Uma minoria está alerta

Seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau;
Mas é nessa maldade que devemos procurar o apoio em que nos firmamos
Para sermos nós próprios melhores, como tal, melhoramos os outros.
Agostinho da Silva (1906-1994)

Entre as mensagens recebidas, uma só preocupação com o progressivo descuido com a língua portuguesa. O desmonte tem sido contínuo e acelerado. Sistemático, a multiplicar elisões de sílabas, negligenciar conjugação correta, incorporar palavras não advindas da assimilação natural que o passar do tempo proporciona, mas impostas por grupetos, transformando-se em virose que se espalha num meio propício e que contamina a sociedade. O jargão e as incorreções decorrentes determinam o surgimento de palavras sem quaisquer raízes, surgidas aleatoriamente em falas ou “músicas” efêmeras, idolatradas por multidões que acorrem aos megashows, substituídas por outras que se estiolam progressivamente numa sucessão ininterrupta.

Como preservar princípios consagrados da língua portuguesa, se a educação no Brasil em quase todos os níveis não é preocupação basilar do governo? Quanto à deterioração, exemplo flagrante se deu nas provas do ENEM 2024, pois, entre os mais de 4 milhões de inscritos no país, apenas 12 conseguiram a nota mil, sendo que desses somente um frequentou a Escola Pública. O tema da redação “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.

Gildo dos Santos Magalhães, professor titular da FFLECH-USP, enviou uma arguta mensagem:

“Mais um alerta seu, oportuno e necessário. A substituição do livro em papel pelo eletrônico, com a pseudovantagem de economizar espaço e dinheiro, leva a leituras apressadas, que não fixam o conteúdo. Acresce ao estiolamento da língua o vocabulário cada vez menor das pessoas, enquanto crescem as gírias e palavras chulas.

O que noto é que muitas pessoas sequer sabem usar o potencial da internet, pois é preciso cultura até para procurar o significado de uma palavra. Frequentemente o que aparece na tela não é exato ou há múltiplos significados, nem sempre fornecidos, e a pessoa fica desinformada. A Wikipédia pode ajudar, mas se você compara, às vezes apenas a versão em inglês é mais completa, às vezes em francês, ou espanhol, ou alemão…  Alguns alunos já se aperceberam disso e uma boa enciclopédia em papel lhes daria a informação melhor, mas quase ninguém tem mais acesso a isso”.

Flávio Viegas Amoreira,  poeta, escritor e crítico literário, aborda pontos fulcrais da hecatombe que está a sofrer a língua portuguesa em nossas terras: “brilhante texto necessário, apontando mais do que o depauperamento do idioma; a idiotização estética e intelectual  tem como ponta de lança o estreitamento da expressão por uma linguagem rica a partir do adensamento da língua e não seu uso cada vez  mais raso, fruto da dialogação cacofônica e homogeneizante. Um anticulturalismo, capitaneado pela mídia e cultura de massa, leva à indigência comunicacional e narrativa, reduzindo o português tão polissêmico a platitudes vocabulares’, a aviltamentos gramáticos e ao império de clichês reducionistas. Perdem a argumentação, a plasticidade do idioma e o pensamento lógico, abstrato. José Eduardo, só um artista da sua dimensão pode denunciar tamanha aberração.

Carolina Ramos (1924-), escritora, poetisa, trovadora, contista e artista plástica, na sabedoria dos seus 100 anos, escreve: “As conclusões são absolutamente corretas. Mas… o Novo Ano chegou… E, quem sabe, venha no seu bolso aquela insuspeitada solução com a qual tanto sonhamos? Vamos confiar um pouquinho mais! Deus queira que assim seja!!!

