do ar os clipes que havia postado no youtube.com. Decidi esperar mais um tempo e postar vídeos com qualidade mais perfeita.” A notícia fez-me lembrar situações que diariamente afligem jovens aspirantes idealistas, mas também outros, estes, irresponsáveis.

Meu jovem pianista,
O seu e-mail levou-me à reflexão. Inicialmente, acredito que você agiu bem ao retirar os vídeos do YouTube. Tem o amigo consciência do que deve ser preservado. É sinal evidente de que o jovem pianista promete ser um músico que não desmerecerá a atividade. Se de um lado há gravações extraordinárias e históricas de tantos intérpretes que permanecem como parâmetros, há também muito entulho nesse veículo de tão grande acesso. Tudo lá está. O bem e o mal sem fronteiras. O bem lá está a causar admiração, o mal também, mas a desvelar o encantamento único do irresponsável que se permitiu auto promover. Com que fim? A vaidade humana é incomensurável, meu jovem. Sob outra égide, para muitos daqueles que vêm e ouvem, público tantas vezes sem convicções precisas, essa mistura sem amálgama possível entre o que tem valor e o absoluto amadorismo passa desapercebida. E todo o mal está feito. O YouTube presta serviço inestimável ao ter em sua listagem interpretações extraordinárias, mas também um desserviço abominável quando permite a inclusão de qualquer “produto” voltado à “performance”.
O fato de deixar registros de áudio ou imagem pode camuflar um tipo comportamental que nem sempre é salutar. Li inúmeros relatos de grandes intérpretes que se arrependeram de gravações realizadas na juventude. Entenda o meu jovem amigo que nem sempre isso acontece. Há precocidades, e aí estão tantos compositores que produziram na mocidade obras definitivas, ou intérpretes que não conseguiram mais tarde as performances impecáveis do início da carreira. Mas também há incontáveis músicos que gravaram extraordinariamente do começo da atividade às fronteiras da desativação. Existem, pois, nuances quanto ao tema. Contudo, frise-se, não por outro motivo, a idade madura – seja em qual período, a abranger aproximadamente uma ou duas décadas após os quarenta anos – leva à conscientização do que deve ser levado à definitiva captação dos sons representada pela gravação. Lembre-se, ela não permite o retorno, pois representa aquilo que o intérprete transmite e deverá permanecer assim.
Estou a me lembrar dos anos 80. Gravei “historicamente” alguns LPs para a Funarte, Basf e Studio, a preservar a obra camerística e para piano solo de Henrique Oswald que estava a estudar. Momento até heróico, em que aceitei pianos em condições razoáveis, tecnologia difícil, estúdios ou salas com problemas – em um deles, durante gravações, fui devorado por pernilongos. Fez parte de minha vida. Diria que aconteceu na juventude da idade madura, pois estava lá eu com os meus quarenta e poucos anos e as gravações atendiam a período preciso, quando não faltava a determinação de apreender esse aspecto de resgate histórico.
O tempo passou. Dessas gravações não tenho saudades e nem mais as ouço, apesar de históricas, mercê das importantes obras. Deixei o tempo passar e apenas na fronteira dos sessenta anos comecei a deixar as pegadas que, entendo, mereceriam ficar registradas. O Diretor da De Rode Pomp da Bélgica, após um recital meu em Gent, disse-me que deveria começar a fixar a minha herança musical. A casa tem selo seletivo com pouquíssima tiragem, mas muito conceituada em meio específico musical. Entre gravações na Bélgica e outras na Bulgária e Portugal, lá estão 20 CDs.
Em que condições aconteceram as gravações, poderia meu jovem amigo questionar? Responderia em compartimentos. Possivelmente, a idade madura tenha proporcionado um tipo de aferição quanto à necessidade da impecabilidade em todos os sentidos – perfeição é sempre inatingível –, a obedecer os limites individuais. Há que se ter consciência plena do estágio em que as obras se situam, do repertório escolhido e das condições as melhores, a fim de que a comunhão se dê. Torna-se evidente que nem sempre o ambiente ideal de gravação é obtido. Não obstante o fato, algo deve ser preciso, ou seja, a busca pela qualidade. Essa se consegue através de denodo, disciplina e afeto em relação às obras que serão gravadas.
Estou a me lembrar de colega, pianista de méritos incontestáveis, que na década de 70 me disse que estudara três dias obras que seriam gravadas na manhã seguinte à nossa conversa. Possuidor de uma leitura absoluta, questionado por mim, respondeu-me que interesses financeiros obrigaram-no a tal façanha. Torna-se evidente que o pianista, que gravou no Exterior CDs referenciais, cedera às pressões. É aí que reside uma das encruzilhadas da atividade pianística. A concessão tem seu preço, e este é amargo ao longo da trajetória. Se você pingar uma gota de material líquido agressivo no mais requintado vinho em envelhecimento num tonel de carvalho, ele estará estragado por completo. Devemos ter sempre em mente a qualidade, pois o trigo não pode confundir-se com o joio.
De minha parte, meu jovem colega, encontrei o lugar de meus sonhos, que poderá muito bem não ser aquele de outros intérpretes. Temos de ter empatias. Um estúdio será sempre um estúdio, um teatro igualmente permanecerá a cena onde o espetáculo se dá. O local onde gravo, perdido na planura flamenga, é uma capela do século XI. Já escrevi vários textos sobre Sint-Hilarius ao longo destes três anos . O piano Steinway, vindo diretamente de Hamburgo, representa o que uma Ferrari Fórmula 1 pode significar para um corredor. Colocado em baixo da torre de pedra, sob as lápides de eclesiásticos e nobres sepultados desde o início do milênio anterior, funde-se nesse amálgama físico e espiritual com as milenares pedras irregulares. Desde o cantochão até as gravações atuais, Sint-Hilarius lá está a abrigar sons dos intérpretes. Nós passaremos, mas a capela deverá continuar a ouvir tantos outros instrumentisatas e generosamente oferecer-lhe as ressonâncias. Serve para reflexão sobre a temporalidade do intérprete. A ilusão do canto das sereias. Num aspecto outro, Johan Kennivé, engenheiro de som e psiquiatra, é um dos mais importantes da Europa e sabe cuidar de maneira impecável de toda a tomada de som. Nosso relacionamento estende-se para lá de uma década, e cada projeto recebe o carinho necessário. Tornou-se amigo diletíssimo, a captar sons e reações que surgem durante as gravações.
Cada músico tem seus propósitos. Por eles será responsável. Cabe ao indivíduo encontrar o seu caminho. A única coisa que não se pode trair é a essência essencial da música. E nela, só a qualidade importa. Tenha fé em seu trabalho. Certamente resultará, pois você, além do talento, tem orientação segura. Coragem, disciplina, concentração, dedicação, humildade, gratidão aos mestres são qualidades que o ajudarão a vencer barreiras. Vá em frente, meu jovem.

