Fidelidade Eterna

Camisa de Jair Marinho, década de 60.

O futebol é a coisa mais importante
entre as coisas menos importantes.

Milton Neves

Meu padrinho, de nome Paes, era um português falante. Dono de lojas de sapatos no Rio de Janeiro, estava sempre a visitar São Paulo. Em uma oportunidade, tinha eu oito anos, presenteou-me com uma bola de borracha com cores e emblema da Portuguesa de Desportos. Nascia o torcedor. Gostava tanto daquela bola que, antes de dormir, deixava-a ao lado de minha cama. Curiosamente, meu pai, português, era são-paulino e convenceu dois de meus irmãos a aderirem à sua preferência. João Carlos e eu, que dormíamos no mesmo quarto, preservamos nossas origens. Torcer para a Portuguesa era um duplo orgulho, estruturado na paternidade e na cruz de Avis estampada na bola de borracha.
A Portuguesa, nas fronteiras dos anos 40-50, treinava no Parque do Ibirapuera. João Carlos e eu íamos a pé assistir encantados aos treinos. Certa vez, Nininho cobrou um pênalti – o goleiro era Caxambu – e a bola foi para fora, atingindo em cheio o rosto de meu irmão, que estava perto da trave. João deu uma pirueta e caiu desmaiado. Foi um susto!
A adolescência foi um desfilar de alegrias. Em meados dos anos 50, a Portuguesa tinha o melhor time do Brasil. Seis de seus jogadores foram convocados para a seleção brasileira e nove para a paulista. Um timaço que, não obstante a qualidade, não conseguia ganhar o campeonato estadual. Sempre faltou força da Associação Portuguesa de Desportos junto às Federações e aos Conselhos Arbitrais. O time era tão inconteste em sua qualidade que, apesar da desventura de não ter grande torcida e influência política, por duas vezes foi campeão do Torneio Gomes Pedrosa, que reunia os grandes clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro. Lembro-me até hoje de um dos esquadrões extraordinários da Portuguesa: Muca, Nena e Noronha, Djalma Santos, Brandãozinho e Ceci, Julinho, Renato, Nininho, Pinga e Simão. Realmente, o timaço. Recebeu a Lusa, por três vezes, a Fita Azul, pois foi o time que, em três excursões à Europa, não perdeu nenhum dos 41 jogos disputados. Ou eram vitórias, ou empates. Sim, numa delas perdeu, contra o poderoso Arsenal, pois chegara pouco antes à Inglaterra, que passava por rigoroso inverno. Nenhum outro, na América Latina, superou esse recorde. O tempo passou, a Portuguesa formaria jogadores extraordinários, mas quase todos acabavam sendo comprados por agremiações mais poderosas financeiramente. Incontáveis os craques que vestiram sua camisa: Ipojucã – Pelé afirmaria, em depoimento, que quando jovem sonhava jogar como ele -, Ivair, Enéas, Dener, Leivinha, Ranulfo, Henrique, Dida, Neivaldo, Reinaldo, Zé Maria, Ditão, Jair Marinho, Jair da Costa, Servílio, Marinho Peres, Pontoni (argentino), Nair, Basílio, Daniel González e Taborda (uruguaios), Cabinho, Pampolini, Wilson Carrasco, os pontas velozes Wilsinho e Ratinho, Dicá, Edu Marangon, Rodrigo Fabri, Leandro Amaral, Ricardo Oliveira e goleiros como Caxambu, Lindolfo, Cabeção, Orlando, Félix – guardião da seleção brasileira campeã em 1970 -, Zecão, Miguel, Aguillera (paraguaio), Clemer… Alguns, como Badeco, maestro do meio campo, Djalma Santos – jamais vi puxetas tão precisas, inacreditáveis -, Capitão – o prenome verdadeiro é Oliude -, Zé Maria, o outro ótimo zagueiro, hoje na Itália, o grande Zé Roberto, jogador de carreira internacional consolidada na Alemanha e artista de nossas últimas seleções, são até hoje torcedores e ídolos da pequena, mas calorosa, torcida lusa. Quando a Portuguesa vai bem, esses torcedores, como em passe de mágica, multiplicam-se. É bom destacar que 8% de todos os jogadores que passaram pela seleção brasileira jogaram determinado período na Portuguesa, sendo que, 4% formaram-se nas escolinhas da lusa. A lista de bons jogadores é enorme e os citados vieram-me no momento da redação do post.