Marcos Leite, arquiteto, ao tecer considerações, relembra o ilustre gramático e filólogo Napoleão Mendes de Almeida (1911-1988). “Que adorno cultural representa um diploma de linguística a quem escreve, ou deixa meia dúzia de vezes passar, num mesmo artigo de jornal, os mais tolos erros de gramática?” (Linguística: um estorvo à aprendizagem da Língua Portuguesa, 1997). Prossegue: “Praticamente ‘aprendi’ a ler, na mais tenra idade, devorando o Estadão, do qual meu pai era assinante, das manchetes de capa e dos editoriais, pulando as eventuais receitas de bolos que preenchiam o espaço das notícias e opiniões censuradas, atenção redobrada na seção de esportes, incluído o xadrez, e até o obituário. As ‘Questões Vernáculas’ do Professor Napoleão Mendes de Almeida eram parada obrigatória. Não me fiz escritor e reconheço que erro até com certa frequência, mas eduquei meus ouvidos de modo a senti-los feridos com os descalabros com que certas pessoas se utilizam de teclados e microfones. Algumas, alçadas a cargos e postos de projeção e evidência que jamais deveriam ocupar, não só se expõem ao ridículo de erros toscos e grosseiros, com declarações e textos de moral e ética duvidosas, para falar o mínimo, demonstrando total falta de educação e cultura perante plateias e “cidadões” que ainda os aplaudem. É lamentável e óbvio ter que concordar com as argutas observações de seu (sempre) excelente blog”.

Quanto aos termos vindos do lado de cima do equador, parte deles incorpora-se ao vocabulário e substitui com rapidez as palavras usuais da nossa língua, ora excluídas. Como exemplo, o “famigerado” CEO (“Chief Executive Officer”), figura de maior importância na direção e gestão de uma empresa. Quando um CEO é entrevistado pelos meios de comunicação, dificilmente o apresentador define a sua real função, podendo ser presidente de uma empresa, diretor executivo, gerente geral ou outras mais atribuições determinantes da atividade do CEO em pauta. Todos são CEOs.

The positions of four readers enrich the debate on the impoverishment of the Portuguese language in Brazil.

Discordâncias que fazem pensar

Acho que estamos passando por tempos excepcionalmente terríveis.
Eles sempre são terríveis, mas, no momento estão muito terríveis.
Estão piores que o habitual.
Há guerras acontecendo por todos os lados,
líderes autoritários surgiram em vários países nos últimos anos.
Woody Allen
(“Entrevista”)

Encontrei o amigo Marcelo na feira de sábado no Brooklin-Campo Belo. O prazer de encontrá-lo se prolongou num curto em uma das cafeterias do bairro. Sabedor das minhas gravações no Exterior lançadas em CDs europeus e do desaparecimento progressivo desse veículo, considerou as transformações dos vários outros processos fonográficos que foram desativados, à medida que um novo surgia no mercado. E veio a pergunta: legados permanecem? A simples observação me fez explanar alguns aspectos, que transmito neste post ao leitor.

Em blog bem anterior publiquei um post sobre “A problemática do legado” (27/04/2019), no qual o notável filósofo português Eduardo Lourenço (1923-2020) dialogava com o arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933-) a respeito do legado e a sua permanência histórica ou não. Na amistosa conversa, Eduardo Lourenço observa: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos. Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submetidos às mesmas forças que regem realmente o mundo, porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

Recentemente li uma entrevista de Woody Allen a Alessandra Monterastelli (Folha ilustrada, 9/9/2024) sob o título “Quando eu morrer, podem jogar meus filmes no mar, diz Woody Allen, aos 88 anos”. O cineasta tece comentários a respeito do seu quinquagésimo filme, “Golpe de Sorte em Paris”. Durante a entrevista desfaz o mito do legado: “Eu não sou uma pessoa muito ligada a legados. Sempre que faço um filme, nunca mais o vejo novamente. Fiz meu primeiro filme em 1968 e desde então, nunca mais o vi”. O nosso grande pianista Nelson Freire (1944-2021) admitiria em entrevista, décadas atrás, que após um disco seu ser lançado, nunca mais o ouvia. Continua o cineasta: “Depois que termino meus filmes, não me importo mais com eles. E tenho 88 anos, logo estarei morto, então não me importo nem um pouco com meu legado, ele não significa nada para mim. Se, quando eu morrer, pegarem meus filmes e os jogarem no oceano, ou queimarem, não me importa. Estarei morto. Quando você está morto, nada importa. Um legado é uma fantasia que as pessoas têm, é como os religiosos que acreditam na vida após a morte. Mas você não existe, então quem se importa com meus filmes? Eu não”. O comentário de Woody Allen faz-me lembrar do “Prefácio à segunda edição” de “A velhice do Padre Eterno”, do notável escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923): “Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima”.

