Patrimônio Mundial da Humanidade

Toda a grande obra supõe um sacrifício;
e no próprio sacrifício se encontra a mais bela e a mais valiosa das recompensas.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Neste segundo post a respeito do magnífico livro “Cinco Joias de Coimbra”, os capítulos finais se detêm sobre três outras joias que integram o ambiente singular de uma cidade que apresenta a Universidade de Coimbra como símbolo maior.

“O Órgão da Capela de São Miguel”, “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro” completam a pormenorizada abordagem das joias conimbricenses em seus textos redigidos por respeitados especialistas: Paulo Bernardino, Ana Cristina Tavares e Maria de Lurdes Craveiro, respectivamente. Preciosa documentação iconográfica ilustra os ensaios.

Paulo Bernardino, organista titular da Capela de São Miguel, Paço das Escolas da Universidade de Coimbra, Especialista em Música Sacra e Doutorado em Direção (Coral e de Orquestra), assina sucinto e rico texto sobre o singular órgão da Capela de São Miguel da UC.

Uma primeira referência em Portugal sobre o instrumento órgão data de 1453. Uma das características do denominado órgão ibérico era a presença de um só teclado, apesar de não muitas outras diferenças em relação aos órgãos de outros centros europeus. Paulo Bernardino pormenoriza, com arguto conhecimento, as características evolutivas do órgão. Chama a atenção um dado relevante expresso por Bernardino: “Um dos desenvolvimentos mais significativos e idiossincráticos do órgão ibérico, datado da segunda metade do século XVII, consistiu na introdução de registros de palheta em tubos colocados horizontalmente na fachada do órgão, na posição dita de chamada”.

Bernardino insere conteúdo histórico de interesse: “A subida ao trono de D.João V, em 1706, correspondeu a uma profunda alteração na história da música portuguesa. No âmbito da sua ação política, este monarca impôs a importação dos modelos litúrgicos e musicais de Roma. Tal não deixou de ter consequências na própria organaria, levando a uma reaproximação da organaria portuguesa aos modelos musicais italianos, sem, contudo, perder o seu caráter”. A seguir, elenca os materiais constitutivos do magnífico órgão da Universidade de Coimbra.

Logo após, Paulo Bernardino tece comentário breve sobre a escolha do repertório adequado ao instrumento, mas a possibilitar outras opções. Entusiasta, almeja um destaque maior para o magnífico órgão da Capela de São Miguel e observa: “Na verdade, apesar da conjugação de muitas vontades e iniciativas – tanto internas como externas à universidade – o Órgão da Capela da Universidade, apesar de um ex libris da organaria ibérica a nível mundial, permanece um desconhecido para a cidade”. O Professor João Gouveia Monteiro, no prefácio das “Cinco Joias de Coimbra”, comenta: “É muito sedutora a hipóteses avançada, em 2004, pelo saudoso Doutor José Maria Pedrosa Cardoso (docente da Universidade de Coimbra), que sugere que pode muito bem ter sido Carlos Seixas (1704-1742) a estrear em (1738?) o ‘colossal instrumento’ na provável cerimônia pública de inauguração da preciosidade à guarda do arcanjo São Miguel”.

Clique para ouvir, de J.S.Bach, Prelúdio e Fuga em Sol Maior do 2º volume do Cravo bem Temperado, na interpretação de Paulo Bernardino, frente ao órgão da Capela de São Miguel da UC:

Prelúdio e Fuga em Sol M – 2.º Vol. do Cravo Bem Temperado – J. S. Bach (youtube.com)

Ana Cristina Tavares assina a contribuição “O Jardim Botânico da Universidade de Coimbra – A Casa Verde da Univers(c)idade”. Entre outras titulações, a Professora é Doutora em Biologias (Fisiologia das plantas) pelo Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra. Foi Diretora-Adjunta do Jardim Botânico de Coimbra (2019-2021).

As palavras do ilustre prefaciador, Professor João Gouveia Monteiro, servem de peristilo ao ensaio de Ana Cristina Tavares: “Numa palavra, é um lugar de sonho, situado no coração da Alta coimbrã e com nada menos de treze hectares de área, dos quais nove correspondem ao arboreto da mata e os restantes aos socalcos do jardim clássico”. Lá estive, quanta verdade nas palavras de Gouveia Monteiro!