No dia seguinte à publicação do post recebi e-mail do jovem pianista. Transcrevo-o:

Prezado José Eduardo Martins,
sinto-me muito honrado com suas palavras e atenção em dedicar tempo para escrever-me tão longamente uma resposta. Muito obrigado.
Concordo com tudo o que escreveu.
Realmente, o registro é algo “eterno”, que deve ser pensado e repensado, com responsabilidade. Com certeza, o Youtube está repleto de exemplos de falta de profissionalismo.
Alguns são exemplos de pura vaidade, a qual, em minha opinião, constitui a principal armadilha para um artista, pois a soberba precede a queda (como, aliás, está escrito na Bíblia Sagrada). Isso, para mim, é algo que literalmente “afeta” os artistas comprometendo a dignidade intelectual, a honestidade e a seriedade do trabalho.
Enfim, concordo com exatamente tudo o que escreveu.
Mais uma vez agradeço pela consideração e atenção.
Forte abraço.

I received an e-mail from a young pianist saying he had posted videos of his performances on YouTube, but chose to remove them a few days later and wait until the quality of his playing improves. His message was the starting point of this post, a reflection on how difficult it is to sift the wheat from the tares on a video sharing website and on how strong for an interpreter is the temptation of posting amateur videos – or even professionally made ones – of doubtful quality that potentially could be watched by a worldwide audience within a few minutes.

Divagações sobre Arte

Mário Zanini. Vagão de segunda classe. Óleo sobre tela, 1969, coleção particular.

A mais linda flor
permanece oculta.