Antolha-se-me que a posição de Woody Allen é ambígua, mormente pela enxurrada noticiosa a envolver o cineasta em um possível estupro de uma menina de sete anos, sua enteada, filha da atriz Mia Farrow. A investigação concluiria que não houve abuso, sendo que Woody Allen sempre negou a ocorrência. Deu-se, a partir dos noticiários que estavam em curso durante as investigações, o cancelamento do cineasta por parte de considerável parcela dos cinéfilos e da opinião pública em geral. A irreverência em tantos filmes de Wood Allen, somada ao desinteresse da indústria cinematográfica para com ele pelo caso, levou-o a considerar: “Se é para ser cancelado por uma cultura, esta é a cultura”.

Artistas, literatos, cientistas que constroem um legado de valor habitualmente o fazem sabedores de que o post mortem preservará a opera omnia construída ao longo e que, na realidade, é uma das razões primordiais das suas existências. Para o significativo cineasta ficaria a mágoa desse olvido, motivado pela repercussão do rumoroso processo e da mínima afluência ao seu último filme, “Golpe de sorte em Paris”, fato que deve ter calado fundo. “Jogar no mar” não elimina os efeitos junto à opinião pública, sempre ávida de notícias a envolver personalidades. Edificação e destruição de Mitos têm efeitos bombásticos na mente do povo. Desprezar o rico legado é uma forma de protesto e Woody Allen possivelmente se equivoca, pois mesmo jogada ao oceano a criação de valor tem o poder de navegar até um porto seguro.

O desdém, acredito que aparente, para com a obra cinematográfica completa, sob aspecto outro, demonstra algo preocupante em se tratando do brilhantismo incontestável de Woody Allen. Artilharia contra tudo e contra todos, destruindo aquilo que foi essencial em sua vida e que o levou à glória, pode tê-lo desviado do essencial. A luta solitária do homem contra parte da sociedade que o denegriu, embate solitário, só dele, deveria poupar a obra, pois essa tem a aura intocável. “Jogar no mar” não teria o mesmo significado da célebre frase francesa “après moi, le déluge?” O crítico de arte e poeta norte-americano Peter Schjeldahl (1942-2022) já não apregoava que “A morte não é uma escultura, que se olha de todos os lados. É uma pintura, tem de ser encarada de frente porque o avesso nos é vedado”. Tanto as criações do notável Guerra Junqueiro “não foram jogadas à roda” e o escritor continua a ser visitado pelos leitores e pesquisadores, assim também a filmografia de Woody Allen não morrerá afogada. Ela já figura no panteão das grandes criações do gênero.

Quanto à duração dos legados, nada sabemos. Eduardo Lourenço tem lá suas razões.

On the legacy. Cultivate it or despise it. Reflections after an interview with the illustrious filmmaker Woody Allen.

 

Textos e falas e o descaso com os preceitos consagrados

Escrevendo ou lendo nos unimos para além do tempo e do espaço,
a riqueza dos outros nos enriquece a nós. Leia.
Agostinho da Silva (1906-1994)
(“Noticias”)

Assiste-se de maneira progressiva, sem que um contraponto significativo exista, à vulgarização da língua portuguesa nos meios de comunicação de forma geral. Reiteradas vezes mencionei o triste fato, que vem acompanhado de outras deteriorações, como as concernentes à moral e aos costumes. A grande maioria da nova geração, não tendo referências literárias mínimas, está sujeita às distorções, mercê do declínio do ensino, do básico ao universitário (vide blog “O desmonte voluntário da língua portuguesa”, 26/05/2016).