Em 1973, disputávamos o campeonato paulista e tivemos de dividir a taça com o Santos por erros do árbitro Armando Marques. Durante a partida, cometeria uma falha imperdoável ao anular um gol legítimo do ótimo centro-avante luso Cabinho. Na decisão por pênaltis, a Portuguesa desperdiçara três e o Santos acertara dois quando Marques, equivocadamente, encerrou a partida. Errou na matemática, mas nosso Presidente, Osvaldo Teixeira Duarte, entendeu lindamente que houve um êrro de Direito e pediu ao time que se retirasse do campo. Apesar do imbroglio, foi uma alegria. Em 1975, disputamos a final com o São Paulo e perdemos por falhas da arbitragem que, aliás, sempre pendem contra a Lusa. É uma injustiça histórica. Quando a Portuguesa disputou a final do Campeonato Brasileiro em 1996 com o Grêmio, em Porto Alegre, poderíamos até perder por um tento de diferença, mas o gol do time gaúcho ao final levou-nos a esperança de sermos campeões.
Dias difíceis vieram. Nesta década, fomos não apenas para a segunda divisão do campeonato brasileiro, como para a segundona do paulista , categoria que dá “cãibra na vista”, na opinião do célebre Dadá Maravilha. Amargamos e, neste 2007, retornamos às divisões principais dos dois campeonatos.
No dia seis de maio, ganhamos a série B do certame estadual. Um feito. Acabara de dar um recital de piano em Paris e fui ao computador mais próximo, acompanhado da amiga e excelente pianista Sônia Rubinsky. Fiquei eufórico ao saber do título conquistado. Minha mulher, Sônia e eu fomos, a seguir, jantar no apartamento dos amigos Roberts, onde todos aguardavam o instante em que a televisão apresentaria a foto do Presidente eleito da França, pois era o dia do segundo turno. Quando, às oito horas em ponto – tradição no país gaulês –, foi mostrado o retrato de Nicolas Sarkosy, houve alegrias e tristezas. Um amigo, adepto de Segolène Royal, perguntou sobre minha preferência. Disse-lhe apenas que estava um tanto quanto decepcionado. De fato gostaria de ver na tela o emblema da Lusa. Enfim, serviu para boas risadas.
Meu irmão João Carlos, torcedor-símbolo da Portuguesa, convida-me sempre para acompanhá-lo ao estádio quando o jogo é em São Paulo, no Canindé. Não vou. Meu amor pela Lusa é íntimo. Nem pela TV assisto aos jogos, conhecendo os resultados ao final das contendas. Sofro menos. Voltado ao passado, reverencio o trabalho de um grande torcedor, Eduardo Campos Rosmarinho, fundador do Museu Histórico, hoje dirigido pelo competente Vital Vieira Curto. Quantas glórias contidas!
Por outro lado, meu afeto pela Portuguesa data de período romântico, em que jogadores permaneciam nos clubes e amavam a camisa. Hoje tudo mudou. Diria que a massificação do futebol – o esporte mais ventilado em todo o mundo – cresceu de maneira desmesurada e os tempos da moralidade esportiva desapareceram. São os grandes clubes, sempre os mesmos, que estão a ser beneficiados perenemente no Brasil e no Exterior. Nenhum time de nosso país pode manter jogadores, que bem jovens, quando talento existe, vão para todos os continentes. Esses atletas, no estágio brasileiro em clube celeiro, grande ou pequeno, só pensam, não sem razão, no sonho d’além-mar. Só esse fato já não evidenciaria um desequilíbrio abissal entre os melhores times do Brasil e os referenciais de Espanha, Itália, Inglaterra? Se, em disputas de, na realidade, um jogo, times sul-americanos levantam taça em Tóquio quando da Copa Toyota, “aparência” da verdade, nenhum, mas nenhum time latino-americano resistiria minimamente a torneios de longa duração disputados na Europa, justamente pela falta de jogadores extraordinários, pois os melhores de todo o mundo estão a jogar no Velho Continente. É fato.
Sob outra égide, mormente em nossas terras, dirigentes são com freqüência personagens de colunas policiais, a arbitragem é seguidamente contestada, torcidas uniformizadas tornaram-se gangues violentas, bilhetes são adulterados ou ficam em mãos de cambistas, lavagem de dinheiro com a compra e venda de jogadores envolve muita gente e é notíciário constante. Haveria prazer para um torcedor nefelibata, que se afeiçoou um dia a uma bola de borracha com o emblema da terra de seu pai, em freqüentar estádios? Difícil, todavia a fidelidade ao meu time é real, solitária e sem quaisquer possibilidades de abalo.
E a saga da Portuguesa continuará. Prejudicada sempre pelas arbitragens, ela resiste. A esperança está representada por sua pequena, mas fidelíssima torcida, constituída por adultos e jovens. A velha nau encontrou uma vez mais seu rumo, apesar das intempéries, retornando à Série A do Campeonato Brasileiro. Louros ao nosso ex-jogador e hoje técnico Vagner Bennazzi, que conseguiu fazer ressurgir a gloriosa Portuguesa de Desportos. Bem haja, lusa de meu universo lúdico.

