Alguns aspectos sensíveis

Na Arte, a obra em si é a ideia geral
- é simultaneamente uma fórmula da mente e uma aplicação da sensibilidade.
Georges Migot (1891-1976), compositor, poeta e pintor.

Foram muitas as mensagens recebidas a respeito do blog anterior, quase todas breves, outras abordando um certo pessimismo de minha parte quanto aos intérpretes atuais. Para esses últimos, diria ter sido interpretado equivocadamente. No último blog preciso os “dons inalienáveis” de muitos pianistas atuais, apenas considero que, sem generalizar, a plena atenção na transmissão da mensagem musical no ato da apresentação está a ser compartilhada com interesses outros, mundanos alguns, teatrais outros.

Recentemente, mensagem de um jovem músico trazia uma pergunta sobre matéria prolixa, que motivou inúmeros debruçamentos através da História abordando as mais variadas atividades humanas. No caso específico: “Haveria progresso na interpretação musical?”. O tema é bem controvertido, pois há correntes que sustentam o progresso em arte, outras que discordam. Argumentos não faltam. Independentemente de inúmeras leituras sobre a temática, lembrei-me de um livro percorrido há décadas por este leitor. Tratava-se de ensaios do compositor francês Georges Migot, “Essais commentés et complétés en vue d’une Esthétique Générale” (Paris, Les Presses Modernes, 1937), recolhidos por Jean Delaye. Polêmico, o livro aborda, entre vários ensaios, “Progresso em Arte”, chamando minha atenção para as diversas proposições apresentadas a partir de um histórico bem estruturado pelo autor desde a Grécia Antiga. Inicialmente, Georges Migot escreve “Não há progresso em Arte, existem sim cumes que podem atingir as mesmas alturas. A palavra progresso não pode ser aplicada para comparar duas obras de arte”. Para o autor, “toda obra-prima é um milagre, mas não devemos esquecer que todo milagre mata a fé, desde que queiramos impô-la como dogma”. Tem interesse o argumento de que não há períodos de decadência na Arte, mas sim “período de turbulência quando artistas vislumbram a continuação de um caminho”.

Um aspecto, já esboçado em vários blogs através dos anos, refere-se à obra contemporânea, tantas vezes sem raízes, dir-se-ia produzida por “livre atirador”. Quantas não são hoje as tendências nas artes visuais e na composição musical sem os alicerces – o conhecimento histórico – que poderiam torná-las menos vulneráveis? Tive o privilégio de apresentar em primeira audição mundial bem mais de 100 composições, que acredito permanecerão. Mencionaria apenas, como exemplos, criações de Gilberto Mendes, Almeida Prado, François Servenière, Jorge Peixinho, Eurico Carrapatoso, Ricardo Tacuchian, Paulo Costa Lima… Gravei CD pelo selo belga De Rode Pomp, dele constando criações de dez compositores da Bélgica, Estudos magníficos de várias correntes composicionais, todas bem fundamentadas.

Clique para ouvir, do compositor belga Daniel Gistelinck (1948-), “Résonances”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=4XflfeoeAl8&t=89s

Quando sentia o “achismo” composicional, declinava polidamente. E ele existe. Em blogs bem anteriores relatei um fato que ocorreu em Londres durante um Congresso sobre Debussy na década de 1990. Um jovem compositor, sabendo do meu projeto de Estudos para piano, ofereceu-me um com dedicatória. Ao lê-lo, verifiquei ser impossível executá-lo, pois ultrapassava qualquer lógica relacionada ao técnico-pianístico. Perguntei se alguma vez compusera uma Fuga. Disse-me que nunca pensara, pelo fato de ser uma forma ultrapassada. Na realidade, já não é mais praticada, mas torna-se base fundamental para o conhecimento dos caminhos das transformações formais. Lembremo-nos que os dois cadernos de Prelúdios e Fugas de “O Cravo Bem Temperado” (1722-1744), de J.S.Bach (1685-1750), continuam a ser interpretados como obras-primas absolutas e criações basilares na formação de um pianista.

