O compositor Ricardo Tacuchian e a maturidade plena

O contingenciamento de recursos para a música clássica
é um crime que se perpetua contra as futuras gerações,
contra as camadas mais humildes da população
e contra o nosso status de país civilizado.
O congelamento ou corte de verbas para a cultura em geral
e para a música clássica em particular
já está nos cobrando um custo social alarmante.
Isto sim, é preconceito, é elitismo, é discriminação
às camadas menos favorecidas da sociedade.
Agora, mais do que nunca, precisamos da Música Clássica.
Ricardo Tacuchian
(aula inaugural)

Proferir uma aula inaugural em curso de pós-graduação exige competência do professor convidado, precedido pelo acúmulo de conhecimento. Essa assertiva estabelece de imediato a integração entre o Mestre e os ingressantes aos cursos de pós-graduação. Prefiro a palavra Mestre a qualquer outra da carreira universitária, pois, apesar de indicar o início da jornada na pós-graduação, através da história Mestre sempre designou a excelência máxima. Minimizaram-na.

Ricardo Tacuchian é um dos nossos mais importantes compositores e um dos mais lúcidos pensadores. Sua obra tem sido interpretada no Brasil e em vários países do mundo, sempre a ter recepção condigna. Extensa, sua produção abrange inúmeros gêneros. Para aquelas destinadas a conjuntos orquestrais, Tacuchian se mostra um regente competente. No magistério, Ricardo Tacuchian formou inúmeros músicos, que hoje atuam com dignidade em tantos rincões.

Convidado pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), ministrou a Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Música da Instituição de Ensino e, entre os vários temas de grande interesse abordados, a problemática da Música na atualidade é tratada. Antes de abordar algumas reflexões de Tacuchian, diria que a transmissão através de sua larga experiência revelou a independência do pensar e o olhar a atualidade musical com singular acuidade.

Com preocupação, Tacuchian observa o desmilinguir das instituições e, apoiando-se na teoria do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), corrobora o posicionamento de uma modernidade líquida, a contrastar com a modernidade sólida do passado. Essa assertiva pode ser constatada mormente nas áreas da cultura em geral e da sociologia.

Tema que debatemos inúmeras vezes neste espaço refere-se à apreensão que o ouvinte tem de determinada obra. Tacuchian observa com agudeza: “Não existe nada mais fluido do que a música. Ela desaparece quando termina a performance. Se, numa primeira audição, deixa-nos uma forte impressão, esta pode diminuir com o passar do tempo. O tempo, por sua vez, é outro conceito fluido que sempre desafiou os filósofos e cientistas. Às vezes, a impressão causada por uma primeira audição musical se intensifica com o tempo; outras vezes, esta primeira se reduz ou até desaparece”. Lembraria o pensamento do ilustre regente Ernest Ansermet (1883-1969) ao considerar que, para uma obra se manter na memória do ouvinte, haveria a necessidade de parâmetros como melodia, ritmo e outras referências que o induzem a reter o que ouviu. Verifica-se, sob outra égide e em quantidade incalculável, que a maioria das apresentações de criações contemporâneas se restringe apenas a uma primeira audição. O compositor francês Serge Nigg (1924-2008) não afirmaria que sentia frio na espinha ao verificar que, num Festival de Música Contemporânea, haveria 80 primeiras audições mundiais?

Tacuchian tem clareza ao considerar a importância da Pós-Graduação em termos de orientação na trajetória de um postulante à dissertação ou tese. De sua posição “Na verdade, depois que terminamos uma graduação, entramos na fase de pós-graduação para o resto da vida”, diria que nos deparamos com duas categorias de pós-graduandos. Há aquele que desenvolverá seu trabalho acadêmico a focalizar um tema que jamais será abandonado em sua trajetória de vida. Continuará o aprofundamento, enriquecendo seu acervo cultural sobre a temática. Isso não exclui um olhar para outros temas que surgirão pela frente e que caminharão paralelamente a um ou mais focos de atenção. O que é deplorável é a verificação, tão comum, de pós-graduandos que escolhem um tema qualquer a objetivar apenas a ascensão na carreira. Em blog bem anterior (vide “O Drama da Pós-Graduação”, 21/06/2007) comento o caso de um ex-aluno que encontrei tempos após sua conclusão de mestrado. Perguntei-lhe como estava a desenvolver a temática depois da conclusão do mestrado, recebendo a resposta que “jamais voltaria àquela temática que me cansara tanto” e que estava tentando uma bolsa para o doutorado! Esses “pós-graduandos” existem, não são poucos e, infelizmente, as universidades estão abarrotadas em seus almoxarifados de dissertações e teses que jamais serão consultadas. Tacuchian aponta os percalços para que objetivos sejam atingidos: “E nesta jornada enfrentaremos uma série de desafios conceituais e de pesquisa, alguns contratempos e muitos imprevistos e surpresas. Nos cursos de pós-graduação propriamente ditos uma visão holística dos focos de estudo deve ser uma preocupação do investigador”. Concordo plenamente com Tacuchian a abraçar esse termo utilizado em Portugal à palavra pesquisa, hoje vulgarizada para quaisquer outros trabalhos acadêmicos.