A autora define a missão do JBUC: “Cumprindo o objetivo da sua fundação no séc. XVIII, o de proporcionar aos alunos da disciplina de História Natural o conhecimento prático e direto, em contexto natural, das plantas aromáticas e medicinais (Henriques 1876), o JBUC mantém a preocupação da interpretação do espaço e a ligação à docência e à investigação in situ”.

Ana Cristina Tavares narra a rica história da JBUC e aprende-se a presença de figuras decisivas no transcorrer. Assinatura do Marquês de Pombal (1699-1782) nos Estatutos da Universidade, a resultar no consequente “Horto Botânico” aos 28 de Agosto de 1772;  a nomeação do primeiro diretor, o notável naturalista italiano Domenico Vandelli (1735-1816), no mesmo ano. O pleno didatismo da Autora faz-nos conhecer as personalidades que marcaram a história da JBUC, que há pouco comemorou os 250 anos, as muitas coleções de espécies de árvores e plantas – só nas estufas tem-se 1500 espécies diferentes!

Escreve Ana Cristina Tavares sobre a riqueza que se descortina ao se visitar o Jardim Botânico: “Ao percorrer o JBUC sentimos um ambiente marcante e diferenciado, quer pelas duas áreas distintas, o jardim clássico e o arboreto, quer pela variedade das coleções, algumas nativas e a grande maioria delas exóticas, fruto do propósito da sua fundação. As plantas, cultivadas no exterior e/ou em viveiros e estufas, muitas delas caducifólias (isto é, de folha caduca) e por isso nem sempre visíveis no seu máximo esplendor, conferem pluralidade ao Jardim, sempre rico e diferente em cada mês”.

De alto significado o subcapítulo “A Educação no Jardim: veículo de interpretação e de conhecimento”, no qual a rica diversidade do JBUC enseja um debruçamento pleno nos programas educacionais afins.

A leitura do capítulo em pauta leva o leitor à certeza de que, sem uma relação amorosa com a área escolhida, lacunas se apresentam. Ana Cristina Tavares possui esse dom imanente, o de afeto com o todo do JBUC.

O último capítulo, “Museu Nacional de Machado de Castro – Da herança patrimonial aos desafios do futuro”, tem a autoria de Maria de Lurdes Craveiro, Professora Associada com Agregação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Investigadora de Centros de Estudos da UC e Diretora do Museu Nacional de Machado de Castro.

Acresça-se que desde 2019 o MNMC integra a lista do patrimônio de Coimbra classificado pela UNESCO.

Preliminarmente, o estudo da Professora Maria de Lurdes Craveiro poderia bem integrar uma Aula Magna, mercê do imenso levantamento histórico e da inserção do acervo do MNMC. Mencionar o introito do texto abrangente se faz necessário: “Fundado em 1911 e tendo aberto ao público em 1913, o MNMC herdou as estruturas edificadas do Paço Episcopal e do antigo criptopórtico romano de Aeminium;  foi sobre elas que se viria a implantar todo o seu percurso nobilitado, que se compreende, em simultâneo, pela grandeza do assentamento, pelo diálogo constante com o território de poder envolvente e pela natureza específica das suas coleções”

Nos significativos subcapítulos, a Autora remonta ao século I e “Mais do que uma História Milenar” conduz o leitor “à construção do fórum romano em que a cidade de Aeminium assentou a sua autoridade religiosa, social, econômica, política e administrativa”.

A seguir, Maria de Lurdes Craveiro pormenoriza cada etapa histórica do espaço, mencionando resultados e a série de personagens, tantos notáveis, até chegar ao “O século XX e a musealização do espaço”, quando da fundação do MNMC. Reparações profundas foram feitas, máxime a do arquiteto Gonçalo Byrne (1999), mercê de deterioramentos acentuados. A importância de MNMC atraiu peças importantes provenientes de outros edifícios históricos que foram incorporadas ao seu precioso acervo, a resultar na honrosa classificação em 2019, doravante Patrimônio Mundial.

