A Negação como Defesa

A Máscara. Desenho de Luca Vitali. Setembro, 2009. Clique para ampliar.

Rien ne naît ni ne périt, mais des choses
déjà existantes se combinent, puis se séparent de nouveau.

Anaxágoras de Clazômenas (500 a.C – 428)

Rien ne se perd, rien ne se crée, tout se transforme.
Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794)

Estava a aguardar consulta e fui até a janela do consultório que dava para um estacionamento. Carros chegavam e saíam, e os funcionários colocavam os cubos numerados que fazem parte do cotidiano nesses incontáveis estabelecimentos guarda-carros da megalópole. Modelos diferentes de montadoras fixadas no país. Dei-me conta, mais pormenorizadamente, da mesmice dos veículos e pensei nas propagandas que inundam televisores, rádios, jornais e revistas, a glorificar o arrojo e originalidade das linhas de tal novo carro lançado. Contudo, para um leigo, são todos os modelos muito parecidos, diferenciando-se através dos detalhes. Se dirigentes dessas montadoras forem entrevistados, tomarão como injúria a palavra imitação, mas que ela existe é evidente, mesmo que camuflada por “inspirado em vaga ideia”. Mutatis mutandi, o mesmo ocorre com todo tipo de mercadoria à disposição do consumidor. Fabricantes recusam-se a admitir que partiram de modelos concorrentes que ditaram inovações. Estes, por sua vez, foram desenhados a partir de protótipos de toda espécie de firmas. Essas observações levaram-me a reflexões.
Já na Grécia antiga, mímese designaria imitação – imitatio, em latim -, e os filósofos gregos debruçaram-se sobre o conceito, mormente Platão e Aristóteles. No século XV, sob outra égide, o célebre Imitação de Cristo, atribuído a Tomas à Kempis (1380-1471), dava ao homem a prerrogativa de seguir os passos de Jesus na aplicação de conduta ditada pelos Evangelhos. Livro de cunho devocional, proporcionava ao fiel o modelo de virtude. Teve enorme guarida durante séculos. Santo Inácio de Loyola teria se inspirado na obra, a fim de estabelecer princípios espirituais.
O termo imitação tem sido compreendido como pejorativo. Dificilmente alguém aprecia essa palavra quando a si aplicada, mas a história tem evidenciado que os acúmulos do conhecimento se baseiam em algo já pensado. Dir-se-ia que um degrau a mais no longo caminho em direção ao desvelamento.
Se observarmos os movimentos artísticos – pintura, escultura, música, teatro, literatura – e, mais recentemente, o cinema, poderemos sentir com clareza, através dos séculos, aquisições que paulatinamente estariam a configurar novas técnicas relacionadas às artes, mas que sofreram influências do passado.
Parte-se sempre da aquisição daqueles que permaneceram pela qualidade, referências paradigmáticas, estabelecendo-se então princípios orientativos para o aprimoramento. Legião de aprendizes dirigem-se diariamente aos museus ou às escolas especializadas e retratam o que foi realizado e que perdurou, assim como modelos ao vivo. Escultura, pintura e desenho estimulam essa possibilidade do vir a ser. Busca-se, através da imitação, chegar ao conhecimento das técnicas elementares às apuradas, que servirão no futuro, se qualidade houver, à própria criatividade daquele que está, de certa forma, a imitar ou a reproduzir gestos e traços.
Na Música, o termo Imitação é utilizado quando frase anteriormente exposta é novamente apresentada, alterada ou não, em outro segmento da textura musical. Essa característica repetitiva poderá obedecer a inúmeros critérios na organização da obra. Sob outra égide, as técnicas das escolas de composição não estariam a estabecer a constante presença de alicerces seguros que demonstram origens? Para a interpretação, que maior modelo para um estudante do que ouvir os grandes mestres?
