Viagens significativas que deixaram lastro
Uma edição crítica da música deve ser feita com a colaboração estreita com os músicos,
evidentemente possuidores de uma cultura particular.
Na verdade, músicos-musicólogos e musicólogos músicos,
esta última categoria mais rara.
Há intérpretes musicólogos que trouxeram preciosa colaboração.
François Lesure
(Extraído de palestra na USP, 09/10/1997)
As três viagens do notável musicólogo francês François Lesure ao Brasil (1988, 1990 e 1997) estiveram sob a égide acadêmica. As duas primeiras tiveram como tema central Claude Debussy, pois François Lesure foi certamente o nome referencial na segunda metade do século XX, graças às pesquisas aprofundadas que resultaram em inúmeros livros indispensáveis sobre o compositor; a terceira envolveu principalmente a avaliação do Departamento de Música da Universidade de São Paulo.
A agenda de 1988 foi intensa. Duas palestras, que deveriam ser realizadas no espaço uspiano, tiveram de ser transferidas à última hora, mercê de greve geral, movimento que ocorre quase todos os anos nas universidades estaduais paulistas. O saudoso Sígrido Levental, tão logo ao saber da paralização, cedeu a sala principal do Conservatório do Brooklin, por ele dirigido. Apesar de público pequeno, motivado pela súbita mudança de local, François Lesure discorreu sobre “Debussy – perfil e avaliação” (19/10), com a participação do flautista Antônio Carlos Carrasqueira, que interpretou do compositor, Syrynx para flauta solo. Interpretei Masques e L’isle joyeuse, criações de Debussy em 1904. No dia seguinte, Lesure ofereceu como tema “A musicologia hoje – propostas para um debate”.
Após as palestras, seguimos para o Rio de Janeiro, a fim de participar do “Ciclo Debussy (1918-1988)” promovido pela Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se estendeu de 7 de Outubro a 23 de Novembro com recitais de piano apresentados por Homero de Magalhães (Préludes, 1º e 2º livros), Esther Naiberger (Suite Bergamasque, Images I e II), Sonia Goulart (12 Études) e por mim (15 peças avulsas, Images oubliées e La Boîte à Joujoux). A palestra de François Lesure versou sobre “Debussy – Perfil e bibliografia crítica”. O saudoso pianista Heitor Alimonda e eu ilustramos a palestra interpretando a Symphonie en si mineur e Triomphe de Bacchus para piano a mãos (24/10).
Depois das atividades no ensolarado Rio, François Lesure e eu visitamos a neta do compositor Henrique Oswald, a saudosa amiga Maria Isabel Oswald Monteiro e, como sua morada ficava no Leblon, bem perto do mar, François quis pisar nas areias famosas do Rio de Janeiro. À tarde estivemos com sua amiga, a notável musicóloga Cleofe Person de Mattos (1913-2002).
Em 1990, François Lesure esteve no Brasil para compor a comissão julgadora de minha tese de livre docência, sob o título “O idiomático técnico-pianístico na obra de Claude Debussy”, defendida na Universidade de São Paulo. Nos poucos dias subsequentes realizou encontros com professores e alunos do Departamento de Música, salientando com ênfase objetivos precisos para as elaborações de teses e insistindo que uma tese não pode nem deve ser propósito único de ascensão na carreira. A seguir gravou programas para “Tempo de Concerto” da Rádio USP-FM.
Quando da avaliação do Departamento de Música da Universidade de São Paulo em 1997, François Lesure participou, como membro estrangeiro, da equipe de professores designados para esse mister. A visita possibilitou sugestões importantes para o aperfeiçoamento dos cursos oferecidos. Após a avaliação, Lesure proferiu palestra e ouviu considerações de professores, alunos e visitantes, sempre com o precípuo desiderato de transmitir experiências didáticas relevantes e praticadas em vários países da Europa e Estados Unidos. Igualmente abordou outros temas concernentes à musicologia, pesquisa, bibliografia, assim como teceu observações concernentes à prática musical, teoria e metodologia de estudo.
Tendo traduzido e gravado o encontro, inseri as perguntas e respostas formuladas por professores, alunos e convidados na “Revista Música” da USP (vol. 8 – Maio/Novembro, 1997), transcrevendo neste espaço algumas de suas considerações, assim como excertos das entrevistas que François Lesure gentilmente concedeu ao “Tempo de Concerto”, que eu apresentava na Rádio USP-FM (1994-2008) às terças-feiras e que foram ao ar em quatro programas no mês de Novembro daquele ano.
Destaco inicialmente seu entendimento sobre a relevância da musicologia na universidade: “Chamo a atenção para que a musicologia não seja esquecida ou o seu papel diminuído na universidade em detrimento da prática instrumental, dado o fato de o sistema daqui ser bem diferente daquele exercitado na Europa, em especial. Estou convencido de que a musicologia é um complemento indispensável tanto para os músicos como para os intérpretes em geral, mesmo em se considerando os rumos outros empreendidos por um músico”.
Sobre o repertório não frequentado, Lesure tem opinião firme voltada à sua qualidade: “Quanto ao problema do repertório dito ‘esquecido’ e que se encontra depositado nos arquivos, penso que há sempre um perigo. Primeiramente, relativo a musicólogos que estudam esse repertório ‘oculto’, mostrando-se por vezes indulgentes quanto ao valor intrínseco desses manuscritos ou edições; em segundo lugar, concernente aos pesquisadores que fazem teses sobre músicos de um segundo escalão, tendendo a magnificar as obras estudadas. Nestes casos, existe a permanente tendência a decepcionar o público, que se interroga, enfim, se valeria a pena recuperar tais músicas”.