Ao dedicar um subcapítulo aos “Diretores”, a Autora rende justo tributo às figuras que conduziram o MNMC ao pleno reconhecimento internacional.

Um último e precioso subcapítulo se estende às “Coleções”. Impõem-se pela grandeza e qualidade artística. Escultura em barro cozido, escultura em madeira, ourivesaria, pintura, desenho, cerâmica e têxteis. Determinadas obras-primas do MNMC, fotografadas por Maria de Lurdes Craveiro, dão uma ideia da grandiosidade do acervo.

Demonstrando o essencial para que uma produtiva ação diretiva realize intentos, a Autora insere nas conclusões: “Cumprindo a sua vocação centenária, o que o Museu Nacional de Machado de Castro suscita é, assim, mais ciência, mais investigação, mais meios técnicos e humanos, mais articulação comunitária e institucional (nacional e internacional), mais na construção dos afetos exteriores”.

“Cinco Joias de Coimbra” não é apenas um livro grande, mas um grande livro. Impecável coordenação do Professor Catedrático João Gouveia Monteiro e da investigadora Maria Leonor Cruz Pontes, tendo a preciosa colaboração da Associação RUAS.

Aos 3 de Novembro de 2012 apresentei um recital no Museu de Machado de Castro com obras de Francisco de Lacerda (1869-1934) e de dois relevantes compositores que criaram obras em homenagem ao notável músico açoriano, François Servenière (1961-) e Eurico Carrapatoso (1962-), por ocasião do meu primeiro livro publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra, “Impressões sobre a Música Portuguesa”.

Clique para ouvir, do extraordinário compositor conimbricense Carlos Seixas, Sonata nº68 em lá menor, na interpretação de J.E.M.

Carlos Seixas – Sonata nº 68 in A minor – José Eduardo Martins – piano (youtube.com)

Three other chapters conclude the substantial book “Five Jewels of Coimbra”. Signed by renowned experts, it is a must-read for those who wish to learn more about the riches that emanate from the University of Coimbra, founded in 1290.

Patrimônio Mundial da Humanidade

Cinco joias de Coimbra  é uma revisitação carinhosa de cinco espaços
particularmente emblemáticos da cidade de Coimbra,
todos eles classificados pela UNESCO entre 2013 e 2019.
João Gouveia Monteiro
(extraído do prefácio de “Cinco joias de Coimbra”)

La bibliothèque la plus fastueuse que j’aie jamais vue.
Germain Bazin (1901-1990), notável historiador de arte.
(Comentário sobre a Biblioteca Joanina)

Não poucas vezes neste espaço comentei a respeito da imperiosa necessidade de se preservar patrimônios materiais que sinalizam a passagem do homem em suas aspirações maiores. O legado físico ganha outra dimensão quando acompanhado pelos porquês da existência e o consequente longo caminho até a concretização final, a encantar gerações através dos séculos.

“Cinco Joias de Coimbra”, sob a coordenação de João Gouveia Monteiro, ilustre medievalista, professor catedrático da Universidade de Coimbra e autor de obras referenciais em sua área resenhadas neste espaço, e de Maria Leonor Cruz Pontes, licenciada em História (variante de Arqueologia) e mestre em Museologia e Patrimônio Cultural, titulações pela Universidade de Coimbra, é primeiramente um belo livro pleno de interesse que transcende (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022). As cinco joias estão presentes no livro através de textos redigidos por renomados especialistas, que remontam às origens dos temas abordados. O prefácio, de autoria dos coordenadores, sinaliza a importância da obra documental, ricamente ilustrada. Não apenas realizam um abrégée do conteúdo da publicação, como inserem posicionamentos precisos numa área que lhes é familiar.

A Biblioteca Joanina, a Capela de São Miguel, o Órgão da Capela de São Miguel, o Jardim Botânico e o Museu Nacional de Machado de Castro são desvelados em seis capítulos riquíssimos, plenos de informações, muitas delas jamais vindas a público. Ourivesaria intelectual.