Prevenção sem Açodamento

Mãos de J.E.M. - Nanquim, John Howard 1982

Não sabem acender a luz
Com suas mãos entrevadas.

Carlos Drummond de Andrade

Fila em caixa de supermercado pode revelar surpresas. Aguardava minha vez e duas moças à minha frente conversavam preocupadas. Uma delas, acometida pela L.E.R., relatava seu infortúnio à amiga. Durante o trajeto de volta à casa fiquei a lembrar de minha posição a respeito do mal mencionado pouco antes.
Meu irmão, João Carlos, submetera-se a uma derradeira intervenção cirúrgica em sua mão esquerda e recuperava-se em hospital de São Paulo. Fui visitá-lo logo após e conheci o médico que o operou, Dr. Ronaldo Azze, Professor Emérito da U.S.P. e excelente ortopedista, especialista em mãos. O cirurgião trazia-lhe boa e má notícia: a operação transcorrera muito bem, mas a mão encontrava-se em estado crítico. Todos conhecem suas vicissitudes, seus esforços em manter-se como pianista após sucessivos traumas. Hoje é um bem sucedido regente de orquestra, para sua felicidade e a de seus admiradores. Realizou a catarse. Naquele encontro, entre outros assuntos, Dr. Azze conversou com João sobre a L.E.R. Na realidade, João Carlos, após problemas físicos na mão direita, que o levaram à completa impossibilidade pianística, tentou nova carreira e, durante um ano, dedicou-se ao repertório exclusivo para a mão esquerda, a resultar em CD gravado. Utilizando princípio lógico, não científico e rigorosamente inusitado, nessa nova empreitada João Carlos aplicaria outra postura ao piano, a contrariar décadas de posicionamento tradicional: sentava-se bem à direita do teclado. Foi acometido pela L.E.R. e, em acréscimo pelo mal de Dupuytren, outro terrível empecilho para quem pratica exercícios digitais. O Dr. Azze afirmaria com apreensão que a L.E.R. tem sido um dos males a levar mais doentes a auxílios do INSS. Externei minha posição sobre o problema. O generoso cirurgião convidou-me para uma palestra no Departamento de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Maio de 2001. Preparei-me, a buscar subsídios comprobatórios à minha teoria, sem fundamento médico, mas embasada em décadas de observação.
Preliminarmente, a L.E.R. manifesta-se em maior número em países onde a informatização tornou-se absoluta. No Brasil, essa doença funcional estende-se basicamente aos digitadores e resulta, numa visão generalizada, em três categorias de demandas junto ao INSS: auxílio-doença, podendo o acometido retornar ao trabalho após restabelecido; auxílio-acidente, concedido basicamente quando, após um acidente e a consolidação das lesões, ficar demonstrado que houve redução da capacidade laboral para a atividade habitualmente exercida; aposentadoria por invalidez, concedida no caso da incapacidade total ou definitiva. Trata-se, em todos os casos, de algo dantesco, e legiões de lesionados pela L.E.R. comparecem diariamente a solicitar providências do INSS.
Na palestra oferecida frisei aspectos que considero fundamentais: a prevenção planejada e sistemática; a necessidade absoluta de as escolas de informática conhecerem princípios de relaxamento muscular, e de as empresas adotarem processos elementares relacionados à progressiva carga de trabalho de seus funcionários digitadores; a exemplificação insofismável, a demonstrar a eficácia de um processo simples, mas de resultados, ou seja, a técnica do relaxamento; a grande economia do Estado adotando atitudes preventivas, o que resultaria em sensível diminuição de portadores da L.E.R.
