Navegando Posts publicados em junho, 2021

Um dos nomes mais relevantes da musicologia no século XX

Poucas personalidades puderam e souberam
conduzir, como ele, várias carreiras
ou atividades paralelas enriquecendo-se mutuamente,
sendo as principais, de um lado,
a função de curador na Bibliothèque Nationale
e a de professor do ensino superior,
e, sob outra égide,
as atividades de musicólogo e de bibliógrafo,
para nos limitarmos ao essencial.

Catherine Massip

Há exatamente 20 anos, 21 de Junho, a França perdia um de seus mais notáveis musicólogos e bibliógrafos. A lembrança de François Lesure faz-se necessária neste espaço, pois sou-lhe eternamente grato. Foi ele que, ao conhecer minhas pesquisas e interpretação de toda a obra para piano de Claude Debussy, propiciou-me aberturas fundamentais em torno do imenso compositor. Abriu-me inclusive, como Diretor de Música da Bibliothèque Nationale, o estudo de toda a criação pianística de Debussy através dos manuscritos originais, experiência fulcral para aprofundamentos. À medida que as pesquisas prosseguiram, por três vezes convidou-me para palestras na École Pratique des Hautes Études em Paris, assim como para escrever, ao longo dos anos, artigos para os “Cahiers Debussy”, publicação do Centre de Documentation Claude Debussy, por ele criado.

Essa premissa faz-se necessária. Rememorar François Lesure é descortinar uma mente privilegiada, brilhante, plena de sabedoria e de generosidade para com todos aqueles que, imbuídos de propostas pertinentes, procuravam-no na Secção de Música da Bibliothèque Nationale, Rue Louvois, nº 2. Foi um grande privilégio privar de sua amizade.

François Lesure foi certamente uma das figuras mais significativas da cultura musical em França, quiçá a mais enciclopédica, na segunda metade do século XX. Tendo estudado na Sorbonne, na École Pratique des Hautes Études, École de Chartes e no Conservatoire de Paris, legou nas duas Escolas mencionadas teses referenciais sobre a feitura instrumental (1948) e os instrumentistas (1950) na Paris do século XVI. Em 1954, como secretário do Repertoire International des Sources Musicales (R.I.S.M.), François Lesure seria determinante na elaboração de catálogos, mormente três (1960, 1964 e 1971), que repertoriam do século XVI ao XVIII. A dedicação à vasta produção da música antiga ocuparia parte das investigações de François Lesure. Saliente-se a colaboração efetiva de sua esposa, Anik Devriès-Lesure, na edificação dos dois volumes do “Dictionnaire des éditeurs de musique français”, que abrange dos primórdios da atividade até 1914.

Posteriormente, o musicólogo estaria na direção de publicações da coleção “Le Pupitre”, com música dos séculos XVII-XVIII (Paris, Heugel, Leduc), assim como da coleção “Patrimoine”, que privilegia compositores franceses relevantes nascidos no século XIX (Paris, du Marais). Da primeira, presenteou-me com a edição das obras de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) para cravo (Paris, Heugel. “Pupitre”, coleção de música antiga publicada sob sua direção. Edição crítica de Kenneth Gilbert) e com o “Traité de l’Harmonie” do genial compositor (France, Klincsiek, 1992, fac simile do exemplar conservado na Biblioteca da Sorbonne. Nota bibliográfica de François Lesure), essenciais para a minha gravação da integral ao piano em Sófia, na Bulgária, em 1997 e lançada em dois CDs pelo selo belga De Rode Pomp com texto do encarte assinado pelo ilustre musicólogo.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Niais de Sologne”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700

Seria em 1950 que François Lesure entraria no Departamento de Música da Biblioteca Nacional da França e, entre 1970 e 1988, diretor do Departamento. Como professor de musicologia lecionou, de 1964 e 1977, na Universidade Livre de Bruxelas, sendo que em 1977 sucedeu a Solange Corbin (1903-1973) na cadeira de musicologia da École Pratique des Hautes Études. Presidiu a Société Française de Musicologie entre 1971-1974 e 1988-1991. François Lesure foi responsável pela organização de exposições junto à Biblioteca Nacional e alhures. Uma delas teve relevo especial, “Debussy et le symbolisme”, na Villa Médicis em Roma, onde o compositor, após receber o Prix de Rome no Conservatório de Paris, estagiou entre 1885-1887. Recordo-me que François Lesure situava Debussy nessa atmosfera simbolista, rejeitando o termo impressionista. Para tanto, disse-me ele que, naquela Exposição, colocara embaixo das escadas, com pouca visibilidade, um pequeno quadro da escola impressionista, apenas para evidenciar a diminuta influência.