Não reconhecer que ideias foram extraídas de acertos seria falta de modéstia. Quando o ilustre compositor Francisco Mignone (1897-1986) escreveu A Parte do Anjo – Autocrítica de um Cinquentenário (São Paulo, E.S.Mangione,1947), teceria considerações sinceras e sem preconceitos a respeito do plágio. Em sendo o aproveitamento de “elementos fecundos da criação alheia”, considera que “Ninguém é inteiramente pessoal. O que devo é organizar essa faculdade de maneira a me aproveitar do alheio”. Observa: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio”. Menciona poeta paulista: “Guilherme de Almeida plagiou descaradamente Pierre Loüys, mas conseguiu fazer as admiráveis Canções Gregas”. A acompanhar a História: “Foi a tempestade de Ulisses, em Homero, que deu a tempestade de Virgílio, e esta deu a tempestade de Camões. São tempestades idênticas, e no entanto… são três tempestades!” Enumera compositores que permaneceram na história como tendo recorrido às aquisições de seus ascendentes: “deixar de bobagens e de pruridos de ser original. Originalidade está na lógica da criação e si Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet!), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma terça parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola!” Explicaria essa atitude a adesão a preceitos europeus no quesito composição. Fá-lo conscientemente, mas se fosse criticado e “si os outros disserem que estou imitando, si disserem que a minha invenção melódica é banal, que estou mostrando o meu rabinho italiano em meu brilho e violência apaixonadas, mandarei todos àquela parte”. As convicções de Francisco Mignone permaneceram ao longo das décadas. Cerca de um ano antes de sua morte, ocorrida em 1986, escreveu-me carta a ratificar convicções: “Junto vai a ‘Parte do Anjo’. Você vai encontrar a minha maneira de ser como artista. Continuo e permaneço sempre o mesmo!”
O notável escritor português Miguel Torga (1907-1995) teria compreendido a proximidade entre imitação e acúmulo, a resultar no próprio estilo de um autor. Em palestra, explicaria: “Acham que é possível ser um espontâneo, saltar para dentro da arena literária e fazer uma obra assim de qualquer maneira? Quando um escritor escreve uma coisa significativa, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Numa literatura como a portuguesa, que tem 700 anos de idade, não acham que essa herança é uma carga muito pesada? Acham que é possível escrever sem saber o que escreveram todos os antepassados da língua? Sem fazer um esforço prévio?” Em termos literários, como musicais, ter conhecimento intenso do que foi escrito ou composto, apenas dará consistência à obra. Desse entendimento poderão eventualmente advir proximidades que levem à imitação, realizada conscientemente ou não.
Mario Lavista (1943- ), notável compositor mexicano, tem precisão quanto às influências sobre sua obra. Em entrevista a mim concedida em Julho de 1989 e publicada um ano após na Revista Música da USP, observou: “Eu estou convencido de que elegemos nossos antecessores e quais são nossos avós. Eu elegi Mozart e Debussy como meus antepassados, mas essa escolha não foi sempre imutável. Há muitos anos, Webern foi meu antecessor; num futuro próximo, poderei eleger um outro”.
Influências notórias encontramos em basicamente a totalidade da criação humana. Faz parte da trajetória do homem. Desde os genes contidos no útero materno até a morte, estamos sempre a receber impactos que têm peso decisivo em nossa conduta. A imitação bem administrada e “autêntica” também integra esses acervos. Não seria a tradição dos povos Culturas sobrepostas? Religião, costume, língua não subsistem pela traditio e pela repetição? Quando os cravistas em França nos séculos XVII e XVIII e Olivier Messiaen (1908-1992) evocam o onomatopaico, não buscam, através da douta escrita musical, reproduzir o canto dos pássaros e das aves? Em La Poule (1728), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) chega a escrever na partitura as hipotéticas sílabas da galinha. Em toda a história da música há exemplos desse emprestar da natureza sons e ruídos que lhe são característicos. Cachoeiras, relâmpagos, trovões, sem contar os emitidos em batalhas, evocação de instrumentos vários, até a eclosão do romantismo, sob égide outra, a clamar o sentimento humano como expressão maior.