Na realidade, a prevenção faz-se através de métodos seguros. Considerando-se que a grande maioria dos ingressantes no mercado de trabalho voltado à informática aprende a especialidade em poucas semanas, a conseqüência é vê-la mais ou menos preparada para a profissão, mas absolutamente não apta fisicamente. Esse amplo contingente concorre às vagas disponíveis no mercado, que abrange várias redes: bancária, telemarketing, empresas privadas e serviço público. Ingressante, o jovem inicia imediatamente um trabalho árduo de aproximadamente oito horas, sem qualquer preparo físico muscular ou digital, tendo que permanecer longas horas frente a um computador. As instituições mencionadas, por motivos sempre voltados ao imediatismo, pouco se importam com os efeitos que estariam por vir. Mostrar-se-iam propensas a proporcionar ao ingressante carga horária gradativa, ou seja, mínima hora num primeiro mês e, com a devida adaptação, o aumento do período até as horas regulamentares? Esse fato seria apenas por desconhecimento?
Impressionou-me o efeito causado pelo trabalho digital sem o estudo acurado das causas provocadoras da L.E.R. Some-se, às exaustivas horas diante da tela, a pressão sofrida pelo ingressante no sentido de não poder errar, sob pena, tantas vezes, da demissão sumária e pronta substituição por um outro funcionário, que estará sujeito às mesmas condições estressantes.
Tendo-se como exemplo o pianista, vemos o contacto com o teclado processar-se desde tenra idade, com início normalmente na faixa de 3 a 9 anos. Jamais essa criança começará com volume excessivo. Para aqueles que se dedicam plenamente e que têm a possibilidade da trajetória pianística, há períodos na juventude em que a carga horária poderá atingir até 10 horas diárias de estudo intenso. Porém, tudo é progressivo, muitas vezes sem outros traumas. Entenda-se que o pianista não apenas se utiliza dos dez dedos, como emprega-os simultaneamente quando na execução de acordes, aplica a passagem do polegar sob a mão, desenvolve uma infinidade de processos absolutamente desconhecidos, inúteis e impossíveis em um teclado de computador.
A técnica da digitação é a que o pianista conhece como técnica dos cinco dedos. Como se não bastasse a elementaridade da utilização digital, o peso empregado sobre cada tecla por um digitador é ínfimo. Na prática, a diferença da pressão feita pelas pontas dos dedos sobre um teclado de piano e sobre as teclas de um computador é imensa. Frise-se, para ter mínimas estatísticas utilizei-me de princípio elementar, mas seguro. Freqüento quase diariamente um supermercado perto de casa, conhecendo bem os colaboradores. Autorizado pelo gerente, fiquei ao lado de uma simpática funcionária. A intuição levava-me a adivinhar que determinado cliente utilizava computador e que seria solícito. Pedia então para que pressionasse, com os olhos fechados, os dedos sobre a balança, como se fosse o seu teclado. Repeti o processo em três visitas ao estabelecimento, a testar 18 pessoas diferentes. Os resultados foram surpreendentes. Geralmente entre as mulheres, dependendo do físico mais ou menos avantajado, expressões tensas ou não, o peso digital variava de 30 a 70 gramas, aproximadamente. Entre os homens, de 60 a 130 gramas. Impressiona saber que este peso, ínfimo para nós, pianistas, leva legiões de digitadores à L.E.R. Tomando-se como exemplo minha gravação de Feuillet d’Album, de Alexander Scriabine (1872-1915), peça em baixa intensidade, a pressão de cada dedo sobre a tecla varia de 150 a 600 gramas. Se eu pressionar com intensidade em outras obras, pode atingir 700 a 1.700 gramas ou mais. Caso utilize quatro ou cinco dedos de uma mão ao mesmo tempo, naquilo que denominamos acorde, em intensidade alta, chegará a 3 ou 4 quilos de pressão, ou bem mais, se os acordes forem dados pelas duas mãos em fortissimo. Testei dois alunos para ter maior amostragem. Geralmente, a digitação em computador de um estudante de piano ou de um pianista tem maior impacto, o que é absolutamente natural.