Georges Migot há quase um século já abordava o problema desses achismos. “Constatamos efetivamente que, quando uma obra surge oferecendo um estilo novo, propicia o nascimento de outras obras defendidas pelo esnobismo, obras sem valor que são sustentadas por todos aqueles que não sabem sequer adivinhar a origem da ordenação nova”.

Contudo, a honestidade intelectual é um termômetro a ser considerado quando da criação. Migot afirma: “É isto que dá ao artista a possibilidade de continuar a encontrar belas obras novas, ou seja, de captar, graças à sua sensibilidade apurada, relações onde os seus antecessores ainda não as tinham percebido. É talvez algo mais do que um refinamento: uma nova ordem da nossa percepção sensorial”.

Pode-se aplicar a noção de progresso ao vasto campo da ciência e da tecnologia, pois conquistas obtidas fazem esquecer, assim que consagradas, as tentativas anteriores que, sim, serão estudadas como fontes históricas, levando às descobertas que, essas, também tendem a ser superadas com o passar do tempo. Estou a me lembrar das viagens de meu saudoso Pai nos Junkers alemães, aviões com três motores e poucos assentos que faziam a ponte São Paulo – Rio nos anos 1940. Dizia ele que a aeronave era ótima, mas bem barulhenta. Sim, na área da aeronáutica os progressos são constantes e as antigas aeronaves são mantidas em museus ou cemitérios adequados.

A ênfase dada por Georges Migot à inexistência do progresso em Arte fica bem clara quanto às possibilidades da criação musical. Incontáveis composições dos grandes mestres do passado são obras-primas que continuam a ser consagradas. Houve inúmeras alterações nas formas musicais através dos tempos e tendências composicionais surgiram e mais obras-primas foram criadas sucessivamente. Estas independem do século em que foram e são compostas. Elas simplesmente permanecem e exemplos proliferam, como criações de Guillaume Machaut (c.1300-1377), Josquim des Prez (1397-1474), Giovanni Pierluigi Palestrina (c.1525-1594), Claudio Monteverdi (1567-1643) e as incontáveis criadas ao longo dos séculos. O notável escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923) já afirmava: “Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo. Infalível e insubornável. As grandes obras são como as grandes montanhas. De longe, veem-se melhor. E as obras secundárias, essas quanto maior for sendo a distância, mais imperceptíveis se irão tornando”.

Finalmente, quanto à interpretação musical, não entendo progresso na interpretação, mas sim outras abordagens a respeito das obras eleitas. Acredito mesmo que a interpretação dos notáveis pianistas do passado continha lirismo mais autêntico e maior respeito às ideias do compositor. Os andamentos propostos pelos compositores eram majoritariamente seguidos, apesar do emprego do denominado rubato de maneira mais acentuada, mas basicamente inexistia a arbitrariedade. Como mencionei a posição de um diretor francês de importante conservatório chinês, afirmando que dentro de pouco tempo os chineses teriam técnica pianística imbatível quanto à velocidade, acrescentaria que, nesse quesito, pode-se considerar uma “evolução atlética”, tão comum na área esportiva, mas não progresso interpretativo, pois estaríamos a macular a ideia criativa dos compositores do passado no que concerne à dinâmica, à articulação e aos andamentos. Mencionei anteriormente o fato de o público desejar que a renomada pianista chinesa Yuja Wang  execute “O voo do besouro”, de Rimnsky Korsakov, sempre mais rapidamente. Sinais dos tempos.

A young musician wrote to me asking if there had been any progress in piano playing. It reminded me of a book by the French composer Georges Migot (1891-1976), “Essais commentés et complétés en vue d’une Esthétique Générale” (1937), in which, in one of the essays, he denies Progress in Art.

 

 

Maurizio Pollini (1942-2024) e Alfred Brendel (1931-2025)

É preciso ter, pela música que se ouve, executa ou compõe,
o mesmo respeito profundo que se tem pela própria existência.
Como se fosse uma questão de vida ou morte.
Pierre Boulez (1925-2016)

A geração de ilustres pianistas nascidos na primeira metade do século XX, que pontificou na cena artística não apenas através das apresentações públicas como pelas gravações, estas, legado que se perpetuará, estiola-se. Em termos pátrios, três relevantes pianistas premiados no primeiro concurso Internacional realizado no Rio de Janeiro – Fernando Lopes (1935-2019), Arthur Moreira Lima (1940-2024) e Nelson Freire (1944-2021) – deixaram-nos, sendo que Nelson Freire teve brilhante carreira internacional constante.