Especialista referencial da música a partir do século XVI, estudando aprofundadamente manuscritos editados ou não, repertoriando, catalogando, nessa importante via de elaborações bibliográficas, François Lesure teria uma relevância absoluta na edificação das fontes relacionadas, mormente as referentes a Claude Debussy. Inquestionavelmente, posicionou-se como o mais abrangente pesquisador nos estudos relacionados ao notável compositor francês na segunda metade do século XX.

Afirmaria em entrevista à Rádio USP-FM, São Paulo, aos 9/10/1997: “Houve uma mudança de rumo quando se deu o centenário de Claude Debussy em 1962. Já estava na Bibliothèque Nationale e, nessa instituição, há o hábito de celebrar os grandes centenários através de catálogos e exposições. Nesse ano entrei pois pela primeira vez, de uma maneira focalizada, no mundo debussista”. Em 1971 foi o responsável pela edição de “Monsieur Croche”, edição da obra crítica de Debussy (Paris, Gallimard), republicada pela mesma editora em 1987 numa edição revista e aumentada. Em 1977 é publicado o “Catalogue de l’oeuvre de Claude Debussy” (Genève,Minkoff) e, já no início da introdução, Lesure afirma que “todos os catálogos são provisórios”. A essa altura, François Lesure se preocupava não apenas com a biografia, como também com a seleção da vasta correspondência de Debussy. Quanto à primeira, posiciona-se Catherine Massip ao considerar a biografia de Debussy depositada em dois livros — “Claude Debussy avant Pelléas ou les années symbolistes” (Paris, 1992) e “Claude Debussy: biographie critique” (Paris 1994) – como “a melhor biografia de Debussy atualmente disponível”. Aliás, biografia não superada até o presente, apesar das precedentes obras de Léon Vallas (1879-1956) e Edward Lockspeiser (1905-1973), entre tantos outros que se dedicaram ao difícil mister. Quanto à reunião da correspondência de Debussy, Lesure empreendeu um trabalho de longo fôlego, inicialmente introduzindo imagens nas duas obras da década de 1970, “Claude Debussy – iconographie” (Genève, Minkoff, 1975) e “Claude Debussy – Lettres” (Paris, Hermann, 1980). Desse período até a publicação de “Claude Debussy – Correspondance – 1884-1918” (Paris, Hermann, 1993), dezenas de outras missivas manuscritas seriam divulgadas (vide blog: “Claude Debussy e a atividade epistolar”, 11/01/2020). François Lesure continuava a pesquisa com vistas à publicação da correspondência completa – provisória, se considerada sua opinião sobre catálogos, quando vem a falecer aos 78 anos, em 2001. O trabalho hercúleo de François Lesure seria completado pelo seu ex-aluno Denis Herlin juntamente com Georges Liébert (Paris, Gallimard, 2005). Ainda no universo de Debussy, Lesure foi o criador e supervisor da edição crítica da obra completa de Debussy pela Durand-Costallat, com muitos volumes já publicados, mas em andamento há décadas.

Durante as várias viagens a Paris para pesquisas relacionadas a Debussy, destaco a importância de Myriam Chimènes, a quem François Lesure confiou, a partir de 1984, a responsabilidade do “Centre de documentation Claude Debussy” por ele criado, convidando-a a fazer parte do comité de redação da Edição crítica das obras completas de Claude Debussy, acima mencionada. François Lesure foi seu orientador da tese de doutorado, a ter como tema “Khamma, ballet de Claude Debussy, Histoire et Analyse” (Université Paris IV, 1980).

No próximo blog abordarei as três viagens de François Lesure ao Brasil (1988, 1990, 1997) para conferências, entrevistas, avaliação do Departamento de Música da Universidade de São Paulo e participação em banca de livre-docência na mesma instituição.

François Lesure, bibliographer and one of the leading musicologists of the 20th century, passed away twenty years ago. Professor at the École Pratique des Hautes Études and curator of the Music Department of the Bibliotèque Nationale in Paris (1970-1988), François Lesure specialized first in 16th and 17th centuries music and later in Claude Debussy. His researches, which resulted in fundamental books, place him as the most representative scholar on the French composer in the second half of the 20th century.