Jean-Philippe Rameau. La Poule (1728), primeiros compassos. Clique para ampliar.

Clique aqui para ouvir La Poule, de Jean-Philippe Rameau, com J.E.M. ao piano

Autores se inspiraram em temas consagrados como citação e tem-se uma profusão dessas menções. Possivelmente, o antológico Dies Irae tenha sido um dos mais citados na história. Mozart, Verdi, Berlioz, Liszt, Saint-Saëns, entre tantos, utilizaram-se desse tema em obras específicas. Imitação? Talvez não. Citação sim, e clima outro para estruturas reinventadas a partir desse hino medieval.
Volta-me a ideia de carros antigos fotografados. Nos primeiros registros do início do século XX, poucas marcas, mas formatos bem próximos, independentemente da soberana cor preta. Hoje, muitas marcas, uma certa tendência para o cinza e grande semelhança nas linhas. Ou seja, nada mudou quanto ao conceito. Aperfeiçoamentos de montadoras “copiados” para modelos de concorrentes. Contudo, nega-se sempre a origem a motivar o plágio, e a propaganda, como assaz acontece, ajuda a vender a “originalidade absoluta”, mesmo que seja a partir do pormenor. E todos parecem satisfeitos nessa parafernália. As diferentes emissoras de rádio insistem, cada uma à sua maneira, mas com incrível dose imitativa, que os seus comentaristas são os melhores do Brasil; antigripais de tantos fabricantes proclamam seus remédios como os únicos que liquidam a gripe. É só ler a bula e verificamos a identidade dos princípios ativos. Sob contexto próximo, igualdade absoluta nos propósitos, repetições flagrantes para o ouvinte. Anátema dos poderosos à palavra imitação, apesar de ser ela tão evidente. Aceitá-la com naturalidade seria prova de grandeza dessas empresas, impedidas de acatá-la por motivos unicamente voltados à necessidade de demonstrar primazia. Nas artes seria plausível acreditar que majoritariamente artistas e artesãos não negam ascendendências transparentes. Tornar-se-ia evidente que o curso do rio continua e que as águas que retornam às suas cabeceiras fazem parte do ciclo da natureza. Ciclo do homem, sempre a renovar a partir de ensinamentos do passado.

Watching cars going to and fro at a parking lot, I observed once more how similar to one another they all look, differing only in details. The industrial design of one is blatantly copied by another, though automakers vehemently deny it. This was the starting point of a reflection on mimesis or imitation, a word in general considered pejorative. However, history shows that in any field of knowledge – when talent exists – pre-existent models function simply as starting points for innovative ideas of one’s own making.

Generosidade dos Leitores

Generoso desenho de Luca Vitali após recital privado. Fevereiro 2009. Clique para ampliar.

O que ganhamos viajando até a Lua,
se não podemos cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos?
Essa é a mais importante de todas as viagens de descobrimento,
e sem ela todo o resto é não apenas inútil, mas desastroso.

Thomas Merton

Uma mudança de significado é necessária
para transformar este mundo política, econômica e socialmente.
Mas essa mudança deve começar no indivíduo,
esse significado deve mudar para ele…
se o significado é uma parte vital da realidade,
então, uma vez que a sociedade,
o indivíduo e as relações sejam vistos
como alguma coisa diferente,
uma mudança fundamental ocorrerá.

David Bohm

Atingimos essa cifra após dois anos e meio de posts publicados semanalmente de maneira ininterrupta, sem qualquer publicidade, sem a menor ventilação fora do próprio veículo de comunicação de que disponho. Houve aproximações para abertura a determinadas propagandas, mas preferi manter-me fiel aos propósitos eleitos, pois poderia haver cobranças ou pressões mercê de patrocínio. A independência do pensar pode levar a equívocos, mas está a traduzir a nossa pulsação sem qualquer aparelho controlador. Dependerá de quem escreve essa auto-avaliação que tantas vezes é repartida, pré-blog, com amigos que comungam ideias afins. Em textos espalhados nesse período frisei que reflexões costumam aflorar a partir de fatos os mais variados. A temática surge sem qualquer esforço devido aos impactos de toda ordem. A simples observação do cotidiano, as impressões sempre enriquecedoras das viagens, as leituras permanentes e a música, que é a própria respiração, estão a me servir, perenemente, como fontes inspiradoras.
Meu saudoso pai dizia que, sem um método preciso, dificilmente o homem atinge objetivos. Dizia mais, a complementar que disciplina, concentração, vontade e, de preferência, amor ao que se faz derrubam barreiras. Quando Magnus, meu antigo aluno e amigo sincero, sugeriu a criação do blog, relutei com certa firmeza. Entendia Magnus que temas tratados através do diálogo deveriam ser repartidos com potenciais leitores. Montou tecnicamente o blog, sem o meu aval, a dizer “ele está à sua disposição, é só começar a escrever”. Foi aos 2 de Março de 2007 que surgiu o primeiro post inserido no blog. Não houve até o presente uma semana a falhar, e o texto entra durante todas as madrugadas dos sábados. Uma amiga perguntou-me se eu não me dava férias quanto aos posts. Disse-lhe que se textos acadêmicos para o Exterior fluem periodicamente, mas sem previsão, o post para o blog e a música são respirações. Sem eles, o coração deixaria de bater. Trégua para o respirar? É curioso que, a partir do post inicial, pouco a pouco, assim como acontece com a música, o blog integrou decididamente meu batimento cardíaco. Confesso ao leitor que em geral os temas e as ideias para os textos surgem durante as corridas que realizo pelas ruas de minha cidade-bairro três vezes por semana. Diria que as passadas e a cadência respiratória avivam ideias tantas vezes retidas e conservadas numa espécie de baú mental, sendo que tantas outras nascem das leituras, do olhar o cotidiano, das viagens que permanecem.