Os recentes falecimentos de Alfred Brendel, aos 17 deste mês, e o de Maurizio Pollini em 2024, causaram forte impressão no meio musical, máxime pela excelência de suas interpretações, mas também pelo extenso repertório de ambos, apesar de approaches diferenciados quanto ao resultado final da execução dos dois mestres do teclado.

A morte de luminares da interpretação pianística nascidos naquele período fez desaparecer a liturgia do ato interpretativo forjado na preocupação primeira, a obra musical sendo mais valorizada do que os holofotes voltados ao intérprete. Havia um padrão a enaltecer o pianista unicamente através do seu culto pleno ao conteúdo existente na partitura, mas que se foi diluindo nas últimas décadas. Logicamente, sempre houve em todas as épocas, a presença de determinados pianistas que se tornaram lendários pela perfeição de suas interpretações. Em blogs bem anteriores dediquei inúmeros posts a notáveis pianistas, todos pertencentes à geração mencionada. Mais recentemente, intérpretes com reais dons agregaram outros elementos ao ato da apresentação, e a maioria do público acompanhou e até saudou essas “inovações”, como gestual exagerado, indumentária chamativa e mesmo, o que é lamentável, arbitrariedades quanto à partitura, sendo que, sob a ótica técnico-pianística e musical, há muitos pianistas com inquestionáveis dons e seguidores da tradição que se apresentam pelo mundo, sem a popularidade dos ungidos pelo sirtema.

Alfred Brendel e Maurizio Pollini pertencem a essa casta excelsa em extinção, ungida pelos pares e pelo público mais conservador. Distanciaram-se diametralmente das gerações seguidas, que priorizam o espetáculo, as composições mais impactantes, a causar forte impressão sobre parte considerável do público que, subjugado, esquece-se da essência musical. Há nos dois que partiram o culto ao sagrado, a transmissão por inteiro da mensagem dos compositores eleitos. Nesse aspecto, Brendel e Pollini se identificam. Se cultuaram o repertório romântico estabelecido a partir do século XIX, diferenças há quanto a determinadas escolhas repertoriais feitas pelos dois pianistas.

Maurizio Pollini foi um dos mais versáteis pianistas da geração ora em extinção. Sua carreira tomou impulso após obter o 1º Prêmio no consagrado Concurso Internacional Chopin em 1960, aos 18 anos. Desenvolveria a seguir uma das mais sólidas carreiras. Pollini não apenas foi intérprete dos grandes compositores românticos, como Beethoven, Schubert, Schumann, Liszt, Brahms, mas também cultivou Debussy, Béla Bartok, Stravinsky, Shoenberg, Webern, Alban Berg, Luigi Nono… Amigo de Pierre Boulez, gravou a 2ª Sonata do compositor.  Essa opção por repertórios distintos não é comum àqueles que se dedicam aos grandes mestres, preferencialmente os românticos.

O vastíssimo repertório de Maurizio Pollini teve a dimensioná-lo seu virtuosismo absoluto, seu respeito pelas concepções dos criadores do passado e do presente e a reserva que o afastou por vocação daquilo que nomeamos holofotes, tão presentes entre muitos da nova geração, luminosidade que, inúmeras vezes, corrobora desvios dos desideratos precípuos dos compositores. Um grande mestre que partiu, deixando como legado uma vasta discografia.

Estou a me lembrar que o único contato que tive com Maurizio Pollini se deu em Vercelli, na Itália, em 1960, pois participei do Concurso Internacional de Piano “G.B.Viotti”, tendo obtido a medalha de prata. Durante o concurso, estava repassando o Estudo de oitavas op. 25 nº10, de Chopin, quando adentra a sala Pollini a tecer palavras elogiosas, bem ele já àquela altura um pianista renomado que, meses antes, obtivera o 1º Prêmio no Concurso Internacional Fréderic Chopin, um dos mais prestigiados do mundo. Palavras que me encorajaram para as provas à frente.