Essas considerações, não científicas, mas apenas conseqüências da reflexão e da observação, não teriam significado maior se não atestassem que para o pianista, que pressiona o teclado com intensidade bem maior do que a de um usuário de computador, rarissimamente o drama da L.E.R. se instala. Haveria razões transparentes a atestarem a veracidade da afirmação. Frise-se, há outros males que podem atingir o pianista, como o mal de De Quervain, tenossinuvite, tendinite, artrite reumatóide, artrose, mas estamos em compartimentos que muitas vezes nada têm a ver com a prática pianística.
O relaxamento muscular é o princípio fundamental desde o início da formação de um pianista, ainda criança. Desde os primeiros anos, se bem orientado, o miúdo assimila com naturalidade a técnica do relaxamento, indispensável ao bom funcionamento digital. Nesse período, o pequeno estará submetido a estudos progressivos, frise-se, não apenas pela faixa etária, como pela própria concentração, que está ainda em processo de sedimentação. Se talento e disciplina conviverem solidariamente, o promissor pianista terá formação harmoniosa. Em períodos mais laboriosos, representados por concursos, preparação de repertório em prazo preciso, o jovem ou o adulto submetem-se a longos estudos diários, e os dedos sofrem impactos enormes. Qual o motivo de basicamente nada de mal ocorrer? Não seriam a preparação progressiva e a noção exata do relaxamento, transmitida por professor consciente, as causas dessa naturalidade? O mestre atento, mesmo sem os conhecimentos científicos, entende pela tradição que toda a descontração muscular passa pela região dorsal, pescoço, ombros, braços, antebraços, punhos, mãos e dedos, destinação final do peso a ser aplicado. Sem a obediência à trajetória do relaxamento haverá bloqueio em algum segmento do complexo físico, a levar ao estresse ou a qualquer contração comprometedora.
Acredito que os bons fisioterapeutas teriam muito a aprender com os mestres de piano sobre o relaxamento que atinge todo o sistema muscular, que se estende até as pontas dos dedos. Considere-se que o método, no caso de pianistas e professores do instrumento, já tem mais de dois séculos e diariamente prova-se convincente. Se escolas de informática tivessem o cuidado de contratar profissionais que conhecessem essa técnica bissecular, apreendida pelos pianistas, já um primeiro passo seria dado. Se as instituições que contratam jovens digitadores se preocupassem menos com os lucros imediatos e mais com a harmoniosa adaptação dos contratados, dando-lhes, sem pressão alguma, carga horária progressiva e assistência de um profissional de relaxamento, haveria a médio prazo resultados surpreendentes. Quem seriam os beneficiados? Certamente o jovem, que estaria apto física e psicologicamente; as empresas que, a médio prazo, colheriam resultados não pensados; a comunidade como um todo, pois haveria enorme diminuição de acometidos pela L.E.R. a buscarem benefícios junto ao Instituto de Aposentadoria. Em um contexto amplo, o legislador deveria estudar normas de adequação, o que obrigaria empregadores a programarem carga horária progressiva para seus funcionários ingressantes.