Corrida Corpore 10km, 23/08/09, tempo 1:11:26. Foto Daniel Martins da Treinoonline. Clique para ampliar.

A depender do tema, o vernáculo pode sofrer adaptações. O cotidiano é sempre mais informal, contrapondo-se às resenhas ou aos comentários de livros, que fazem parte de meu outro cotidiano. Cada livro eleito para a leitura representa a visita a um universo desconhecido. É uma das dádivas da civilização. Tecer considerações sobre esses caminhos que os olhos percorrem e a mente absorve dá-me profundo prazer.
A leitura que fazemos do cotidiano não frequentado pela mídia não seria uma outra forma de prospecção? A escrever sobre personagens que eclodem panfletariamente nos meios de comunicação, prefiro retratar com palavras experiências sensíveis que Pedro o andarilho, Sisuphos, os moços do supermercado e da feira-livre, o velho e atencioso amolador Constantino, Carlinhos da pequena loja de produtos de limpeza, os músicos da calçada, o jornaleiro proporcionam-me a cada momento. São eles parte de meu olhar que pulsa nessa comunhão com essa gente humilde, digna, trabalhadora ou, nos tristes casos de Pedro e Sisuphos, abandonados pela sociedade. Os retratos da escrita, quando nesse segmento ignoto para a mídia, despertam a sensibilidade de Luca Vitali, artista que pratica o ato de comunhão em arte, depois do olhar o cotidiano que a maioria teima em não ver, e espontaneamente, sem eu nada dizer, ouve a leitura que gosto de fazer de determinados textos – pré-edição no blog -, capta a mensagem, traduzindo-a em poesia do traço. Flui a criação com a naturalidade dos grandes. Quando o desenho tende à “fotografia” poética, é Maria Fernanda que traduz determinado contexto com rara sensibilidade. Minha mulher Regina e Magnus permanecem ouvintes sensíveis dos textos em fase final que, a seguir, generosamente têm o crivo de Regina Pitta, revisora atenta e autora dos abstracts. O compositor Henrique Oswald já dizia que o pior revisor é o autor e complementava que se incluía entre os piores. Se de um lado há esse pré-conhecimento dos posts por alguns, como não ficar sensibilizado com leitores assíduos, alguns deles escrevendo-me semanalmente sobre temas lidos e as inserções dos conteúdos em suas vidas. A partir dessa espontânea comunicação, exemplos têm-me enriquecido e estimulado a prosseguir. De Portugal e de vários rincões de nosso país escrevem-me e as experiências trocadas são outra categoria do pulsar irmanado.
As viagens têm sido o registro de outros cotidianos, das paisagens e construções que cá não temos e do convívio humano. No fundo somos todos iguais e os sentimentos de amor, de amizade permanecem semelhantes, aqui ou alhures. A visão frente à vida pode diferenciar-nos, pois sofremos de problemas endêmicos devido ao descaso do Estado nesse nosso país eternamente deitado. Em que berço?
A aposentadoria da USP permitiu-me a liberdade da escrita informal, longe do rigorismo tantas vezes inócuo ou dos malefícios da pseudo-erudição evidentes em inúmeros textos acadêmicos (vide “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 21/03/09). A crítica à universidade pública brasileira, contida nas entrelinhas de textos espalhados pelo blog, na realidade é a denúncia ao que de nocivo está a acontecer em nossa educação e nas benesses precisas a tantos projetos estranhos. Que desestimula o ensino público básico e médio e que repercute no ensino superior, não há dúvidas. O tempo evidenciará o capitis diminutio que está a ocorrer na área da educação em todos os níveis, mercê do quantitativo sem estrutura em detrimento da qualidade seletiva.