A partir de uma observação fulcral de Tacuchian  “Em geral, um curso de mestrado visaria mais à organização do conhecimento, enquanto o doutorado seria a criação de conhecimento. Entretanto, os limites entre estas duas áreas às vezes se superpõem” —, consideraria uma poética visão de meu saudoso amigo Guido Soares, professor titular de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP. Dizia ele que no mestrado entramos numa floresta e observamos plantas e árvores, no doutorado entramos novamente e focalizamos uma árvore em especial, dissecando-a e, na livre-docência, sobrevoamos a floresta já com o conhecimento possível do todo.

Após mencionar Mario Vargas Llosa em obra capital, La civilización del espectáculo, ao escrever que “o conceito de cultura se estendeu tanto que passou a abranger tudo. E, se a cultura é tudo, também já não é mais nada”, Tacuchian comenta, a questionar: “a palavra Cultura foi sequestrada para a expressão Cultura de Massa ou Indústria Cultural, que funciona com o conceito de produção em série. Mas a obra de arte não seria, antes, a peça única e nunca uma fordiana produção em série?” Entende obsoletos os vários e calorosos debates em torno da criação musical nos meados do século XX, mercê do “sectarismo estético e da arrogância da ‘certeza’, pois todos eles ficaram superados em nossa era da incerteza”.

Da experiência com o experimentalismo, desde os ensinamentos que captou  de Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), Tacuchian compreenderia com o tempo que a instantaneidade não era seu caminho: Tece reflexões sobre o experimentalismo: “Uma de suas principais teses é que o principal critério de valor da obra de arte seria o uso do signo novo. O artista deveria dar as costas para toda a tradição e partir para a aventura do desconhecido. O grande mestre não considerou uma questão capital, que foi apontada pelos semiólogos da época: uma das características do signo novo é o seu envelhecimento precoce. Assim, uma música experimental em sua primeira audição se tornava velha logo em seguida, e saía do repertório. Ia do espanto para o esquecimento ou do impacto para o déjà-vu. Havia compositores que afirmavam que a música era como se fosse um pão do espírito e deveria ser consumida, sem deixar vestígio para a posteridade: ‘O pão nosso de cada dia’ que desapareceria depois de devorado”.

Desesperançoso com o experimentalismo que, pelo sectarismo que distanciava o compositor do público, aquele a não se importar com a recepção deste, Tacuchian considera que “O criador não se submeteria às exigências meramente mercadológicas, mas representaria os anseios de uma determinada parcela do público. Esta parcela seria aquela que tivesse os mesmos anseios estéticos de cada criador. Assim, o compositor escreveria música para um público que ele escolheu e não vice-versa. Assim, ficaria preservada a independência estética do artista e a sua comunicabilidade com o ‘seu’ público”. Há não muito tempo li entrevista de um compositor eletroacústico a dizer que sabia bem que escrevia para um público determinado, pequeno, um gueto.

A partir do início do século, Tacuchian confessa que “não precisaria seguir uma determinada corrente estética” e afirma seu desiderato na busca da “criação de uma música simbólica e mais humana, isto é, ligada aos anseios psicológicos e sociais do homem moderno; e, last but not least, a ênfase no idiomatismo instrumental com exploração de todos os recursos naturais do instrumento e/ou da voz e suas possíveis extensões”.

A seguir, Tacuchian aborda métodos de trabalho a fim do aprofundamento e suas palavras refletem a experiência de décadas de uma constante prática na criação e na didática. Considere-se a constância, o não abandono de metas propostas: “Se um especialista para de investigar por um longo período, quando voltar à prática da criação ou organização de novos saberes vai perceber que sua mão está pesada e que as ideias não fluem com a mesma naturalidade de antes”. Essa assertiva ocorre em todas as práticas, sejam elas voltadas às artes, aos esportes, à vida. Estou a me lembrar de meu saudoso pai, que insistia na repetição de termos chaves: método, disciplina, perseverança, concentração.