Dois capítulos são reservados à Biblioteca Joanina, o primeiro, “Contar como foi: Sobre a construção da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra”,  escrito pelo ilustre professor jubilado, especialista da história setecentista da Universidade de Coimbra, Fernando Taveira da Fonseca. Debruça-se sobre o tema, desenvolvido anteriormente em 1995, ora acrescido. No presente, há preciosa documentação indicadora da atenção dada ao financiamento, às etapas construtivas e pormenores do pórtico à magnífica pintura de Giorgio Domenico Duprá (1689-1770), ricamente emoldurada, retratando D. João V (1689-1750). Entre esses documentos basilares, um precioso, enviado por Nuno da Silva Teles (II) Reitor da Universidade de Coimbra entre 1715-1718, ao rei D. João V, expondo a necessidade de um novo prédio, a abrigar uma vasta e recente coleção merecedora do empreendimento. O lançamento da primeira pedra se deu em 17 de Julho de 1717. Taveira da Fonseca acompanha o desenvolvimento da empreitada, destaca as relações dos mestres de obra e dos muitos artistas com os contratantes.

António Filipe Pimentel, Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, renomado historiador da arte, máxime na especialidade da arte barroca – dirigiu vários museus fundamentais portugueses -, assina “A Biblioteca enquanto espelho – Arte e Poder”.

Inicia a historiar a constituição de uma biblioteca em Portugal a partir do século XV, em Lisboa, e as várias coleções que viriam a enriquecer o acervo. Em 1548 é aberta a “livraria pública” em Coimbra com ainda um pequeno acervo. Instalada não em ambiente propício, foi somente entre 1717 e 1728, com o encerramento das obras da nova livraria, que se concretizavam tantas esperanças.

Escolhido o terreno, apesar de desníveis, lentamente seria erguida a casa a abrigar os acervos literários. Escreve Pimentel: “A empreitada da pedraria ficaria concluída em 1722, altura em que, todavia, já se haviam iniciado os trabalhos interiores de construção das estantes e demais carpintarias”. Enfatiza a seguir a ação dos trabalhos artísticos que consagrariam a Biblioteca Joanina na sua singularidade. Frise-se a pintura extraordinária e decorativa dos tetos das três salas, verde, vermelha e negra, separadas por arcos comunicantes. Pimentel aborda o tratamento artístico das madeiras com seus sugestivos entalhes. Externa que “… bronzistas, latoeiros, vidraceiros e um sem número de artistas e artífices eram paralelamente utilizados, nos mais diversos ofícios, destacando-se entre estes o italiano Francesco Realdino, ele também estabelecido na corte, contratado em 1725 para a realização dos seis sumptuosos bufetes ou mesas de leitura, obras-primas da marcenaria setecentista, realizados em madeiras preciosas e concluídos dois anos depois”. António Filipe Pimentel nomeia alguns artistas em suas respectivas atividades e se estende através das décadas, conduzindo o leitor ao nome do primeiro bibliotecário da Joanina, António Ribeiro dos Santos, em 1777.

Os coordenadores bem pensaram nesses dois preciosos contributos, de Fernando Taveira da Fonseca e António Filipe Pimentel. Os dois textos se complementam harmoniosamente..

No terceiro capítulo, “A Capela de São Miguel da Universidade de Coimbra: do Paço Real ao Real Paço das Escolas”, assinado pelo Professor Gabriel Pereira, mestre em História da Arte, Patrimônio e Turismo Cultural pela Faculdade de Letras da UC, o autor parte das origens da Capela, que remontam ao século XI. Acompanha as etapas posteriores, percorre o século XVI com a reforma promovida no paço de Coimbra. Gabriel Pereira escreve: “Após a finalização das obras da capela de São Miguel, tornava-se necessário dotá-la de um conjunto de elementos fundamentais para a celebração do culto religioso, uma vez que era através de obras como os retábulos, as pinturas, as esculturas ou as peças de ourivesaria que se constituía uma narrativa cristológica e mais facilmente se cumpria uma função didática junto da comunidade acadêmica”.

A seguir, Gabriel Pereira se debruça resumidamente sobre várias das inúmeras obras de arte da Capela de São Miguel: “O retábulo da capela-mor, A decoração das paredes e do teto, esculturas e ourivesaria, O lugar da música”.