A Música tem sido tema constante. Basta uma ideia surgir, ou receber a sugestão de um leitor atencioso, para que pouco a pouco determinado assunto comece a germinar. Os e-mails recebidos vêm através do endereço contido no contact do site. Costumo respondê-los, e diálogos extremamente interessantes têm estimulado o pensar. Procuro contudo adaptar as indagações e interesses dos leitores àquilo que me é caro na Música, a sua própria essência a partir da interpretação. A busca eterna pela consideração ao estilo do compositor e todas as decorrências que dele advém.
Personalidades que me foram caras, mestres não esquecidos, amigos que passaram para a outra margem, deixando exemplos de afeto, são temas que, por vezes, abordamos contristados. Revelam que convívios permanecem e que a gratidão por tê-los conhecido deságua no mínimo em forma de tributo que jorra sincero.
A montanha. Os Himalaias que me levaram às leituras das aventuras e do pensamento místico da região. Católico, não dispenso penetrar minimamente nesse pensar puro e elevado de alguns iluminados mestres tibetanos. Há tantas concordâncias com o cristianismo. Leigo no budismo, os textos tibetanos, a revelar a inclinação do homem em direção ao aperfeiçoamento individual e dele à compaixão que pode advir, seriam uma visão bem próxima aos ensinamentos que me foram transmitidos durante a trajetória. Ajudam a melhor compreender o homem na procura da plena humanidade. Utopia, talvez, mas vale acreditar.
Dileto amigo ponderou que deveria escrever sobre o que acontece na política brasileira. Sou um a integrar muitos milhões de descontentes com o que acontece nos três poderes desse país. Contudo, há especialistas que diuturnamente proclamam a vergonhosa situação a que chegaram as classes políticas e empresariais, umbilicalmente ligadas em tantas escandalosas oportunidades, quando interesses estranhos se apresentam. Escrever sobre esses tristes episódios? Qual seria a razão, se tantos outros com autêntica competência o fazem? Portanto, não será esse pantanoso terreno aquele em que ousaria colocar opinião pessoal, um mínimo post sequer. Certo dia, conversando com respeitado cientista político, dizia-me ele que a cada artigo que fluía de sua mente a respeito da realidade político-empresarial do Brasil, e destinado a determinado veículo de comunicação, seu batimento cardíaco chegava às alturas e a sensação de fel que sentia após redigi-lo atestava o descontentamento. Não que me queira furtar, mas são tantos a denunciar, tão cristalina a verdade ! Contudo, a impunidade, mãe de tantos vícios, chaga a sol aberto nessas terras tropicais, está sempre a apontar para o desvario e o surrealismo absoluto dos quais somos observadores sem a menor possibilidade de reação, pois as máquinas dos compadrios estão instaladas. Se o fugir à verdade é soberano nessa triste realidade brasileira, com o beneplácito dos três poderes, nada a fazer, a não ser protestar, sabendo que ouvidos e olhos bem tampados – estes sim, definitivamente vendados à justiça – descartam por parte da “trindade” o encontro com a realidade gritante das ruas.
Persisto. Até quando, não sei. Os posts continuarão a fluir, livros vão sendo penetrados com prazer acentuado, o cotidiano é sempre surpreendente e a música permanece intacta. Entre suas dádivas, está a de me fazer conhecer repertórios sempre renovados, sons inefáveis, raças e regiões. A geografia e o contato humano no Exterior possibilitaram a extensão sonora, e cada centímetro percorrido e um novo encontro calam fundo em meu coração. As corridas pelas ruas e em provas que me são caras, pela proximidade com a gente saudável e feliz, têm-me, como acréscimo, melhorado o desempenho físico. E por fim, a família. Sem a compreensão dessa âncora, que atenua turbulências, não estaríamos possivelmente à deriva? Complementando meu post inicial de 2 de Março de 2007, continuemos cúmplices. A guarida do querido leitor é chama que não se apaga, e o seu contato, mesmo que distante, faz-me ainda mais refletir sobre o grande mistério, a existência.