Tacuchian faz crítica àqueles que menosprezam a cultura denominada “de elite”, acreditando nas lições da história, determinando “que é nos momentos de crise que o homem comum mais necessita das grandes manifestações do espírito para aplacar as dores da realidade”.

Sobre a eterna insatisfação de um criador, sempre a pensar em nova obra, em como ter um objetivo que, a princípio, está envolto em névoas que se dissipam no decorrer da caminhada, Ricardo Tacuchian conclui: “Vocês podem me perguntar se estou satisfeito com estes objetivos. Eu responderia que não. Estamos em permanente busca de um ideal que, embora saibamos inalcançável, gera um movimento que nos mantém vivos. Um jovem sem esta procura já envelheceu; um idoso com este anseio de novos caminhos será eternamente jovem. Assim deve ser a vida, a arte e, consequentemente, a pós-graduação”.

Bem mais do que uma aula inaugural, o texto do notável compositor Ricardo Tacuchian é um documento que ultrapassa o tempo e traduz as angústias daqueles que transitam pela arte erudita livre de arbítrios que atraem holofotes, mas que se mostram efêmeros, sem deixar quaisquer raízes. A arte erudita, seja ela qual for, e a verdadeira arte popular de raízes profundas, sem a contaminação de interesses vis que atraem uma mídia culturalmente em declínio, ainda respiram. Esperanças tênues ainda se mostram na linha do horizonte. A erudição pressupõe o caminhar sem o olvido da história. Ricardo Tacuchian bem afirma que “Ninguém começa pelo meio, mas a partir das conquistas do passado”.

Em 1985 organizei uma publicação de oito composições em homenagem ao insigne compositor Henrique Oswald. Dos oito autores convidados, três se “inspiraram” na consagrada peça para piano do homenageado, “Il Neige!”. Francisco Mignone (1897-1986) escreveria “Il Neige Encore”, Gilberto Mendes (1922-2016), “Il Neige de Nouveau” e Ricardo Tacuchian (1939- ), “Il Fait du Soleil”.

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, “Il Fait du Soleil”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=aUuE9z90dpc

Composer Ricardo Tacuchian has recently given the online Inaugural Class for the post-graduation course at the State University of Paraná. In this blog I comment on some of the many interesting topics addressed in his lecture.

 

 

 

 

Ecos de “Tendências da composição”

Recepção seletiva a respeito de tema polêmico

O artista não conquista pela vida, mas pela imitação;
cada forma é originalmente
a luta de uma forma potencial contra uma forma imitada.
André Malraux (1901-1976)
(Psychologie de l’art)

Entre as muitas mensagens recebidas, selecionei sete, que abordam o complexo período que atravessamos no campo das artes, mormente, no caso, o da criação musical desde parte considerável do século XX. Apontar os gigantescos avanços tecnológicos, neles inserido o acesso à internet, já se tornou lugar comum. Essas transformações influíram decididamente na conduta do homem frente à ética, à moral, mercê de liberações discutíveis, assim como acentuando três dos mais desprezíveis males da humanidade, o egocentrismo, o descaso social e a corrupção, esta que em nossas terras tornou-se endêmica.   Caminhos que se descortinam sem volta, hélas. Já adentrado na oitava década, percebo que essas mudanças foram de ordem tsunâmicas, colocando por terra inúmeras conquistas do homem através de milênios. Passo a passo caminhou a humanidade, mas nesses últimos decênios as alterações se mostram em patamares sem precedentes.

As rupturas no campo da denominada música clássica, erudita ou de concerto, termos que poderão perder validade nessa avalanche transformadora, são incontáveis. Como exemplo, em pleno século XVIII, com os arcaicos meios de comunicação e de deslocamentos, em Alemanha, França, Espanha, Portugal e Itália compositores professavam cartilhas bem próximas sobre as formas musicais, basicamente homogêneas nesses países, com variantes certamente. Seguiam-se padrões, respeitavam-se as conquistas adquiridas, que se tornavam democráticas. Os compositores delas se beneficiaram. As inovações paulatinamente eram assimiladas por todos os criadores. Se talento houvesse, obras-primas estariam garantidas. Incontáveis. A ausência do efêmero fez com que as formas pudessem sedimentar-se, um dos fatores essenciais para a abundância criativa. O “Traité de l’Harmonie réduite à ses principes naturels” (1722), de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), teria validade prioritária durante quase dois séculos!