Adágio vietnamita

Peguei o ônibus para ir ao centro da cidade, o meio mais rápido neste trânsito complexo. Há os corredores, que raramente travam. Fora dos horários de pico encontram-se sempre lugares. A terceira idade ainda tem seus poucos privilégios, e os motoristas geralmente são amáveis para com idosos. Peço licença e sento-me ao lado de um cidadão a beirar os 40 anos. Começo a ler. “Professor, o senhor não se lembra de mim?”, indagou-me. Olhei-o e o reconheci. Após mútuas saudações e real prazer nesse reencontro, perguntei-lhe a respeito de seus caminhos após se formar. Estudara comigo durante a graduação na Universidade, no primeiro lustro de 80. Continuou seus estudos musicais na Europa durante muitos anos. Voltava de aulas que ministra junto a uma escola de música, não distante de minha casa. Há tempos gostaria de conversar com seu antigo mestre a respeito de repertório pianístico, pois é professor de piano e de matérias teóricas. Culto, contou-me a respeito de suas últimas leituras, assim como de partituras que gostaria de conhecer, distantes daquele repertório super frequentado. Lembrava-se ainda de minha insistência na busca de obras pouco conhecidas, mas importantes. Marcamos um encontro que se dará oportunamente, ocasião em que mostrarei composições a meu ver fundamentais e raramente visitadas por nossos intérpretes. Foram muitos os posts em que insisti nessa necessidade de redescobrir autores. Portanto, pouparei o leitor nesse quesito.
Contudo, a nossa conversa enveredou para o caminho da obra ignota do grande público, seja ela de qualquer ordem. Comentei que nos últimos meses recebera e-mails contendo anexos que exibiam belas fotos de quadros de pintores da Rússia Imperial, do romantismo europeu como um todo e de escultores franceses do século XVIII. Fiquei realmente impressionado pela singular qualidade desses artistas absolutamente dotados, mas desconhecidos do cidadão que aprecia tradicional e socialmente as artes. E-mails que me fizeram pensar nessa absurda situação que faz proliferar apenas o conhecido ou hiperconhecido, ou seja, na essência, a redundar no empobrecimento cultural. Frisei ao ex-aluno que a arte que nos é dada conhecer assemelha-se a um leque apenas entreaberto. Sequer imaginamos toda a beleza, estivesse ele a apresentar a pintura integral. Nesses exemplos incluiria a qualidade precisa de tantos compositores belgas entre os séculos XIX e XX, a riquíssima música portuguesa desde o barroco, a culminar, como excelência, nesse grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994) – a meu ver, um dos maiores compositores do planeta no transcorrer do século XX, infelizmente ainda não divulgado à altura de sua genialidade, apesar de esforços particularizados em Portugal. À sua obra valiosa tenho-me dedicado ultimamente. Quatro de suas extraordinárias criações deverei gravar em Maio na Bélgica, perfazendo dois CDs. E quantas mais preciosidades artísticas não há submersas por toda parte pelo esclerosamento de um Sistema ! Quantos artistas de todas as áreas permanecem sepultos ! Raras exumações acontecem: “E tudo isto a morte / Risca por não estar certo / No caderno da sorte / Que Deus deixou aberto”, como reza Fernando Pessoa.
Perguntou-me se a mesmice tinha origem precisa. Disse-lhe que marchands, empresários, editores, mídia e público, acostumados a ver, ouvir e ler o que tem circulação e o conhecido, fazem parte de um todo responsável pela situação. Comentei que sub-repticiamente autores respeitados, ao citarem exemplos nas artes, mencionam o óbvio, e a quantidade de textos sobre pintura abordando determinadas obras nos deixaria pasmos. Estariam eles cônscios desse posicionamento? Não atenderia a menção ao superdivulgado à necessidade da inteligibilidade frente ao leitor acostumado ao conhecido e perenemente repetido?