Recepção ao filme reflexivo

Sempre tive a necessidade não só de tocar,
mas de escrever.
Alfred Brendel (1931- )

Foram inúmeras as mensagens - de músicos ou não - sobre o post anterior. Alguns já tinham visto “A última nota”. Todos os leitores que privilegiam o blog, o que muito me honra, teceram comentários positivos sobre o filme.

Chamou mais atenção o drama enfrentado pelo personagem ficcional, pianista Henry Cole, que, após décadas de carreira consagrada, entende o momento de finalizá-la. Curiosamente, o medo do palco foi pouco mencionado. Ele é real e interrompeu muitas carreiras, inclusive teria sido motivo fulcral para a decisão final de Henry Cole, o pianista protagonizado por Patrick Stewart.

Entre as tantas mensagens, destacaria a do advogado Pedro de Almeida Nogueira, que, ao mencionar uma frase minha interrogativa, constrói um conto pertinente e sugestivo, a abordar uma atividade hipotética. Com a permissão do autor transmito aos leitores o texto citado, pois ao longo da existência assisti a muitos casos de aposentados que exerceram as mais variadas funções e que se afastaram das cidades grandes para viver a tranquilidade em outras bem menores ou ainda no campo, na montanha ou no litoral.

De meu questionamento, surgiu: “Hoje a provocação e o estímulo foram grandes, quando disse: ‘Qual o momento a se pensar no encerramento de uma carreira?’. E escrevi:

QUEM ACREDITA NUM VELHO

Quando o nível de cansaço e estresse chegou ao limite e passou a influir na razão, comecei perder o equilíbrio e, antes de sucumbir, resolvi deixar tudo; os amores, a moradia, a cidade, os amigos, e o trabalho! Abandonei a profissão. Não entreguei os pontos, fui vencido. Sabe do avião em estol? Do motor que funde? Do atleta que cai sem fôlego? Do barco à vela sem vento? Pois bem, qualquer um desses era exemplo de meu estado! Tornei-me irritadiço e não queria mais ouvir explicações. Até desacreditei dos incentivos e fechei a porta do mundo que havia conquistado. Fui ou fugi para um lugar distante e bem modesto, onde não conhecia ninguém. Ali sabia que não seria aconselhado, cobrado, perguntado ou bajulado, nem estava com vontade de conversar.

Queria esse lugar! Onde eu pudesse ser eu nu! Necessitava me conhecer sem influência e sem influir, por isso a intenção de omissão e esconderijo.

Nesse novo lugar e sozinho, não teria que dar satisfações e ter obrigações. Poderia contemplar a natureza sem reserva prévia e a qualquer momento tomar um café sem formalidade, comer sem hora, tomar uma bebida em casa, no botequim, na conveniência ou onde fosse, sem ninguém acompanhando.  Iria ouvir animais e pássaros e não buzinas.

Consegui o lugar muito modesto e no desterro pensei em escrever. Ocupar o tempo com alguma coisa que gosto de fazer e sem obrigação: artigos, poesias, peça teatral e um livro!  Sempre tive muita vontade de escrevê-lo: o tema não faltava. Escolhido, a ele me dediquei dias e noites sem me encontrar. Nunca estava bom; escrevia e apagava com enorme frequência e velocidade de fazer inveja a Penélope. O tempo começou a fazer provocações e a esmorecer o entusiasmo de ficar só. Comecei a me sentir inútil. Comecei pensar na necessidade de tirar o pijama nas manhãs.

O cansaço das atividades desenfreadas de outrora passou e veio a reflexão de que perdera a credibilidade conseguida à custa de muito sofrimento e trabalho dedicado.  A ausência dos filhos e netos começou a incomodar. Por todo lugar que passava via avôs acompanhados. Amigos visitando amigos. Gente jogando conversa fora nos bares e restaurantes. Percebi que o arquivo da memória se descortinava diante de uma simples foto vista até sem querer ou do nome de alguém ouvido por acaso, lembrando-me de um amigo abrindo o palco do passado. Comecei a ter sistemáticas e doces lembranças que só provocam saudades, justo dessas que são só ‘mardade’, como diz Genésio de Arruda. Só agora entendi que estava em solidão, porque no primeiro momento foi gratificante ir ao banheiro com a porta aberta, como disse Antônio Maria, mas com o tempo fui percebendo que estava no mundo dos excluídos. Que lugar cinzento! O que adianta a privacidade estando a sós; muito melhor eram as interferências. Então porque ficar na solidão, se caminho com meus próprios pés? Simplesmente pela perda do elo, da interação com a profissão e a certeza de saber impossível retomá-la. Quem sai tem o lugar preenchido e o substituto impõe novo ritmo, fazendo obsoleta a volta de quem foi. Na vida não há vazios e ninguém é insubstituível.