Não é difícil entender que a aceleração de tantas tendências nessas últimas décadas impossibilita o tempo de maturação e, na ânsia do ineditismo, o abandono do passado se torna o “grito” de independência, aparência da verdade. Transformações da escrita musical e teorias que surgem para fenecer sem deixar saudades, substituídas por outras igualmente transitórias e sem embasamento, fazem parte de um complexo cotidiano. É esse fato preocupante? É-o, na medida em que não deixa lastros por não fixar raízes, e por seus adeptos buscarem sem cessar erigir novas teorias para justificar “criações” como provas de “competência”. Sequer há tempo para a sedimentação. Na atualidade galopante, esses “criadores” não fixam suas impressões digitais, essência essencial que determina o estilo de um compositor. Quantas não são as tendências e, se compositores capacitados escrevem inteligivelmente, sabedores de que houve um passado e o conhecendo, já há tempos “compositores” criam “gêneros” e “formas” musicais que surgem, tantas vezes arbitrariamente, e que se estiolam com rapidez. Entre estes últimos, há aqueles que frequentam a ruidosa Torre de Babel, onde prolifera o joio sob o manto de uma parafernália de ruídos e sons, tornando-se impossível identificar a semente originária, pois se deforma o que se entende por música.  Num sentido amplo, para aqueles que tiveram sólida formação, a escrita musical, se amparada pelo talento, é explicada com coerência e não é difícil encontrarmos as raízes de uma hodierna criação meritória. Não obstante, proliferam “compositores” mais recentes que poderíamos colocar num plano de livre atiradores. E eles são muitos. Frase do ilustre compositor francês Serge Nigg (1924-2008) diz muito: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ‘80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”. O mesmo ocorre com as artes plásticas. Observei, em blog bem anterior, opinião de meu saudoso amigo, Luca Vitali (1940-2013), pintor e artista de reais qualidades. Estávamos visitando uma mostra de pintores abstratos e Luca me disse algo que retive: “Não preciso me aproximar tanto de um quadro para detectar o talento”. Apontou-me alguns nessa categoria, mas salientou a presença dos oportunistas, aqueles não bafejados pelas musas. Afirmou: “esses certamente jamais realizaram um só desenho que prestasse”. Joio e trigo se confraternizando em exposição, o que demonstraria que vivemos num período complexo e possivelmente em direção a um vazio. Talvez.

Os comentários ao blog anterior foram pertinentes e agradeço a viva colaboração dos que me enviaram mensagens:

Gildo Magalhães (professor titular de História da Ciência da FFLCH – Universidade de São Paulo):

“São instigantes colocações. Acho muito forte e adequado o pensamento de que a música fala ao coração. Mas a música contemporânea costuma falar ao cérebro, então não sei se adianta para o grande público escutá-la tantas vezes quantas forem. Pode ser que, em alguns caso, sim. Mas pode não se tratar unicamente do público afeiçoado às salas de concerto, ou viciados só nos compositores mais tocados. A poesia, a pintura, o cinema que falam ao coração também sobrevivem melhor”.

Eurico Carrapatoso (compositor português e Professor do Conservatório Nacional em Lisboa):

“As aparências (ismos) iludem, por natureza agrilhoadas ao gosto pessoal, à conjuntura, à moda, às paixões humanas, enfim, elementos todos eles feridos de baixa categoria filosófica.

Só a essência importa: aquilo que é, perene, firme, verdadeiro e coerente, expresso no compromisso da honestidade e da alta filosofia.

O talento criativo não circula nos canais da moda e de suas maquilhagens. O talento criativo paira acima do tempo”.

Paulo Costa Lima (compositor e professor titular da Universidade Federal da Bahia):

“Fiquei muito feliz ao ler o seu texto sobre as tendências em composição, e também muito orgulhoso de ver a nossa cria - Imikaiá - oferecida aos leitores. Um bálsamo para esses tempos tão ásperos”.

Ricardo Tacuchian (compositor e professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro):

“Mais uma excelente e bem documentada reflexão que você faz sobre os caminhos da música contemporânea, em seu blog que sempre acompanho com avidez. Agradeço as referências generosas que você fez ao meu nome.

Por coincidência, há três dias ministrei a Aula Inaugural do Programa de pós-graduação em Música da UNESPAR, onde eu, em alguns momentos, comento as questões sobre a Música de nossos dias. Você verá que, com a idade, cada vez mais fico perplexo com o mundo em que vivemos e mais convencido da imprevisibilidade do futuro da humanidade. Se você tiver tempo e paciência, eu encaminho o texto em anexo”.