Ao sentar-me, iria continuar a leitura de A origem da obra de arte, um dos seis ensaios constantes da obra Holzweg do pensador alemão Martin Heidegger (1889-1976), na tradução francesa (Chemins qui ne mènent nulle part, France, Gallimard, 1980). Em determinado segmento, Heidegger recorrerá a uma tela de Vincent Van Gogh (1853-1890) a fim de, através de velhos sapatos de um camponês, explicar seu pensamento sobre o ser-produto do produto, passando pela sua utilidade e solidez, e chegar à transcendência a partir do desgastado par de sapatos do lavrador “Através desses sapatos passa o apelo silencioso da terra… a muda inquietude pela segurança do pão, a alegria silenciosa de sobreviver novamente à necessidade, a agonia do nascimento iminente, o arrepio sob a morte que ameaça”. Se não houver o símbolo por todos conhecido, a imaginação do leitor poderia não saber se fixar. Todavia, se outro par estivesse em hipotética obra igualmente importante, mas de pintor que, por motivos os mais díspares não teve divulgação, como passar ao leitor a carga necessária? Numa outra direção, quantos estudos, teses, artigos já não foram feitos para explicar, como exemplo entre tantos, o célebre quadro O Casal Arnolfini do pintor flamengo Jan van Eych (1390-1441)? O quadro é uma obra-prima insofismável. Contudo, qual a razão dos pesquisadores em arte fixarem-se tanto no Casal Arnolfini, analisado e dissecado de todas as maneiras ainda possíveis? “Professor, o trânsito emperrou, mas de um lado é bom conversarmos”, interrompeu-me. Continuei, pois, as divagações. Quantas extraordinárias criações de pintores do período jamais mereceram uma linha de um estudioso. Milhares de milhares de turistas ao adentrarem o Louvre correm – esse é o termo – para ver a Mona Lisa, ou La Gioconda, de Leonardo da Vinci.
Primeiramente haveria a necessidade de se partir de pesquisa virgem, o que requisitará a busca às fontes primárias e à bibliografia mais complexa. Sob aspecto outro, pelo fato da falta de comparação, a mídia silencia, pois seus modelos são basicamente os mesmos desde sempre, e marchands, agentes de programação musical ou editores, em grande maioria, preferem que assim continue. Mortos propalados efusivamente têm público cativo. Observe as programações de nossas sociedades musicais. Ad nauseam os mesmos concertos para piano e orquestra ou violino e orquestra são executados anualmente em todas as temporadas pelo país. Extraordinários? Sim. Únicos, realmente não. Num aprofundamento, não acredita você que se o público leigo soubesse que há quantidade extraordinária de concertos outros escritos também por grandes compositores, basicamente ignotos, não poderia sentir-se desapreciado, autêntico capititis diminutio de sua possibilidade de aferição? Se assim não entender, pois ele representa o elo final receptivo, nada a fazer, pois a atitude de renovação não virá nem dos agentes, tampouco dos músicos envolvidos. Sob outra égide, o público é sempre conduzido, pois não será ele a procurar o inusitado. Se a globalização tendeu para a ampliação – não entremos no quesito qualidade -, e o conhecimento se colocou à disposição de todos e de maneira veloz, paradoxalmente os mesmos arquétipos são venerados em todas as artes. Mas estes são relativamente poucos se comparados à quantidade qualitativa mantida em baús. Não creio que possa haver um ressurgimento de todos os bons autores. É impossível e, se parcela destes renascesse dos arquivos, o cidadão comum poderia desnortear-se pelo aumento excessivo da comparação. Música, literatura e outras artes sofrem o mesmo e, homeopaticamente, como que por uma quase benevolência do Sistema, um desconhecido já sepultado há muito ou pouco tempo tem exumada sua obra. Quando isto acontece, os pais da redescoberta são momentaneamente glorificados, e a mídia e os interessados se precipitam e ao tecerem elogios rasgados, sentem-se prepotentemente mais cultos. O esnobismo é uma das categorias do verniz cultural. Retirada a camada, pouco sobra. Essa é a realidade que o homem enfrenta desde séculos. E tudo indica que assim continuará.
Meu ex-aluno, hoje profissional que demonstra amar a música, reagiu bem. No íntimo, pensa aproximadamente a mesma coisa, mas como me afirmou, falta-lhe a coragem para mudar as mentalidades voltadas a um aprendizado super tradicional. A esperança veio pouco antes de chegar ao seu destino, duas ou três paradas a anteceder o centro. “Professor, passarei em sua casa” disse-me ele. “Gostaria de uma lista dessas obras que o senhor considera essenciais, mas pouco divulgadas”. Aquiesci com alegria, pois sempre acreditei nessa imensidão criativa que teimosamente o Sistema não revela. Ele desceu e segui até o ponto final a pensar que ainda poderemos fazer algo a favor do inusitado. Deixarão? O tempo dirá.