Clique para ouvir, de Fréderic Chopin, Balada nº 4 em fá menor, op. 52, na interpretação de Maurizio Pollini:

https://www.youtube.com/watch?v=UhAxeWrUpy8&t=16s

Alfred Brendel tardou para ter o reconhecimento público pleno. Não participou dos concursos que impulsionam o intérprete. Concentrou-se mais nas gravações, primeiramente nos LPs. Cultuou com o maior rigor as composições de J.S.Bach, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Liszt, este preferencialmente numa primeira fase. Foram as gravações que fizeram inicialmente a sua nomeada nos Estados Unidos. Harold C. Shonberg (1915-2003) afirma que Brendel “…não tocava música francesa, tampouco Chopin, nem música russa – apesar de muitos anos atrás ter gravado os ‘Quadros de uma Exposição’ de Moussorgsky e outras peças russas – e, curiosamente, pouco Schumann ou Brahms”. Entre as suas qualidades maiores, mencione-se o absoluto respeito à ideia do compositor, a técnica a serviço unicamente da expressão maior da obra interpretada. Ao longo das décadas, a crítica especializada salientou esse rigor de suas execuções, mas outros o consideravam muito austero. Alfred Brendel deixou inúmeras gravações, entre elas a que assinala um pioneirismo, a integral para piano de Beethoven. Um verdadeiro intelectual ao piano – no melhor dos sentidos -, como também poeta e compositor.

Uma constante de Alfred Brendel que apreendi da parte de Taki Petrou, excelente afinador dos “Pianos Maene” e do Palais des Beaux Arts em Bruxelas, evidencia o rigor do pianista. Dizia-me Taki que Brendel era o único pianista – entre inúmeros outros oriundos de tantos países que lá se apresentavam – que ficava ao lado do afinador, seguindo atentamente toda a afinação nas várias vezes em que se apresentou no Palais des Beaux Arts. Anualmente Taki afinava o piano que chegava para as minhas gravações ao longo dos anos na Igreja Saint Hylarius em Mullem, na planície flamenga, lançadas posteriormente pelo selo belga De Rode Pomp.

Clique para ouvir, de Franz Schubert, a Sonata nº 18, D 894, em Sol Maior, na magnífica interpretação de Alfred Brendel, que revela nesta gravação uma compreensão somente apreendida por um músico pleno de todas as qualidades possíveis:

https://www.youtube.com/watch?v=cBisjKwg43U&t=108s

O desaparecimento inexorável dos ícones da arte pianística nascidos na primeira metade do século XX leva à reflexão sobre o que se está a presenciar nessas primeiras décadas do século XXI. O avanço sistemático de todas as correntes envolvidas com a música genericamente nomeada popular dá evidências de se tornar irreversível, o que faz com que muitos intérpretes de enorme talento da denominada música erudita utilizem-se de artifícios extras para se manter ainda mais na ribalta. Esvai-se a aura tão presente nas  interpretações de Alfred Brendel e Maurizio Pollini. Suas mensagens musicais, que penetraram na mente e nos corações dos ouvintes, continuam a se infiltrar através de inefáveis gravações, legado a ser conservado.

The recent death of two extraordinary pianists, Maurizio Pollini and Alfred Brendel, leads us to reflect on musical interpretation based solely on absolute respect for the works of great composers. They were two great masters belonging to a generation that is dying out, because pianists of the new generation tend to introduce extramusical elements in their public performances. The aura has been lost.

 

“Carlos Seixas, estrela de Coimbra”

Encarna Carlos Seixas um estilo individual,
um estilo e uma estética portuguesa,
diferentes da arte italiana, francesa, alemã, inglesa, espanhola ou polaca.
Santiago Kastner
(“Carlos Seixas”, 1947)

Recebi com alegria artigo do notável medievalista João Gouveia Monteiro, professor titular jubilado da Universidade de Coimbra, abordando um dos mais importantes compositores europeus que escreveram para cravo, Carlos Seixas (1704-1742), hoje interpretado igualmente ao piano e ao órgão. Ao longo de mais de 18 anos de blogs hebdomadários, publicados ininterruptamente desde Março de 2007, tenho salientado a majoritária presença do  repertório sacralizado nas programações de recitais. Mentes têm relutância em apresentar compositores extraordinários, mas que não tiveram as graças do tripé formado pelo agenciador de concertos, intérprete habituado à eterna repetição de compositores em seus programas e o Estado, este  carente de verdadeiros especialistas com ampla visão da cultura humanística, figuras raríssimas ao longo do tempo.