Algo de suma importância que o Professor salienta refere-se ao fato de que, no decorrer de cinco séculos, a Capela de São Miguel foi se adequando aos gostos de tantos artistas, da vontade dos reis e autoridades acadêmicas. Contudo, o histórico templo mantém uma “unidade” que seduz o visitante.

Dado o espaço a que me proponho, comentarei no próximo blog as três outras joias conimbricenses contempladas no magnífico livro.

A leitura de “Cinco joias de Coimbra” acentua ainda mais o privilégio que sinto ao lembrar dos dez recitais de piano que apresentei na Biblioteca Joanina, de 2004 a 2022, sendo que, na primeira récita, com um programa inteiramente dedicado ao genial compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), num colóquio a homenagear o tricentenário de nascimento. Graças à ação do notável e saudoso musicólogo José Maria Pedrosa Cardoso, Sonatas para cravo foram apresentadas em três recitais contemplando cravo (Ketil Haugsand – Alemanha), piano (José Eduardo Martins), órgão (José Luis Gonzáles Uriol – Espanha), os dois primeiros na Biblioteca Joanina, o de órgão, na Capela de São Miguel da UC. Confesso que, nos meus 70 anos de atividade pianística, a Biblioteca Joanina foi certamente o espaço que mais me impactou pela beleza única e sua aura inefável.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 78 em Si bemol maior, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=E8GX3qIjfLI

Five Jewels of Coimbra, World Heritage is an affectionate revisitation of particularly emblematic spaces in the city of Coimbra, all of which were classified by UNESCO between 2013 and 2019.

 

O leitor como partícipe

Il est plus aisé de connaître l’homme en général
que de connaître un homme en particulier.
La Rochefoucauld  (1613-1680)
(“Réfléxions ou sentences et maximes Morales”)
Máxima inserida no primeiro blog.

Neste preciso 2 de Março completamos 17 anos de blogs ininterruptos, publicados semanalmente, sempre aos sábados. Ao todo, exatamente hoje, chegamos aos 900 posts. Foram tantas as vezes em que comentei que, assim como a respiração não pede férias, as crônicas hebdomadárias também. Durante esse longo período, mesmo em situações difíceis, temas surgiam e eram digitados tão logo o arcabouço se formava em minha mente. Meu saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013), artista exemplar, sempre que lhe apresentava um tema do post da semana que lhe era caro, dias após me enviava um desenho.

O primeiro blog publicado no longínquo 2007 teve como título “Praeambulum”. Reproduzo frases contidas no post inicial: “Pareceria cristalino que parte do meu de profundis estará a ser desvelado e, assim, tantos segredos virão a ser decifrados. Manter a periodicidade será fruto prazeroso. Após a sedimentação do blog, o hábito e o consequente afeto ao mister”.

Nessas centenas de crônicas, houve períodos em que determinados temas me levaram a dedicar séries que paulatinamente pontuavam intercaladas por assuntos outros, geralmente sem continuidade. Assim sendo, quantos não foram os livros do geógrafo, escritor e andarilho francês Sylvain Tesson (1972-) ou das aventuras de sucesso ou trágicas empreendidas por sonhadores na cadeia do Himalaia?  Essas intrépidas figuras permeavam minhas leituras desde a adolescência, juntamente com os grandes escritores do passado, neste caso orientado pelo meu saudoso Pai, que sempre entendeu a leitura dos clássicos como alicerce para a formação humanística.

A série sobre grandes pianistas do passado surgiu espontaneamente. À medida que pianistas desfilavam no meu blog, lembrava-me de outros mais, notáveis todos. A reverência ao passado glorioso desses músicos extraordinários sempre teve uma razão fulcral, o profundo respeito às partituras professado por esses intérpretes. Igualmente havia a gestualidade econômica, pois o essencial era a transmissão a mais fidedigna das obras executadas. Luminares de antanho, quando vocacionados às letras, deixaram, além das gravações excelsas, depoimentos que servem como bússolas àqueles novéis que tendem a trilhar o caminho da interpretação.