Diploma de Honra ao Mérito

Quando adentrei um dos anfiteatros da Faculdade de Medicina para a palestra mencionada, fiquei surpreso com a grande quantidade de professores, assistentes e estagiários. Durante a exposição, coloquei algumas de minhas gravações, evidenciando pesos aproximados de percussão digital. As perguntas foram estimulantes. Poucas semanas após, recebi um diploma da Instituição que me deixou sensibilizado. Guardo-o com carinho ao lado de outros, voltados à Música.

R.S.I. – Repetitive Strain Injury
The increasing number of computer users affected by lesions related to occupational activities led me to think about the effectiveness of the muscular relaxation techniques that pianists and piano teachers have been using for 200 years. Employers and trained therapists should know them to assist in the prevention of the onset of R.S.I.

Preferências Eleitas

Je n’ai plus même pitié de moi
Et ne puis exprimer mon tourment de silence
Tous les mots que j’avais à dire se sont changés en étoiles
Un Icare tente de s’élever jusqu’à chacun des mes yeux
Et porteur de soleils je brûle au centre de deux nébuleuses

Guillaume Apollinaire

É característica humana eleger preferências. De toda ordem elas existem e comprovam a assertiva. Países, cidades, lugares, alimentos, profissões, amizades e companhias afetivas, autores literários, compositores, artes no sentido amplo, opção religiosa são privilegiados ao longo de nossas trajetórias. A empatia tem origem profunda ou não, a poder inclusive surgir por mero acaso. Geralmente, a escolha feita tende a sedimentar-se ou servir, acúmulo certificado, para outras escolhas ramificadas daquela. Necessitaria o homem desses amparos a indicar-lhe o norte, e fazem parte de sua formação integral.
No final de 1958, estudava em Paris e, ao tocar nos cursos de piano de Marguerite Long, encontrei o ex-cônsul da França em São Paulo, Baron André de Fonscolombe. Diplomata na acepção, era também um amante da música, pois tocava e cantava com prazer. Convidou-me para ir ao seu apartamento na Avenue Hoche, nº 4. Nascia um relacionamento que se prolongou por um bom tempo. Depois, como diplomata sediado no Quai d’Orsay – corresponde ao nosso Itamaraty –, ele foi ocupar um outro posto fora da França.
Durante esse período, quase todas as quartas-feiras à noite jantava informalmente com Monsieur le Baron, em companhia de sua esposa, filhos, Simone de Saint-Exupéry, prima irmã do anfitrião, e um príncipe russo. Poderiam ser apenas reuniões triviais, não fossem as extraordinárias sessões após o jantar. André de Fonscolombe apagava as luzes e deixava apenas um abajur aceso. Simone, irmã de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), sentava-se perto da luz, retirava de uma pasta algumas folhas e lia trechos de Citadelle, obra prima do piloto-escritor. Foram inúmeras as sessões de leitura nas quais, pausadamente, Simone enfatizava os escritos e os vários segmentos juntados, a fim de se chegar ao texto final, que seria publicado em 1959, com outras obras do autor, na coleção Bibliothèque de la Pléiade (France, NRF, 1008 págs.). Simone esteve à testa desse hercúleo trabalho, no qual não faltou a interpretação de palavras chaves de Citadelle, mas com significados diferentes no transcurso das narrativas que compõem o livro. Dissera que o trabalho fora imenso, pois Saint-Exupéry escrevia e por vezes deixava gravado alguns textos, que eram transcritos posteriormente. Fez-nos ouvir alguns