A uma pergunta sobre a qualidade, Lesure considera a questão instigante: “Cada um elabora os níveis de qualidade. Contudo, pessoalmente, se tiver de escolher uma peça de salão de 1830 e uma missa de Guillaume de Machault, do pleno século XIV, tenderia a escolher esta última”.
Outra questão levantada precisava a repercussão da obra de Villa-Lobos em Paris. Lesure respondeu: “poderia dizer que Villa-Lobos foi muito tocado logo após a 2ª Grande Guerra e, em parte, pelo que de interessante suscitava um compositor brasileiro. Saliente-se que, para muitos dos franceses, Villa-Lobos era o único compositor do Brasil conhecido. Hoje ele é menos tocado, digo sempre, em França. Não teria explicações claras para dar; porém, haveria a necessidade de se conhecer o que as instituições nacionais têm feito no sentido de promover a difusão da obra de Villa-Lobos no Exterior. E, por consequência, de outros autores brasileiros”.
Precipuamente a respeito de uma conciliação da prática interpretativa com a musicologia, diz François Lesure: “Os senhores se encontram numa posição que chamaria de exceção no sistema. Na universidade francesa não há o instrumental para a prática. Se tanto, um piano, um aparelho de som, outro mais, mas não o ensino específico do instrumento”. Lesure mencionaria excepcionalidades, como as existentes em determinadas secções na Provence e cita Tours, que mantém um conjunto de música antiga dentro da universidade. Contudo, considera que “a estrutura existente não favorece a direção nesse sentido, ou seja, a estreita ligação musicologia-interpretação”. Observaria que “em França, nestes últimos 20 anos mais precisamente, toca-se tanta música do período barroco, nem sempre a melhor, que hoje se pode falar em saturação. Há muitos grupos de música barroca que apresentam, por vezes, repertório de nível discutível e, em certos casos, enfadonho, julgo eu”.
Quanto às gravações visando aos programas para a Rádio USP-FM, tive o cuidado de buscar alternativas às questões propostas pelo público na entrevista do dia 9 de Outubro. Até em perguntas limítrofes ao exposto na palestra houve, por parte de François Lesure, abordagem outra enriquecedora. O insigne convidado comentou perguntas por mim formuladas a respeito de suas pesquisas sobre Debussy que focalizaram a vida, a obra e a busca incessante da atividade epistolar do compositor. Sobre sua biografia, exposta em dois livros mencionados no blog anterior, Lesure considerava naquele 1997: “há 25 ou 30 anos não se publicava uma biografia mais atenta, que privilegiasse as descobertas recentes. Em alguns assuntos, tive de partir basicamente do zero. Tentei mostrar Debussy na medida do possível a cada dia de sua trajetória e, nessa caminhada, algumas lendas criadas em torno do compositor foram demolidas, graças à precisão documental. Certamente, esta não é a última biografia sobre Debussy, mas penso que, pela primeira vez, um Debussy mais verídico, mais próximo psicologicamente da realidade foi retratado. Entenda-se, o temperamento e o caráter do compositor não são fáceis de serem decifrados. Não estou seguro de ter atingido completamente os objetivos, mas acredito que os esforços empreendidos aproximam-nos de uma maior realidade” (tradução: J.E.M.).
Clique para ouvir, de Claude Debussy, Étude pour les arpèges composés, na interpretação de J.E.M. :
https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo
A respeito da profícua atividade na Bibliothèque Nationale, François Lesure, que esteve ligado durante 38 anos à Instituição, sendo que 20 anos como chefe do Departamento de Música da B.N., tem considerações de grande interesse: “A B.N. remonta a Charles V, ou seja, ao século XIV e é grande a herança que pesa sobre a Instituição. Creio que, se colocarmos os documentos da B.N. sobre uma estrada, manuscritos e livros, um após o outro, poderia dizer que teríamos uns sete quilômetros de música!” Tem consciência de que nem todas têm a mesma qualidade, “mas há tesouros a serem descobertos. Não quero dizer com isso que temos nesse tesouro uma ‘segunda’ Nona Sinfonia com coral de Beethoven ou então uma nova Sinfonia Fantástica de Berlioz”.
Quanto ao perfil daqueles que buscam a B.N., Lesure pondera: “Prioritariamente têm perfis científicos; bibliotecários e musicólogos, pois esses são os pesquisadores no sentido estrito da palavra, mas também os músicos. Como exemplo, aqueles que encontraram um problema numa partitura, seja pelo fato de acharem que uma determinada nota é duvidosa ou que uma passagem suscita ambiguidade. Conheci regentes que vieram verificar um documento autêntico. Temos aí uma prova de profissionalismo raro da parte de músicos praticantes que se dirigem à B.N.”. François Lesure enfatizaria a necessidade absoluta de o intérprete buscar fontes fidedignas através das edições críticas, pois são muitas as edições que não partiram do exame minucioso dos manuscritos que se encontram no mercado, por vezes eivadas de erros.
Creio que as três visitas do ilustre musicólogo foram extremamente proveitosas para aqueles que souberam apreender seu pensamento voltado ao rigor da pesquisa, à ausência absoluta da vaidade quanto às descobertas, à generosidade plena para com todos aqueles pesquisadores que o procuraram para aconselhamento. Sempre aberto aos objetivos claros dos pesquisadores, ajudou-os nessa busca sem fim em direção ao conhecimento. François Lesure, uma figura exemplar.
François Lesure’s three visits to Brazil (1988, 1990 and 1997) were remarkable. In this post I comment on the activities of the illustrious musicologist in our country, mentioning excerpts not only from one of his lectures at the University of São Paulo (USP), but also from the programs recorded for Radio USP-FM.
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