A temática sobre o repertório que gravei, máxime na Bélgica, povoou vários blogs, estes sempre acompanhados por explicações concernentes à origem da criação e do porquê de estar a gravar. Prioritariamente gravei obras extraordinárias do passado, pouco ou nada frequentadas pelos intérpretes. Quanto à música contemporânea, gravei peças de várias tendências, contudo me ative mais acentuadamente àquelas que não buscavam “suprimir as referências de outros períodos artísticos”, no dizer do ilustre compositor francês François Servenière (1961-).

Clique para ouvir, de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=LSfmHoqmjoo

Bem mais de uma centena de posts dediquei à Cultura portuguesa, mormente à música. Não tenho dúvidas de que esse afeto teve origem na pregação de nosso Pai, minhoto, aos valores de Portugal. Ao longo das décadas, na  medida em que penetrava nessa Cultura, mais a admirava. É um privilégio ter dois livros publicados pela Imprensa da Universidade de Coimbra sob o título “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (I e II). Grandes compositores de Portugal, Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934), Fernando Lopes-Graça (1906-1994), Jorge Peixinho (1940-1995) e Eurico Carrapatoso (1962-) não apenas pontuaram inúmeros posts, como deles gravei obras referenciais, algumas delas hoje no Youtube. Só lamento a quase absoluta ausência da música de concerto, clássica ou erudita portuguesa nos repertórios de nossos intérpretes. Infelizmente, as representações – oficiais ou não – de Portugal pouco ou nada divulgam a música erudita do seu país em nossas terras. Fato.

Clique para ouvir de Carlos Seixas, Sonata nº 34 em mi menor, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k&t=14s

A leitura – assim como a exponencial música – também faz parte do meu respirar. Desses 900 posts, mais de 250 foram resenhas de livros que me encantaram (vide lista no menu do blog: Livros – Resenhas e comentários). Quantas vozes têm pregado a necessidade da leitura, infelizmente, máxime pelas novas gerações, reduzida basicamente às engenhocas telemóveis. Pouco a fazer.

Nesses 17 anos, as corridas de rua tiveram espaços em meus blogs. A partir do início de 2022 só realizo caminhadas de oito a dez km duas vezes por semana, após duas centenas de corridas de rua em São Paulo, cidades vizinhas e Bélgica. Acatei a sábia opinião do notável ortopedista Dr. Heitor Ulson, após uma queda que sofri durante treinamento e que teve como consequência a quebra da cabeça do úmero do braço esquerdo. Felizmente, o acidente não prejudicou minha prática pianística. Das corridas do passado às caminhadas atuais, os temas frequentam a minha mente no ato da prática esportiva, e em plena madrugada, meus dedos visitam um outro teclado.

Quanto ao cotidiano, que por vezes aflora como temática, devo ao hábito de observar desde a adolescência. Foram muitos os posts sobre viagens e decorrências devidas às atividades musicais. Acredito que observar é um dos dons fundamentais do homem e se amalgama perfeitamente à curiosidade. Através desta última chegamos às investigações, descobertas e resultados, mesmo que tímidos, fundamentais para o homem a fim de um conhecimento mais abrangente.

Instigado por diversos leitores para que me pronuncie sobre política em meus blogs, declino sempre. Há especialistas, alguns ilustres, que realizam análises inteligentes. Um deles, meu querido irmão, o jurista Ives Gandra Martins, uma das mentes mais brilhantes deste país.

Ficam neste espaço meus agradecimentos efusivos aos leitores que têm me acompanhado nessa já longa viagem. É sempre motivo de alegria a recepção de mensagens vindas de tantos rincões diferentes. Seguirei a publicar os blogs sempre aos sábados. Estímulo não falta, mormente nesses tempos tão estranhos que estamos a viver. Grato também à Regina Maria, vizinha desde os anos 1980 e dileta amiga, que faz a revisão de meus blogs, pois gralhas existem e, no dizer do nosso grande compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), “o pior revisor é o autor e, entre esses, sou o pior”. Por fim, Regina, minha mulher, pianista também e que sempre teve a paciência de me entender nessas viagens pelo imaginário. Ela e o querido clã familiar corroboram a travessia.

On March 2nd my blog completes 17 years of continuous weekly publication. I haven’t missed a single Saturday. Thanks to all my readers for their constant encouragement.