É verdade que conceitos se incorporam às pessoas e por eles são elas rotuladas, mas com o tempo perdem a validade, principalmente sem o renovar do convívio. Até os conceitos ficam ultrapassados e passam a servir apenas de exemplo ou, quando muito, de apoio para uma afirmação. Sem atividade envelhecemos e perdemos a credibilidade.

Hoje penso que deveria ter lutado contra o stress, pelo menos para não abandonar tudo, e ter esperado pelo momento certo de encerrar a carreira!”

Todos os pianistas têm o seu dia D, programado ou alongado, quanto ao término da carreira, o que não ocorreu com Mônica de la Bruchollerie (1915-1972) e William Kapell (1922-1953), acidentados em estrada (1966) e em queda de avião, respectivamente, ou mesmo Solomon Cutner (1902-1988), que em plena carreira teve problema cardiovascular a comprometer um dos braços, décadas antes de sua morte. Nesses três casos o dia fatal, a encerrar carreiras gloriosas, foi abrupto. Aqueles que prosseguem, mesmo no declínio, são reverenciados pelo público como lendas, apesar de problemas técnico-pianísticos e falhas de memória não raras. Saber o momento de parar reflete ato de sabedoria. Nos primeiros anos deste século, o afinador do Palais des Beaux Arts de Bruxelas, Taki, afinava o piano durante os três dias de minhas gravações em Mullem. Tinha eu sessenta e tais anos e Taki me afirmou que, quando afinava o piano para as apresentações do notável pianista Alfred Brendel (1931- ), este ficava ao seu lado, a observar os mínimos detalhes. Nas nossas conversas, disse-me Taki que Brendel lhe afirmara que encerraria a carreira, em plena forma certamente, aos 75 anos. Finalizou-a aos 77, em 2008. Essa determinação pragmática merece louvor. Ao se aposentar diria que sessenta anos de carreira foram bem suficientes. Ao jornal Daily Telegraph, declararia: “”Mapeei exactamente o que faria quando me aposentasse. Durante muito tempo tive uma vida literária – não um passatempo, uma segunda vida – e é bom continuar a dar aulas e a escrever de uma forma mais focalizada”. Essa determinação expressa por Brendel longe está do pensamento da maioria dos intérpretes, que, indecisos quanto ao afastamento ainda no domínio do teclado, fazem-no por problemas acentuados pela idade, assim como dificuldades motoras outras, perda progressiva da visão ou alteração na audição. Neste caso específico, Sviatoslav Richter (1915-1997) sentiu disfunção auditiva relacionada à exatidão da altura dos sons registrados na partitura.

Empresas e serviço público têm suas regras para que, independentemente da vontade, o afastamento se processe. Para o músico não engajado em qualquer das duas opções elencadas, a decisão individual será a porta aberta para outros caminhos que preencherão a existência ou para a solidão do pensar, que pode levar a um futuro nostálgico. Sob outra égide, se deixou um legado através das gravações ou de textos relevantes, será lembrado pelas gerações de aficionados.

I received countless messages praising the Canadian movie “Coda”. In one of them, the lawyer Pedro de Almeida Nogueira sends a story based on my questioning about the moment of saying farewell to the public. To conclude, I comment further on this decisive moment in one’s career.

 

Um filme a revelar a compreensão do ocaso

Você, pedra no meu caminho,
Você é mais forte do que eu.
Hermann Hesse

Qual o momento a se pensar no encerramento de uma carreira? Mormente no que tange à interpretação musical, onde a presença física frente ao público é basicamente imperiosa, assim como nos esportes, a realidade se apresenta de difícil articulação, mas em determinado instante tem de ser enfrentada.