This week the number of visitors to my blog reached 50.000. I would like to take this time for a few words of gratitude to those who, working behind the stage, help me keep the blog and also to recollect the subjects that are dearest to me: music, books, travels, family, friends, the man in the street.

Espectador Assustado

Jornal El Zonda, San Juan, 12/07/06. Clique para ampliar.

Por ejemplo en el norte, carnavalitos y bagualas se apoyan
en el suelo argilloso y el aire caliente de las provincias norteñas,
en la Región de Cuyo cambia el clima,
los frutos, la temperatura y escuchamos cuecas y valses,
que pueden decir
“ando extrañando el zonda, su viento y polvareda”
hablando de un viento que arriba a esa región con su aliento de fuego.

Susana Giraudo

Diariamente, nos intervalos de estudo, vou conversar com velhos amigos no mesmo cantinho de sempre, ou aproveito para tomar um curto. Hábitos que se enraízam. Meus companheiros tinham lido a respeito de uma espécie de ciclone ao sul do país com rajadas de até 80km por hora. Estavam a trocar ideias, pois houve destruição de casas, rede elétrica danificada e alguns feridos. Disse-lhes que não é nada agradável assistir a um espetáculo desses, pois eu mesmo presenciara na Argentina ventos de até 130km, severo na opinião de especialistas. Notei que houve certa desconfiança e prometi desde logo escrever um post a respeito do acontecido.
O fato ocorreu no inverno de 2006. Deslocara-me até San Juan, a fim de participar, juntamente com os excelentes pianistas e professores Miguel Ángel Scebba (www.miguelangelscebba.com.ar) e Dante Medina, do III Encuentro Internacional de Piano promovido pela Universidad de San Juan, que se realizou entre 10 de 15 de Julho.
Durante a master class que dei no magnífico auditório da universidade, na tarde do dia 11, por volta das cinco e meia, ouvi barulhos estranhos e breves interrupções da iluminação. Continuei, mas as portas começaram a ranger, como se pessoas quisessem entrar. No momento em que fui abrir uma delas, forte corrente de ar irrompeu, a haver de imediato corte da luz. Algo estranho acontecia. Fomos todos ao saguão e deparamo-nos com espetáculo de impressionar. Pelos vidros espessos do amplo saguão víamos galhos imensos voando, baldes, papéis, árvore a cair, uma nuvem de poeira e de terra deixando a visão do entorno totalmente prejudicada, cenário dantesco acrescido pelo ruído absoluto do El Zonda, o temível vento.
Toda a população dessa região oeste da Argentina, fronteiriça à pré-cordilheira andina, teme o El Zonda. Nasce no Oceano Pacífico e na origem está carregado de umidade. Sobe as encostas dos Andes no Chile onde, em forma de neve, despeja umidade, atingindo a essa altura temperaturas bem abaixo de zero. Ao ultrapassar a cadeia montanhosa, desce pelos vales e planícies, encontra maior ou menor frente quente e, a depender dessas intensidades, infiltra-se e ganha velocidade, aquecendo vertiginosamente a temperatura, que em pleno inverno pode passar do negativo aos 30 graus acima de zero. Uma das causas do El Zonda é a grande diferença de pressão atmosférica entre os dois lados da Cordilheira dos Andes. Geralmente tem sua maior força no fim da tarde, quando as temperaturas são mais elevadas. Segundo os meteorologistas do país vizinho, El Zonda é moderado quando sopra até 50km hora, intenso entre 50 e 100 e severo acima dessa marca.
No dia 11 já sentia um vento estranho no meio da manhã, quando fui a pé ao auditório, distante umas dez quadras do hotel, a fim de realizar a mencionada sessão de master class. O ar estava seco e a poeira, característica nessa época do ano, parecia-me intensa. As altas árvores dos parques tinham em seus topos movimentos inusitados nos galhos mais frágeis. Disseram-me, sem ênfase, que era El Zonda, que sopra todos os anos de Maio a Novembro.
À tarde, durante a master class, El Zonda já havia provocado estragos consideráveis, a causar em sua longa passagem: rompimento dos cabos de alta tensão; incêndios em várias partes de San Juan e em outras localidades, mormente Mendoza; destruição de muitos veículos atingidos pela queda de árvores ou mesmo capotados; redução da visibilidade a quase nada devido à poeira e à terra em suspensão. Colapso total. Dentro do auditório, estávamos alheios ao que se passava no exterior. Depois, ilhados no saguão da Universidade, sem luz alguma, por lá permanecemos até às 2 da manhã. Na lanchonete, à luz de velas, ficamos a dialogar, alunos e professores, sobre música, amenidades e El Zonda. Funcionários mais velhos disseram que raramente viram tão grande intensidade. Durante essa nossa conversa amistosa, soprava violentamente El Zonda pela região. Quando de lá saímos, a velocidade amainara e dirigimo-nos ao hotel. A cidade sem luz parecia ter sofrido um bombardeio, pois apresentava-se caótica. Árvores, entulho, galhos e veículos destruídos, casas destelhadas, muros caídos davam a imagem da catástrofe. Sem luz, subi com uma vela para o meu quarto. Impressionou-me o quadro à minha frente. A poeira tinha alguns milímetros, era uma secura só. A sala de banho plena dessa camada espessa. Nada a fazer, a não ser dormir e aguardar.
No dia seguinte, verifiquei que não havia iluminação. Ao descer munido da vela, um único tema no saguão do hotel e no café às escuras, o temível vento. Na saída, comprei o jornal El Zonda e constatei o resultado da catástrofe. Vento na categoria severo ao atingir de 120 a 130km por hora. O Serviço de Meteorologia da Argentina detectou velocidade de 160 nos contrafortes da Cordilheira dos Andes. Moradores acreditavam que tamanha intensidade não se registrava há décadas.