João Gouveia Monteiro, exemplo de lhaneza, permitiu que incluísse em meu blog o artigo “Carlos Seixas, estrela de Coimbra”, publicado no “Diário de Coimbra” no dia 11 de Junho. Sabia o dileto amigo que tanto o genial Carlos Seixas, assim como o meu saudoso Pai (1898-2000) e este pianista nasceram no dia 11 de Junho.

Motivo fundamental, já observado em blogs há mais de uma década, testemunha o meu apreço às composições para cravo de Seixas. Quando adolescente, recebi da ilustre pianista polonesa Felicja Blumental (1908-1991) um LP com Sonatas para cravo de Carlos Seixas interpretadas ao piano. Fiquei totalmente subjugado pela beleza daquelas criações.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em Sol menor, na interpretação de Felicja Blumental:

https://www.youtube.com/watch?v=gHLjftKaMDY&t=7s

Em 2004, o selo belga De Rode Pomp lançou um álbum com dois CDs e 23 Sonatas de Carlos Seixas que gravei em Mullem, na Bélgica Flamenga. Ao longo das décadas, não poucas vezes abri meus recitais em vários países interpretando Sonatas de Carlos Seixas. Em 2004, centenário do excelso músico, a Universidade de Coimbra prestou justíssima homenagem ao ilustre filho nascido na cidade. O professor João Gouveia Monteiro era, naquele período, Pró-Reitor da Cultura. O renomado  musicólogo José Maria Cardoso (1942-2021), saudoso amigo, professor da Universidade, teve a feliz ideia de programar as Sonatas de Carlos Seixas em três instrumentos diferentes: cravo, destino original da criação, órgão e piano. O cravista norueguês Ketil Haugsang, o organista espanhol José Luis Gonzalles Uriol e eu apresentamos Sonatas do notável compositor em três dias sucessivos, na Biblioteca Joanina (cravo e piano) e na Capela Real (órgão).

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a Sonata em Si bemol Maior (78), na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=E8GX3qIjfLI&t=20s

O texto claro e de síntese do professor Gouveia Monteiro, expõe dados fundamentais do músico conimbricense: “O voo do condor – Carlos Seixas, estrela de Coimbra”:

“Carlos Seixas é para muitos o maior músico português de sempre. Nasceu em Coimbra a 11.VI.1704, ou pouco depois (o batismo foi a 10.VII). A família veio de Tomar, pois em 1699 o pai, Francisco Vaz, foi contratado pelo Cabido como organista da Sé. A família instalou-se na Alta, na Rua da Ilha, e aí deve ter nascido o prodígio.

Francisco Vaz casara com uma senhora de Tomar, Marcelina Nunes. Antes de José António Carlos, o casal teve um filho (Francisco) que estudou Medicina e faleceu em 1711. A análise da sua candidatura à UC permitiu ao saudoso Abílio Queirós (a quem devo estes dados) apurar a existência de alguns religiosos na família de Seixas, cujo avô materno fora alfaiate.

É pouco o que, apesar de Barbosa Machado («Bibliotheca Lusitana», s. XVIII), sabemos sobre José António Carlos «de Seixas» (nome usado por um primo que estudou Cânones em Coimbra). Porém, é certo que quando o pai faleceu, tinha ele 14 anos, foi a escolha do Cabido para organista da Sé! Cumpria-se a boa regra: o organista titular devia preparar o sucessor…

A formação musical de Seixas fez-se à sombra da Sé Velha, do Mosteiro de Sta. Cruz e das capelas da UC. Não existia uma escola para formar organistas, mas as lições do Mestre de Capela da Catedral foram cruciais na sua aprendizagem do canto e da teoria musical. Certo é que o portento se destacou, rumando à capital c. 1722.