Ricardo Tacuchian, um dos nossos mais relevantes compositores, enviou-me seu instigante texto de recente Aula Inaugural - “Novos Tempos e a Pós-Graduação” - para os cursos da UNESPAR (Universidade Estadual do Paraná), proferida recentemente online. Creio de interesse comentá-la no próximo blog, justamente pelo fato de que tem o olhar para vários aspectos basilares da criação contemporânea frente às transformações em quase todos os campos da atividade humana.

Flávio Viegas Amoreira (poeta, contista e crítico literário):

“Esse texto e a iniciativa de rastrear as tendências, os sintomas, os ecos das novas linhas composicionais resultam brilhantes: texto e iniciativa consequente por um intérprete e musicólogo ímpar fazem falta no universo literário; costumo denominar nosso tempo de ‘tranZmoderno’, com Z mesmo: em transe ética e esteticamente. Parabéns mestre, saudades do amigo ….”

João Afonso, meu ex-aluno que formulou perguntas que motivaram o blog precedente:

“Obrigado professor pelas respostas. Achei bem interessante a sua opinião sobre os compositores de hoje. Também acho que são muitas as escritas. Não consigo mais reconhecer quem é quem entre os muitos compositores que estão nas melhores escolas daqui da Europa.

Eliane Mendes (formada em Química e Ciências Físicas e Biológicas pela Universidade Católica de Santos, é viúva do compositor Gilberto Mendes):

“Como sempre, um excelente artigo, em cujo tema, por coincidência, estava pensando nestes dias, constatando o distanciamento cada vez maior do público quanto à música erudita contemporânea.

Acho que teríamos que voltar no tempo, ao século passado, onde a tendência seria da ruptura com a música erudita convencional de concerto. Acho que isso se deve ao que os alemães chamam de “espírito do tempo”, com o espírito da época pedindo por rupturas com os dogmas tradicionais, a exemplo do movimento hippie.

Sempre me questionava, quando acompanhando o Gilberto em concertos de música contemporânea, sobre a inexistência de uma linguagem própria entre a maioria dos compositores contemporâneos, o que se devia a uma falta de embasamento cultural, com a maioria deles querendo fazer uso das técnicas contemporâneas, mas sem ter conhecimento nenhum das técnicas musicais do passado.

Acho que um exemplo seria o ballet moderno, onde muitas vezes os bailarinos desprezam e até rejeitam o aprendizado do ballet clássico, fundamental para um aprimoramento técnico, assim como na pintura, com muitos pintores indo direto à pintura abstrata, rejeitando e desprezando as técnicas tradicionais.

Tudo isso leva ao vazio, a uma ausência de linguagem própria em todos setores da arte, seja na música, na pintura, na dança e até mesmo na literatura, pois sem bagagem interna nada podemos transmitir, a não ser o vazio da ignorância do Ego.

Esse vazio da ignorância do Ego pude constatar no Centro de Pesquisa de Música Eletroacústica, em Paris, onde, visitando junto com o Gilberto, pude observar até de uma maneira ridícula os músicos eletroacústicos fechados em uma sala particular, nos olhando de maneira superior, como que nos dizendo: ‘Não estão vendo que estão perturbando a criação do gênio que eu sou?’ Numa gravação pela TV Cultura, no Centro Maria Antonia, durante o Festival Música Nova, me lembro de algo que foi dito e com o que concordei plenamente: ‘Os músicos contemporâneos brasileiros dos anos 60 são muito mais modernos do que os compositores contemporâneos jovens, pois estes se direcionam para aquela época do passado recente para compor, enquanto os compositores contemporâneos mais antigos continuaram indo em frente, como o Gilberto, o Jorge Antunes e tantos outros, pois eles utilizaram todas as técnicas musicais do passado em suas obras, criando cada um deles uma linguagem nova para si mesmos’.

Enfim, em resumo, para tudo na vida, até no dia a dia, se não tivermos um embasamento, nos tornamos sem referencial, um ‘nada’, perdidos na ignorância de nosso Ego vazio. Mais uma vez obrigada pelo excelente artigo. Fico sempre esperando por eles todos os sábados, me sentindo honrada em recebê-los”.

O notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016) compôs o “Estudo, Ex-tudo, Eis tudo Pois”, In Memoriam Jorge Peixinho, pungente criação dedicada ao ilustre compositor Jorge Peixinho (1940-1995). Ao apresentar a obra em Gent, na Bélgica (11/09/1997), o ilustre artista plástico belga Jan De Wachter (1960- ), presente ao recital, realizou os desenhos dedicados à obra de Gilberto, ao homenageado Jorge Peixinho e ao intérprete. Igualmente foi o autor do desenho a saudar “Vassourinhas” de Paulo Costa Lima, criação que também interpretei naquela récita. Como sempre, nessa última década, meu dileto amigo Elson Otake tem generosamente se ocupado da montagem e inserção de minhas gravações no Youtube.

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, “Estudo, Ex-Tudo, Eis Tudo Pois”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=eXy69fjF-Yw

The reception to the previous blog was encouraging. I have selected seven messages from figures connected to the arts who express interesting views.

 

Reflexões após questionamentos

La musique c’est le langage du coeur
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

Recebi instigante mensagem de um ex-aluno, João Afonso, hoje em atividade no Exterior, questionando-me sobre as múltiplas tendências da composição musical que, em um acelerar contínuo, avançam desde as primeiras décadas do século XX. “Qual a razão da multiplicidade de tendências ter público tão pequeno e não entusiasmar aquele habituado ao convencional? Os que vão às apresentações de música dodecafônica, eletroacústica ou experimental constituem público bem inferior àquele que continua a ouvir as grandes composições do passado e parece ter certa repulsa aos concertos habituais. O que se passa? Será que essas tendências mais recentes serão aceitas com o tempo? Os pianistas do passado tocavam obras do seu tempo?”

É muito difícil responder ab abrupto. Qualquer resposta incorrerá em controvérsia, pois o tema não implica unicamente a música, mas a arte como um todo, nessa vertiginosa caminhada do homem frente não apenas à tecnologia galopante, mas às transformações dos costumes em geral. Ao longo de catorze anos de meus posts hebdomadários ininterruptos, em vários deles abordei essas questões sob diversos prismas e há correntes distintas em termos de público: aquele entusiasta ou “provocativo”, em número restrito voltado à música contemporânea; o outro, com contingente bem maior, que ouve em salas de concerto as composições criadas a partir do século XVIII às primeiras décadas do século XX, mormente as obras do denominado período romântico. Esse público tradicional é afeito ao repertório que conhece. Frequentará as salas, mas preferirá largamente ouvir as Sinfonias nºs 5, 6, 7 e 9 de Beethoven do que outras do autor. Um saudoso amigo, médico competente, generoso e pianista amador, Dr. Ruy Yamanischi, disse-me certa vez, quando o convidei para recital em que apresentaria obras em primeira audição, que preferia ouvir N vezes a 5ª Sinfonia ou a 1ª Balada de Chopin a ouvir, desses compositores referenciais, obras bem menos tocadas ou, então,  criações contemporâneas. A fala desse querido amigo, cuja bondade se refletia através de atos – jamais cobrou um centavo de alguns colegas músicos que a ele apresentei –, traduz o pensamento da esmagadora maioria desse público de concertos.

Quanto ao público, é nítido que as composições hodiernas compostas nessas multidirecionadas propostas, mormente a partir da segunda metade do século XX, poderiam ser uma das causas do afastamento dos frequentadores habituais dos concertos, pois a prolixidade e a diversidade os impedem de reter o que ouviram. Para a imensa maioria do público, essa ininteligibilidade é uma das variantes para o distanciamento.

O insigne regente e musicólogo suíço Ernest Ansermet (1883-1969), em texto de 1967, “Les réalités de la vie musicale”, inserido em “Écrits sur la musique” (Neuchatel, à la Baconnière, 1971), escrevia, a contrariar tendências que surgiam: “O argumento fundamental dos músicos de vanguarda e daqueles que os apoiam e daqueles que toleram sua música é este: é necessário mudar, é preciso caminhar com o tempo – ou seja, o argumento mais pueril, o mais superficial e o mais preguiçoso que se possa evocar a propósito da arte, pois o essencial é que a música continue como música, com os atributos humanos da música”. Ansermet não descarta seus coetâneos, realizando primeiras audições de tantos deles ou mesmo apresentando obras outras desses autores, como Stravinsky, Bartók, Honegger, de Falla, Debussy e Ravel. Frise-se que Ansermet nutria uma idiossincrasia por Arnold Schönberg (1874-1971), criador do dodecafonismo. Nessa mesma orientação, o compositor Serge Nigg (1924-2008), introdutor do dodecafonismo em França  (1946), tendo se distanciado da série dodecafônica (sistema a permitir os doze sons da escala cromática, impedindo contudo a repetição de qualquer dos doze sons que a compõem) e dos epígonos que adotaram o serialismo, afirmaria tardiamente: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda”. Em entrevista sob outra perspectiva, comenta: “Fui sempre totalmente alérgico à música eletroacústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletroacústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade”. Em post bem anterior, escrevi resenha sobre suas entrevistas publicadas na série “Témoignages” pela Université Paris-Sorbonne (vide Serge Nigg, 04, 03, 2011).