Recital de J.E.M. San Juan, Argentina, 12/07/06. Clique para ampliar.

Fui novamente a pé até ao auditório e pude observar o estado de calamidade pública, um dia após uma caminhada serena. O caos. Ao chegar, sempre sem luz, dirigi-me à sala de Miguel Ángel Scebba, que gentilmente cedeu seu espaço para que estudasse para o recital que deveria dar à noite no auditório. Durante todo o dia não tínhamos a certeza da apresentação. Ao final da tarde, com o retorno da energia elétrica, ficou definido que o recital seria dado, mercê da agenda apertada do Festival. Certamente a população estava traumatizada e os quinze corajosos ouvintes, que foram à apresentação naquele extraordinário auditório para cerca de 900 pessoas e possuidor de acústica impecável, eram na verdade os dois pianistas professores e os intérpretes inscritos para o curso. Após o recital, um jantar descontraído com todo o “público”, regado pelo generoso vinho tinto de San Juan, selava entendimentos. Nos dias posteriores, dois recitais maiúsculos foram dados por Scebba, em magnífica versão dos Quadros de uma Exposição de Moussorgsky, e por Medina, em ótimas leituras de D. Scarlatti e Mozart.

Entrevista publicada em El Zonda, San Juan, 13/07/09. Clique para ampliar.

Ter estado em San Juan, participado do Encuentro, conhecido intérpretes argentinos de raro valor e, ao mesmo tempo, ter degustado o excelente vinho da região, assim como presenciado o fenômeno mais expressivo da província, El Zonda, resultaria num avivamento da memória tão logo qualquer dos fatores acionado.
Ao regressar à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, conversei com minha talentosa ex-aluna Beatriz Alessio que posteriormente à minha orientação, estudou por quatro anos com Miguel Ángel Scebba em San Juan. Disse-me que conhecia El Zonda, mas jamais com essa intensidade, e que eu fora premiado com essa possibilidade de observação da força da natureza. Realmente, uma experiência inusitada. Pouco sabemos desses fenômenos que acontecem periodicamente no Chile e na Argentina. Impressionam.

The Zonda wind blows from the Pacific ocean, over the Andes Mountains and into the northwest of Argentina. Sometimes reaching 130 km per hour, it is feared by the population of Mendoza and San Juan, where its effects are more impressive. In July 2006 I was in San Juan for a Meeting of Pianists and had a chance to witness in loco the ruthlessness of the Zonda wind, the destruction in its wake and its impact on the community.