Um pianista impecável sob todos os aspectos
O século XX não viu um pianista de maior probidade e de ideais mais puros.
Harold Schonberg
(“The great pianists”, 1987)
Descendente de família de judeus russos, Rudolf Serkin nasceu na Boêmia, então pertencente ao Império Austro-Húngaro, atual República Checa. Menino prodígio, estudou com Richard Robert. Aos doze anos tocou com a Orquestra Filarmônica de Viena. Mais tarde teria aulas de composição com Arnold Schoenberg. Uma passagem definitiva dar-se-ia nos primórdios dos anos 1930. Em Berlin, Rudolf Serkin se apresentaria como camerista junto aos irmãos Busch, dos quais Adolf Busch (1891-1952) foi um notável violinista. Sendo arianos num período da ascensão nazista, os irmãos Busch, em encontro com Goebbels, deste recebem verdadeiro anátema, a proibição de tocar com Rudolf Serkin, judeu. Os Buschs e Serkin se deslocam para a Suíça, lá vivem temporariamente e se estabelecem futuramente nos Estados Unidos. Rudolf Serkin se casaria em 1935 com a filha de Adolf Busch, Irene, e teriam sete filhos.
No novo país lecionaria no Curtis Institute of Music de Filadélfia, tendo sido diretor da instituição de ensino de 1968 a 1976. Formou gerações. Frise-se que, apesar de possuidor de grande virtuosidade, buscava transmitir preferencialmente conteúdos musicais aos seus alunos, a contrastar com a corrente vigente no país. O fato de ter substituído a foto de Franz Liszt (1811-1886) em sua sala de aula pela do insigne pianista Joseph Hofmann (1876-1957), que anteriormente estivera ligado à instituição, evidencia sua inclinação antiexageros exibicionistas. Seu sucessor, Jorge Bolet (1914-1990), ao estranhar a ausência da foto que conhecera décadas atrás, restituiu-a ao local exato.
Rudolf Serkin teria uma carreira extraordinária por tantos países, solando com as melhores orquestras e legando gravações que perduram.
Clique para ouvir, de Brahms, quatro peças, op. 119, na interpretação de Rudolf Serkin:
https://www.youtube.com/watch?v=btVHc6BSxMw
Um episódio burlesco se deu após recital Bach de Adolf Busch com o então jovem pianista Rudolf Serkin em 1921. Ao final, com os aplausos insistentes, Adolf sugeriu a Rudolf tocar um bis. “Mas qual peça?”, perguntou. O violinista, em tom de brincadeira, disse-lhe “As Variações Goldberg”, obra capital de J.S.Bach e de longa duração. Ao final, restavam apenas quatro pessoas: Adolf Busch, o ilustre pianista Arthur Schnabel, Alfred Einstein (musicólogo e crítico musical) e o autor da façanha.
A fazer parte dos grandes luminares do piano do século XX, Rudolf Serkin não se enquadra entre aqueles mais voltados a arroubos e à presença constante na mídia. Uma de suas qualidades interpretativas basilares residia no absoluto respeito às ideias dos compositores eleitos e na tradução sonora sem artifícios. Esse rigor não compromete a fluência que Serkin transmite nos mais variados gêneros interpretados. Era imenso seu repertório, tendo perpassado, no período em que estudou com Schoenberg, obras de compositores coetâneos e apresentado com orquestra obras referenciais, como os Concertos em fá menor de Max Reger, em ré menor de MacDowell, de Bartók e Prokofiev e a Burlesca, de Richard Strauss. Com o passar dos anos se restringiria ao repertório austro-germânico da primeira metade do século XIX, Beehoven, Schubert, Schumann, não se descartando o seu eleito mais remoto, J.S.Bach. Lendárias suas interpretações de programas em que privilegiava, nesse período derradeiro da carreira, as últimas Sonatas de Schubert e de Beethoven. Considerado um dos maiores cultores desses luminares, suas gravações testemunham a singular competência. O crítico Harold Schonberg observa em “The great pianists”: “Serkin passou sua vida a buscar a verdade tal como ele a entende, expressando sua visão do teclado em termos austeros que, no entanto, conseguem utilizar uma linha cantante vinda diretamente do século XIX”.
Desde a juventude Rudolf Serkin praticou música de câmara, gosto acentuado durante as colaborações musicais com Adolf Busch e seus familiares. Notório o duo com o grande violoncelista Mstilav Rostropovich.
Clique para ouvir, de Johannes Brahms, o Allegro non tropo da Sonata nº 1 em mi menor, op. 38, para violoncelo e piano na interpretação de Mstilav Rostropovitch e Rudolf Serkin:
https://www.youtube.com/watch?v=fswUjjn6LvQ
O notável pianista Murray Perahia tece algumas impressões valiosas sobre Rudolf Serkin, sem jamais ter estudado com ele, mas sim interpretado obras para piano a quatro mãos e dois pianos de Mozart. “Ele é uma personalidade, fiel respeitador das intenções de um compositor. É intenso e ao mesmo tempo exigente. Aprendi muito com ele, nada específico, mas sim uma atitude em relação à música, como respeito absoluto e dedicação até os extremos, acima de quaisquer limitações físicas. Não tendo sido dotado com ‘mãos fáceis pianísticas’, teve de trabalhar arduamente sua técnica, e isso lhe causou forte impressão. Decorre que buscou transmitir aos alunos todo esse esforço para almejar a interpretação a mais correta”.
Clique para ouvir, de Schumann, Estudos Sinfônicos, na interpretação de Rudolf Serkin:
https://www.youtube.com/watch?v=JNnVYSksSNY
Morando em Vermont junto à família, teve entre seus sete filhos alguns que se dedicaram à música, sendo que Peter Serkin (1947) tem carreira destacada como pianista e professor.
Clique para ouvir, de Schubert, Marcha em Sol Maior, op. 52 nº 2, na interpretação a quatro mãos de Rudolt e seu filho Peter Serkin:
https://www.youtube.com/watch?v=wlD9haP7g0g
Rudolf Serkin e tantos outros extraordinários pianistas do século XX têm frequentado este espaço. Friso sempre que se faz rigorosamente necessário divulgá-los. A volúpia mediática tem dado guarida de maneira acelerada ao espetáculo, beirando o desrespeito para com os grandes mestres da composição do passado. Pianistas dotados de talento exuberante que se apresentam no Hemisfério Norte, oriundos mormente do leste europeu e do Extremo Oriente, são apresentados como intérpretes, mas acompanhados de uma parafernália gestual e de indumentária. A música é transmitida, mas seria a essência essencial da apresentação? Tão mais o extramusical ocorre, desde que a execução se dê em nível elevado, mais desperta essa geração o entusiasmo de aficionados. Há um capitis diminutio da condição essencial da música, contaminada doravante pelo império dos holofotes. Esses virtuoses de fato, extremamente ventilados, incorporam-se ao espetáculo mediático e pouco a pouco estão a transformar o ritual de um concerto numa “festa” para os olhos. Triste realidade. Nada a fazer…
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