Mencionaria o notável compositor português, saudoso amigo Jorge Peixinho (1940-1995), que me dedicou o magnífico Étude V – Die Reihe Courante (1992), em que desmembra a série (12 notas). O querido amigo Elson Otake, responsável nesses últimos anos pela introdução de minhas gravações junto ao Youtube, preparou a montagem do Etude V Die-Reihe Courante nessa sexta-feira, 30 de Julho.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V Die-Reihe Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Quanto aos pianistas do passado frente ao repertório de seus coetâneos, diria primeiramente que a linguagem dos compositores do período ainda atingia aquilo que Rameau evidenciava como destinada ao coração. Ricardo Viñez (1875-1943) apresentava obras de Claude Debussy, Maurice Ravel, Isaac Albéniz, Enrique Granados; Blanche Selva (1884-1942) interpretou em primeira audição os quatro cadernos de Iberia, de Albéniz; Vladimir Horowitz (1903-1989), a Sonata op. 26 de Samuel Barber; Tatiana Nicolaieva (1924-1993), quase toda a criação de Dmitri Shostakovitch e tantos outros exemplos poderiam ser elencados.

Teríamos ainda um outro problema. Constata-se que as novas gerações de pianistas estariam mais atentas às suas carreiras, que tantas vezes são impulsionadas pelos concursos internacionais, regidos pelos repertórios da tradição. Consolidados, efetiva ou provisoriamente a essas criações dedicar-se-ão durante a existência, fato comentado pelo ilustre compositor e teórico musical argentino Juan Carlos Paz (1897-1972). Ao mencionar uma conterrânea, vencedora do Concurso Chopin de 1965, escreveria sem nomeá-la: “Magnífico, lástima que artisticamente inútil. Para que serve, efetivamente, outro fenômeno pianístico a juntar-se aos já existentes, produtos da nefasta disciplina geradora de virtuoses que, durante trinta anos ou mais, passearão seu repertório chopiniano, lisztiano, beethoviniano diante de estagnados, estáticos e estúpidos auditórios que desejam ouvir a cada dia as mesmas obras e para os quais só interessa o espetáculo desportivo com que os brinda o virtuose favorito?” Após outras considerações, finaliza: “Resultado positivo: negócio para empresários. Nada mais”. (Juan Carlos Paz, “Alturas, tensiones, ataques, intensidades” – Memorias I. Buenos Aires, De La Flor, 1972).

Para este pianista nos seus 83 anos, que ao longo da existência frequentou repertório do barroco à contemporaneidade, tendo realizado a estreia de cerca de 170 músicas, 80 delas escritas para projeto de Estudos por compositores relevantes de diversos países e que teve a exata duração de 30 anos (1985-2015), a diversidade de tendências se fez presente. Só não propus aos compositores Estudos com a intervenção eletrônica ou com o piano preparado, bem antes de conhecer as palavras de Serge Nigg. Nesse quesito fica-me a lembrança de recital que dei na University of Wales em Cardiff, capital do País de Gales (1996), quando três pianos de marcas diferentes estavam à minha disposição. Disse à Diretora da Universidade que preferia uma marca em especial, recebendo resposta a dizer que o mesmo teria de ser reparado, pois um pianista convidado tocara na noite anterior repertório com obras para as quais o piano teve de ser preparado, pois teve entre as cordas grampos, abafadores, bolas de gude, etc, etc… Comprovei que cordas estavam rompidas e martelos quebrados! Sob outra égide, repito comentário depositado em um post bem no início de meus blogs. Na Inglaterra, onde estive para palestra em Colóquio sobre Claude Debussy (1993) na Universidade de Londres, um participante inglês relativamente jovem entregou-me um Estudo para piano, sabedor de meu projeto. Numa leitura superficial observei que a peça era impossível de ser executada, pois por vezes exibia seis ou sete vozes num grande emaranhado de passagens com ritmos diferentes. Incrédulo, perguntei-lhe se alguma vez compusera uma fuga. Respondeu-me imediatamente: “Não, pois se trata de uma forma ultrapassada”!