Gestual Econômico a Valorizar Texto-Música

(clique nas imagens para ampliá-las)

Carlos do Carmo na Casa de Portugal de São Paulo. Foto JEM. Clique para ampliar.

Sou trova da madrugada,
Poema do Sol desperto
Numa guitarra trinada.
E o jeito seguro e certo
Que foi raiz encontrada:
Memória de mim tão perto.

João Manuel Mendes (Fado dos meus Fados)

Reiteradas vezes comentei a respeito do gesto e de seu impacto. Quando entrevistado por Joseph Horowitz, o grande pianista Claudio Arrau (1903-1991) abordaria o tema. Aos cinquenta e tais anos percebeu que seus gestos ao tocar em público eram excessivos. Refletiu muito e chegou à conclusão de que haveria a necessidade de diminuí-los sensivelmente. Para o insigne pianista estava em causa a própria música. Arrau doravante transmitiria apenas a essência sonora e o gestual tornou-se econômico. Suas interpretações ganhariam, a partir de determinada idade, a aura da inefabilidade.
Haveria duas básicas categorias de intérpretes frente ao gesto e, nessas, nuances quanto à flexibilização dos movimentos corporais como um todo. A ausência do gesto supérfluo pode levar à síntese da exteriorização, a estar o processo inteiramente voltado à carga integral que emana da mensagem musical. Sob outra égide, movimentos excessivos, quando voluntários, estariam a evidenciar a atração nítida do intérprete pelo palco no intuito de obter o delírio da platéia. E a música em sua essência, onde realmente ela se situa, neste último caso?
Convidado pelo distinto amigo António Júlio Machado Rodrigues, dinâmico Presidente da Casa de Portugal, minha mulher e eu assistimos, após a belíssima ceia de Natal na tradicional sede da comunidade lusíada, a uma extraordinária apresentação de Carlos do Carmo, o nome mais representativo do fado desde a morte da inesquecível Amália Rodrigues. Louve-se a sensibilidade do Presidente da Casa ao trazer a São Paulo, mais uma vez, o extraordinário artista. O recital do fadista, que se fez acompanhar por excelentes guitarristas, deu-se logo após a música circunstancial e descartável que tivemos de ouvir, quando um conjunto “musical” entendeu que o limite auditivo tinha de ser transposto, e os decibéis estratosféricos fizeram-me recorrer a tampões nos ouvidos. Infelizmente, essa prática “sonora” invadiu quase todas apresentações em festas, casamentos, formaturas…
Ao adentrar o palco, Carlos do Carmo dirigiu-se ao público e calmamente pediu silêncio absoluto durante sua apresentação. Foi atendido e, somente após cada fado, portugueses e descendentes aclamavam o cantor. Conhecia-o através de vários CDs que conservo com carinho, mercê de meu afeto pelo gênero fado, mormente cantado com qualidade ímpar. Carlos do Carmo emociona cidadãos de todas as classes e músicos eruditos submetem-se ao seu fascínio. O musicólogo Rui Vieira Nery já me havia, bem anteriormente, mencionado as qualidades excepcionais do artista, presenteando-me com CDs do cantor. Em seu excelente livro sobre o fado (vide Para uma História do Fado Origens e Trajetória, 23/02/08), Vieira Nery escreve: “Será, depois de Amália, o primeiro fadista a assumir de forma inequívoca uma vontade de passagem do Fado do recinto ‘típico’ exclusivo para os espaços de difusão ocupados pelos demais gêneros da canção urbana”. Por sua vez, o compositor António Victorino D’Almeida, em entrevistas a Paulo Sérgio dos Santos, insiste sobre suas virtudes inalienáveis, comparáveis aos nomes referenciais do canto. Seus comentários dão a dimensão do grande fadista: “E cito-lhe desde a Maria Callas, ao Frank Sinatra, ao Carlos do Carmo… São vozes incríveis. O Placido Domingo, o [José] Carreras, a Amália Rodrigues, a Edith Piaf… Coisas assim… Mas a Edith Piaf não era tanto a voz, a Edith Piaf estava sempre um pouco desafinada. Ao Sinatra compreendo que lhe chamassem ‘The Voice’. O Carlos do Carmo é outra voz assim, não é? E dentro duma certa forma de cantar, com a voz não preparada, são das maiores vozes que alguma vez ouvi” (António Victorino D’Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005, 340 pgs.). Acrescentaria, entre cantores da música popular, Bing Crosby, Nat King Cole, Charles Aznavour, Tony Bennett e Elis Regina.