desses registros com a voz do autor. Os textos de Citadelle, muitas vezes, remetem à mesma temática desenvolvida sob outros contextos. Após uma interrupção para a tizane, eu tocava num Erard de meia cauda peças que estava a estudar. Voltava-se à leitura e, por vezes, ficávamos a ouvir sentados sobre os tapetes. Ao finalizar, Simone respondia às nossas indagações a respeito de Citadelle como síntese do pensamento do ilustre humanista. A magia dessas reuniões planava sob a aura do personagem no sentido profundo de sua dupla ação: o piloto solitário que entendia a mensagem das estrelas na longas noites a sobrevoar continentes e oceanos, e o escritor que em sua obra maior, Citadelle, captava as reações humanas, boas e más, a interpretá-las. Nos solilóquios aos quais o autor se impõe na obra, há sempre a profunda reflexão sobre o homem e suas aspirações. Simone sabia traduzir-nos intenções ocultas contidas na criação e Saint-Exupéry penetrava-nos através de parcela de sua dimensão. Apesar de o piloto-escritor ter em mente o plano geral da obra, ela ficaria inconclusa. Todavia, a reunião de textos visando ao livro final publicado daria a este monumentalidade. Como afirma Simone de Saint Exupéry na apresentação de um glossário da publicação mencionada: a obra aborda todos os problemas da destinação humana e das condições do homem.
Tinha perdido com o tempo o contacto com os Fonscolombes. André já falecera, mas seu primo irmão, Bennoit de Fonscolombe, lembrou-me, neste ano, traços marcantes do diplomata-intelectual e de sua extrema generosidade. Foi graças ao Baron de Fonscolombe e a sua prima Simone que me encantei com a obra de Saint-Exupéry, que será motivo de posts futuros. Li sua opera omnia, apreendendo reflexões densas e profundas. Foi tão marcante essa influência que, em 2004, acometido de um linfoma com prognóstico plúmbeo, a levar-me a muitas sessões de quimioterapia, pensei à noite, poucas horas após o diagnóstico: qual o livro mais marcante dentre todos aqueles que me fizeram companhia ao longo da existência? Precisaria encontrar o equilíbrio a partir da família, dos amigos verdadeiros, da música, da fé e da leitura. Esta poderia corroborar a paz interior necessária a tudo suportar. Veio-me a mente Citadelle. Durante um ano e meio reli, antes de dormir, duas ou três páginas e refletia. Finalizei a leitura, quase quarenta anos após a primeira visita à obra. Realmente um monumento. Ajudou-me a reencontrar a paz relativa sempre almejada. A saúde sub judice, nessa trégua que me foi concedida por um Poder Maior, faz-me entender ainda mais o maravilhamento de Citadelle e…da vida, através do fervor, uma das palavras paradigmáticas do livro. E tudo teria começado através da inefabilidade dos textos lidos por Simone de Saint-Exupéry. Citadelle, corolário de tantas outras obras do autor: Courrier Sud, Vol de Nuit, Terre des Hommes, Pilote de Guerre, Le Petit Prince…

My friendship, back in the fifties, with Baron André de Fonscolombe and his cousin, Simone de Saint- Exupéry, who was the sister of the French writer Antoine de Saint-Exupéry. It was thanks to Simone and the Fonscolombe family that I was made familiar with the remarkable book Citadelle (translated into English as The Wisdom of the Sands), a collection of the writer’s reflections about humanity, published posthumously as a series of parables. A most extraordinary book, which I recently read once again and that helped me through a serious illness.