No que concerne ao músico instrumentista, há variações da perenidade em cena, e “o tempo insubornável”, de que nos fala o grande Guerra Junqueiro, atinge a todos, mas a aceitação da concretude obedece a nuances. Os músicos têm o privilégio da longevidade em suas atividades. O mesmo não ocorre com os esportistas profissionais, cujo desempenho obedece a tempo exíguo, que dificilmente ultrapassa 20% de suas existências. Findos os ciclos esportivos, rememoram durante décadas suas performances, narrativas tantas vezes nostálgicas ou superdimensionadas.

“A última nota” (título original “CODA” – 2019) é um filme que leva à reflexão sobre o tema. Em música, a coda é o epílogo de uma composição musical, tantas vezes apresentando temas ouvidos nas secções anteriores. Dirigido pelo canadense Claude Lalonde e com Louis Godbout como roteirista e consultor musical, tem como ator principal Patrick Stewart e mais as participações de Katie Holmes e Giancarlo Esposito. O filme expõe a situação de um pianista no ocaso voluntário da carreira, acrescido da presença do medo do palco, mormente após uma falha de memória quando já estava a interpretar, diante de um grande público, o virtuosístico final (coda) da 4ª Balada de Chopin. A trágica morte da esposa, Elisabeth, deixa-o longe do teclado durante três anos, fato que dimensiona o receio do retorno. Público e crítica o prestigiam, alheios aos seus dramas. O reencontro com a articulista de importante jornal, Hellen (Katie Holmes), suaviza temporariamente o período soturno que Henry Cole, o pianista ficcional, atravessa. Nos encontros visando a uma entrevista, entremeados com a necessidade imperiosa de Henry de manter-se solitário, estaria a essência das muitas reflexões entre os dois personagens. Henry Cole encontra-se no dilema a apontar para o fim da carreira. Para que a intensidade do tema atingisse o objetivo maior, a acentuar a realidade infalível, poucos foram os atores em ação. O multum in minimo dimensiona o momento inexorável, proposta atingida no cerne. As cenas lentas, prioritariamente acrescidas por obras para piano consagradas em andamentos tranquilos, não teriam sido pensadas para intensificar a sensação da nostálgica e irrefutável decisão do pianista? Há o instante do acontecido, que acentua o temor do final de uma gloriosa atividade. Se episódios inseridos no roteiro já evidenciam a necessidade de interromper a carreira, a “coda” chopiniana estabelece a certeza. A necessidade de buscar paisagens alpinas apenas provoca a reflexão consciente. Não lhe basta o afago do fiel empresário, a considerar que o grande pianista Sviatoslav Richter tocava com a partitura à frente – fato real, após o pianista ter os denominados “brancos” de memória em recitais no Extremo Oriente -, pois a decisão inexorável já estava tomada.

O temor do palco é fato que pode advir em muitos casos. Pianistas relevantes tiveram crises transitórias ou que se prolongaram. Vários seriam os motivos: problemas relativos à memória, insegurança devido a problemas físicos, depressão, idade avançada. Este último raramente tem solução, mercê do fim à espreita.

Em blog bem anterior comentei dois livros fulcrais sobre Le Trac (o medo do palco), do médico Dr. André-François Arcier (France, Alexitère, 1998 e 2004), que estuda pormenorizadamente a situação, suas causas e consequências (vide blog: “O Medo do Palco” (04/10/2008). Dois pianistas relevantes têm frases mencionadas em seus livros. György Cziffra (1921-1994) afirmou que “adentrar um palco é um ato de coragem. É nesses instantes que reside a fragilidade do intérprete. Leva-se uma mensagem que tem de ser passada em hora precisa, por vezes fixada anos antes, sendo um paradoxo que oscila entre a ação de graça e o suplício de Tântalo”. Martha Argerich (1941- ), por sua vez, confessa: “Hoje, eu poderia muito bem deixar de dar concertos. É um ato contra a natureza. O prazer é tão raro. No palco não temos a naturalidade de quando em nossa casa, pois não realizamos os mesmos gestos com as mãos frias, há os joelhos que tremem, o nariz que escorre. A interpretação se modifica. E mais, o peso dos olhares sobre você…”. Glenn Gould (1932-1982) não sentia le trac, mas sim o batimento cardíaco aumentar sensivelmente, causa possível de, a certa altura, dedicar-se unicamente às gravações. Samson François (1924-1970) no final da vida, após carreira meteórica, estava “consciente de ter desenvolvido uma grande apreensão relacionada ao seu estado no dia do concerto”, segundo sua ex-aluna, a pianista Myriam Birger.