Seixas ensinou em casas particulares de Lisboa e tornou-se organista da Santa Basílica Patriarcal. Teve assim acesso à corte de D. João V e D. Maria Ana de Áustria. Manuel C. Brito subdividiu os espaços musicais da Lisboa desse tempo em cinco grupos: música sacra, de corte, (semi)privada, teatral e pública de ar livre. Seixas só não terá intervindo nos dois últimos, beneficiando dos mecenatos do rei e do Visconde de Barbacena.

Como organista, compôs obras vocais religiosas, mas o grosso das suas sonatas destinou-se a instrumentos de tecla de corda, como o cravo ou o clavicórdio! Em Santa Cruz fizeram-se cinco livros de cópias da sua música, de que a UC conserva dois (58 sonatas). Mas a maioria dos Ms. estão fora de Coimbra: todos os de música vocal (arquivos de Viseu, Lisboa, Elvas e Évora) e vários com a sua música instrumental (Bibliotecas Nacional e da Ajuda).

Na corte joanina, Seixas encontrou Domenico Scarlatti (em Portugal entre 1719-1729), célebre compositor que nutriu grande admiração por ele. Porém, afirmou um estilo próprio. O grande pianista J. Eduardo Martins disse que Seixas captou a alma lusitana, com alguns andamentos bem lentos a par de terminações em andamentos rápidos, modulações e uma constante ‘culminância emotiva’.

O isolamento português e a partida de Scarlatti estimularam a sua originalidade, de que a Inf.ª Maria Bárbara, futura rainha de Espanha, terá sido a maior beneficiária. Mas Seixas morreu em 1742, aos 38 anos, de febre reumática, deixando mulher e cinco filhos. Um mês depois, os círculos cultos da corte dedicaram-lhe solenes exéquias, do que resultou a famosa gravura de J. Daullé sobre retrato de Vieira Lusitano, estudada por A. Filipe Pimentel.

A obra de Seixas (coeva de Bach, Händel, Rameau) foi pouco conhecida durante muito tempo. O próprio cravo, embora o seu repertório fosse muito apreciado, viveu tempos difíceis no século XIX, esmagado pelo triunfo do pianoforte e do piano. Coube ao musicólogo inglês Santiago Kastner resgatar o legado de Seixas: as 1.as edições da sua obra para teclado seriam publicadas pela Schott em 1935/1950.

Em 1980/1992, a FCG editaria 105 sonatas de Seixas para instrumentos de teclas. A Ivo Cruz, G. Doderer, Cremilde Fernandes, J.P. Alvarenga, João Vaz, Pedrosa Cardoso e J. E. Martins, entre outros, se devem contributos preciosos para iluminar o génio desta estrela maior de Coimbra, que vale a pena celebrar e ouvir em órgão, cravo ou piano 321 anos depois. Ouça ainda hoje o seu concerto em Lá maior!”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, o “Concerto em Lá Maior” para cravo, na interpretação do cravista norueguês Ketil Haugsang, acompanhado pela Orquestra Barroca da Noruega:

https://www.youtube.com/watch?v=B-meg1tT2J0

O resgate inicial de Carlos Seixas realizado por Santiago Kastner, inicialmente com a edição de Sonatas e Tocatas (Schott, 1935-1950), após com o livro “Carlos Seixas” (Coimbra, Coimbra Editora, 1947) e bem posteriormente com a edição do conjunto de Sonatas (Fundação Calouste Gulbenkian, 1980-1992), corroboraram para a divulgação ainda tímida, diga-se, da obra do notável compositor. Kastner apreende em seu livro algo fundamental a respeito de como captar a essência da música de Carlos Seixas: “Quer a arte de Seixas ser manuseada com afeto e delicadeza. A querençosa bonança, a transparente boniteza desta música pede ser enquadrinhada com o gosto requintado do ‘connoisseur’ ou do provador selecto”.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, Sonata em lá menor, na interpretação de J.E.M. Gravação do recital na Igreja do Convento Nª Senhora dos Remédios, em Évora (11/11/2011):

https://www.youtube.com/watch?v=BP3Aic2bvac

The distinguished professor at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro, recently wrote an article about the great Portuguese composer Carlos Seixas (1704-1742) and published it in the Diário de Coimbra on June 11, the date of the remarkable musician’s birth.