O declínio fulminante das tiragens dos diários impressos é sensível, mercê, entre tantos outros motivos, do avanço da internet. Sob outra égide, é de pasmar a quantidade de gralhas, sem a menor revisão, assolando alguns dos nossos sites principais. Como consequência dessa ausência da atenção criteriosa, os espaços referentes às opiniões de leitores refletem majoritariamente, em grau ainda maior, salvo raríssimas exceções, o absoluto descuido quanto à nossa língua mater. O que se apresenta preocupante é saber que muitos dos que redigem noticiários saíram dos bancos universitários, o que, em tese, deveria ser uma garantia do bom trato linguístico. Estou a me lembrar de que, na década de 1980, um dos principais jornais de São Paulo mantinha um revisor que percorria a madrugada a fim de que a publicação matinal não tivesse erros de sintaxe, virgulação e acentuação nos muitos artigos e comentários. Confessou-me esse revisor que uma só falha era considerada algo grave. Independentemente desse rigor, o jornal mantinha um Suplemento de Cultura hebdomadário que abordava os mais variados temas voltados à vasta área cultural. Artigos originais, resenhas de livros significativos e as Artes como um todo faziam parte desse Suplemento, que feneceria décadas após o nascimento.

Em blog bem anterior comentei uma contaminação que se alastrou e está se tornando a cada dia mais frequente entre apresentadores ou jornalistas bem jovens ou na juventude da idade madura: a frequência crescente do “né” ao invés de “não é”, do “tá” e não do “está”, e de tantas outras abreviações que poderiam ser evitadas. Há não muito tempo realizei por curiosidade uma contagem do “né” pronunciado por um dos mais conhecidos apresentadores da nossa TV. Em um comentário de aproximadamente três minutos, por 21 vezes repetiu o “né”.  A repetição insistente, sem sequer a observação de um revisor nas várias empresas de comunicação, evidencia um descuido que poderia facilmente ser sanado. Décadas atrás era comum canais televisivos insistirem em chamadas especiais junto aos telespectadores proclamando a existência de um ombudsman, figura que considerava não apenas o trato da língua, como o seu conteúdo. Havia inclusive canal aberto para o contato do telespectador com o especialista. Vários vícios de linguagem poderiam ser eliminados. Uma visita aos noticiários da TV de Portugal poderia bem servir de exemplo.

Afigura-se trágica a situação atual da leitura em nosso país. Independentemente da qualidade dos textos, pesquisa recente da “Retratos da Leitura no Brasil” (6ª edição) aponta para o progressivo distanciamento do cidadão no que concerne à leitura de livros. Levantamento que teve origem em 2007 evidencia que, no Brasil, a proporção dos não-leitores ultrapassou a dos que leem. Em apenas um lustro tivemos a diminuição de 7 milhões de leitores! Antolha-se-me como peristilo da tragédia, pois atinge toda a sociedade.

Mergulhados nas geringonças da internet, o empobrecimento cultural se acentua. O avanço tecnológico, se benfazejo em tantos aspectos, inclusive no que tange aos celulares, acentuou o descuido para com a língua mãe, descartou o conhecimento aprofundado, minimizou a Cultura como um todo, popularizou o efêmero, que cresce como erva daninha na medida em que quantidade de informações chega às telinhas. E todo o mal está feito.

The decline of our language, inherited from Portugal, is increasing. Not just on the streets, but in many other spheres, including the written and spoken media. Unfortunately, the country is experiencing a reading hecatomb and the number of non-readers has exceeded the number of readers.