Nos encontros de Henry e Hellen há conteúdos enigmáticos da parte do pianista, mas que, no todo, revelam sensibilidade e poética. No diálogo há dizer basilar: “O sucesso esconde falha ou ferida sedimentada. Pode até ficar longe da sua mente, mas estará sempre ali, a operar em plano secundário, à espreita por trás de uma máscara”. Uma rocha nos Alpes Suíços faz Helen relembrar a transitoriedade da vida e a perenidade da pedra, onde não falta menção a Nietzsche. Futuramente Henry visitará a rocha ancestral. Símbolo a sugerir o legado que permanece através das gravações, único meio sonoro de preservação de um intérprete. As frases reflexivas foram pensadamente expressas em lugares bucólicos, provocando uma melhor apreensão.

Henry entende que os compositores alemães são boa companhia e que não teria vivido a adolescência sem Schumann; aliás, o compositor mais presente entre as obras executadas. Na divagação comenta que apenas ele o entendia e que, mais tarde, Beethoven e Bach entrariam na lista de suas opções preferenciais.

“A última nota” é um belo filme, pleno de reflexões sobre a fase decisiva da escolha: continuar ou findar a atividade. Para o músico solista essa decisão pode conter traumas ou aceitação, a depender também de como a carreira foi encaminhada. Há aqueles que, em plena forma, mas com a idade a avançar, fixam bem antecipadamente o término. Outros, de maneira ab abrupto, como a pianista Monique de la Bruchollerie (1915-1972), após acidente automobilístico em 1966 na Romênia.

Sob outra égide, esse término pode estar implícito em outra categoria da atuação. Quantos não são aqueles que, já na quarta ou quinta década, não mais renovam o repertório, repetindo-se até os estertores da carreira? A renovação dos programas é um alento que não descarta a infalibilidade do término, mas possibilita ao intérprete, ao aventurar-se em criações que jamais estiveram em seu repertório, renascer como Phoenix.

A direção do canadense Claude Lalonde, nessa comunhão com o roteirista e consultor musical Louis Godbout, está impecável. Filmes biográficos quase sempre incorrem em inúmeros equívocos. “Coda”, sendo ficcional, é preciso nas abordagens relativas aos dramas dos intérpretes, o que dimensiona a pesquisa do roteirista. A escolha do pianista ucraniano Serhiy Salov para a interpretação de todas as músicas para piano solo foi criteriosa e algumas das execuções são pungentes.

Clique para ouvir, na interpretação de Serhij Salov, a 4ª Balada de Chopin. Precisamente aos 9:58 tem início a coda:

https://www.youtube.com/watch?v=kdHcNXfIFN8

O ator principal, Patrick Stewart, num dificílimo papel, evidencia diversos atributos. Nas inúmeras expressões faciais, universo de nuances que jamais ultrapassa o excesso, o que torna ainda mais complexa a caracterização do sentimento, ou da sua ausência, Patrick Stewart mostra-se um mestre. Katie Holmes revela qualidades sensíveis e são admiráveis suas expressões de admiração pelo entrevistado. Seu recato frente à determinadas negações do pianista revela sempre a aceitação, jamais o desacordo. Insistente, sem importunar o personagem, amando-o discretamente sem buscar retribuição, a atriz está precisa em seu papel. Quanto ao agente de Henry Cole, o ator Giancarlo Esposito, mostra-se incentivador e fiel escudeiro, tão distante da maioria dos que praticam a atividade.

Recomendo vivamente “A última nota” (CODA), um filme que merece ser visto e revisto.

The movie Coda  (in Portuguese “A última nota”) is contemplative and addresses two important aspects of a pianist’s work: stage fright and the inevitable moment of ending one’s career. The work of the Canadian director Claude Lalonde is impeccable and the script by Louis Godbout, who is also the musical consultant, is very well done. The main actor, Patrick Stewart, reveals remarkable qualities in a very difficult role. The same can be said about Katie Holmes in a sensitive and fine performance. As for actor Giancarlo Esposito, he presents himself as a supportive and faithful manager, contrary to most of his colleagues in real life. Concerning the movie repertoire, excerpts from pieces by J.S. Bach, Beethoven, Schumann, Chopin and Scriabin are interpreted by the highly accomplished Canadian pianist (of Ukrainian origin)  Serhij Salov.