Sob outra égide, foram quatro CDs que gravei no Exterior com obras contendo Estudos contemporâneos de compositores da Bélgica, Brasil, Portugal, França e Bulgária.

Prosseguindo em minha resposta a João Afonso, diria que, apesar de ter frequentado inúmeras obras pertencentes às mais variadas tendências composicionais dessas últimas décadas, excluindo-se aquelas que, destinadas ao projeto, tivessem as características mencionadas acima, pergunto-me quantas, dentre o extenso multidirecionamento de tendências pelo mundo, teriam o embasamento a partir das lições adquiridas através dos séculos.

Distantes da ideologia, mencionaria, como exemplos, três ilustres compositores brasileiros com posição aberta nesse controverso tema das tendências. Ricardo Tacuchian (1939- ) entendia em texto basilar que há várias tendências e não as obstaculiza, mas sim as nomeia. Criou o Sistema-T de organização de alturas, sistema de composição que não se esquece da herança acumulada através dos séculos. Gilberto Mendes (1922-2016), também com mente aberta, mas com perfil diferenciado, propôs tantas e tantas vezes em suas composições caminhos vários, por vezes entremeados de fino humor e de teatralidade, entendendo, contudo, sempre um norte a orientá-lo. Ambos, assim como Paulo Costa Lima (1954- ) que, numa linguagem segura, não despreza o contexto musical de raiz do imenso Estado da Bahia. Os três, abertos aos caminhos que se apresentam, mas distantes de certos experimentalismos bem complexos que descartam legados essenciais da música. O que provoca desconfiança quanto às intenções de certas tendências musicais surge quando preferencialmente partem para a ruptura sem sequer olhar para o passado, negligenciando toda a herança advinda de conquistas através dos tempos, como monodia, polifonia, harmonia, a consequente tonalidade e a permanência desta durante o período mais criativo da história da música, entre os séculos XVIII, XIX e as primeiras décadas do século XX. Experimentalismos são perceptíveis em centros dos Estados Unidos, Europa, Japão, Brasil e outros mais. O erro estaria não quando o embasamento se dá, mas quando a “criação” surge sem fundamentos plausíveis. Não poderíamos mencionar uma ou mais tendências. São tantas que impedem o público habitual de ao menos fixar em mente seus resultados.

A inclusão de três Estudos para piano escritos por mestres respeitados, Jorge Peixinho, Paulo Costa Lima e Ricardo Tacuchian, justifica-se, além disso, pelo fato de que escrevem, no caso específico do piano, muito bem para o instrumento e, quando a virtuosidade se dá, ela é pianisticamente de grande interesse, tantas vezes com propostas inusitadas. Diria o mesmo dos 7 Études Cosmiques, do compositor francês François Servenière, igualmente no Youtube.

Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, Estudo Imikayá, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Fw2qYBd-kyE

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, Estudo Avenida Paulista, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg

Às argutas questões levantadas por João Afonso diria que muitas dessas tendências experimentais correm o risco de se concentrar em guetos, se já não lá estão. Há ainda um longo caminho para entendimentos. Oxalá isso ocorra.

O entusiasmo pelos extremos históricos apenas me leva à certeza de que a criação musical, edificada com a razão e o coração, ditada pelo talento do compositor, foi e continua a ser, desde que a arbitrariedade não impere, um dos bálsamos para a humanidade.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas (1704-1742), a Sonata nº 34 em Mi Maior, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k

Findava o post quando recebo de minha dileta amiga Maria Celestina Leão Gomes, ex-presidente da Associação Lopes-Graça, a notícia do falecimento da ilustre pianista portuguesa Olga Prats (1938-30/07/2021). Esteve próxima do grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), divulgando muitas de suas criações, interpretando inúmeras em primeira audição e gravando obras referenciais. Lopes-Graça dedicou-lhe a extraordinária Sonata nº 5. No âmbito da música contemporânea apresentaria, entre outras composições, criações de Victorino d’Almeida e Constança Capdeville. Como sócio honorário da Associação Lopes-Graça junto-me a todos os que admiram a arte de Olga Prats.

A former student, who has been living abroad for a long time, e-mailed me asking several questions about the way the general public views modern compositional trends. Having practiced during many decades the repertoire from Baroque to contemporaneity, I try to answer his questions in this post.