Carlos do Carmo na Casa de Portugal de São Paulo. Foto JEM. Clique para ampliar.

Ainda não tinha visto Carlos do Carmo em cena. Vários impactos se produziram.
Primeiramente, a escolha do repertório. Impecável. Fados primorosos, muitos deles com textos de grandes poetas portugueses e alguns de autores brasileiros. Uma garantia. Em outra percepção, musical preferencialmente, observa-se no tratamento da composição um esmero absoluto. Nada é supérfluo e a frase musical e o texto, num perfeito amálgama, associam-se irremediavelmente. Carlos do Carmo, nesse trato da melodia, consegue transmitir a respiração texto-música e tantas vezes recorre a suspensões – momentos inefáveis em que apenas as ressonâncias são “subjetivamente” entendidas. Essas pausas ou silêncios vêm sempre precedidas da preparação adequada e da sequência que faz entender métrica, sentido do texto e a frase musical em sua elasticidade agógica. Diria que, em termos musicais, tem Carlos do Carmo o sentido pleno daquilo que na música é denominado rubato, liberdade que se dá ao movimento de uma frase, sem contudo perder-se a essência do ritmo. Sob aspecto outro, possui o artista o domínio das gradações sonoras, e finais de fados arrebatadores têm a precedê-los a ascensão calculada, bem cuidada, de um mestre. À medida que me encantava com a bela récita do fadista, observei que a palavra distração – possível em apresentação de mais de uma hora ininterrupta – não teria nenhum sentido, mercê da força da transmissão. O público irmanou-se e, a pedido do cantor, quase que em sua totalidade acompanhou-o no refrão de Lisboa, menina e moça.
Nos intervalos entre os fados, comentava com meu dileto amigo Vital Vieira Curto a respeito daquilo que é essencial. Quem realmente é não necessita de artifícios. O gestual tão comum e exagerado em tantos cantores populares, que não poucas vezes se utilizam de vestimentas extravagantes, dá lugar à sobriedade, à economia dos gestos, à elegância no trajar. Diria que a atitude de artistas que entendem a mensagem musical como prioridade reflete o mais absoluto respeito ao público. Carlos do Carmo apresenta-se com gestual parcimonioso. Por vezes, as mãos indicam intenções relativas à tradução texto-música, outras vezes o colocá-las nos bolsos evitaria movimento desnecessário. Mesmo quando desce do palco, a fim de melhor se identificar com a platéia, permanece sóbrio na gesticulação. Todos se concentram naquilo que é transferido com total competência.

Júlio Rodrigues, Presidente da Casa de Portugal de São Paulo, JEM e Carlos do Carmo. Foto Regina Martins. Clique para ampliar.

Ao findar o belo espetáculo, Júlio Rodrigues levou-me até Carlos do Carmo. Externei-lhe minha admiração, a ratificar-lhe essas suas qualidades, raras na música erudita, raríssimas na popular. O excepcional fadista asseverou-me que era assim que entendia a transmissão da música. Noite para não ser esquecida.

Ao acessar o Youtube videos Carlos do Carmo, o leitor poderá ouvir fados de seu repertório.

Some days ago I attended a show of the great fado singer Carlos do Carmo in São Paulo. Charmed by his elegance, the restraint of his gestures, his impeccable choice of repertoire and subtle control of tempo for expressive purposes, I was led to reflect on the issue of the essential and the superfluous in art. Carlos do Carmo is outstanding in a casual and effortless way, holding the audience in the palm of his hand without theatrical performances. His priority is to convey his musical message with competence, not to display extravagant versions of himself. A quality rarely found in classical music performers, even rarer in pop singers. A night not to be forgotten.