Estudo a partir dos “Quadros de uma Exposição” de Modeste Moussorgsky

… os sons e as ideias estão suspensos no ar, eu os absorvo,
eu me besunto, chegando apenas a rabiscar sobre o papel.
Modeste Moussorgsky
(carta ao amigo Vladimir Stassov durante a criação dos
“Quadros de uma Exposição” – 12 ou 18/06/1874)

Após a apresentação de “Résonances”, de Daniel Gistelinck (blog de 29/09), outra composição de um renomado compositor belga, Lucien Posman (1952- ), é tema do presente post. “Le conte de l’Étude Modeste” integra o CD “The New Belgian Études” (De Rode Pomp, 2004).

Lucien Posman estudou teoria e composição musical nos Conservatórios Reais de Gent e Antuérpia, tendo como orientadores, na área da criação musical, Roland Coryn e Nini Bulters.  Como compositor, Lucien Posman escreveu produção relevante, sinfonia, ópera, concertos, música de câmara diversificada e uma concentração maior na música vocal, mormente aquelas consagradas à poesia de William Blake (1757-1827). Lucien Posman tem carreira consolidada como professor honorário de composição e fuga no Conservatório Real do Colégio Universitário de Gent. É um dos fundadores de várias entidades ligadas à música na Bélgica flamenga, entre elas a associação de compositores flamengos, da qual se tornou presidente honorário, e a De Rode Pomp, importante plataforma artístico-musical gerida por seu irmão André Posman. Como compositor, tem vínculos com o pós-modernismo.

Quando do projeto de um CD unicamente com estudos para piano compostos por autores belgas, convidei Lucian Posman. Como sempre procedia na Bélgica, antes de minhas gravações na Capela Saint-Hilarius, em Mullem, dava recital na sala de concertos da De Rode Pomp, em Gent. O convite veio após ter tocado “La Boîte à Joujoux” de Debussy e os “Quadros de uma exposição” de Moussorgsky. Meses após, Lucien me envia “Le conte de l’Étude Modeste”, uma paródia ou pastiche da extraordinária criação do compositor russo. A obra é programática e o narrador é o próprio Estudo Modeste. O prenome de Moussorgsky era idêntico ao do pai de Lucien, daí a evocação. Se o Estudo é o narrador, Bydlo (o carro de boi polonês na criação de Moussorgsky) é o motorista. Lucien, a meu pedido, enviou a história do “Étude Modeste”. Perpassa os “quadros”, metamorfoseando-os, e emprega temas sugestivos de ampla divulgação, seguindo o roteiro dos quadros de Moussorgsky. Sabedor das intenções de Lucien quanto à “função” de Bydlo, o motorista, encontrei em uma feira popular dois pequenos caminhões em madeira e fiz a comunhão do carro de boi com os “veículos” encontrados, nomeando-os Bydlo. Em recente mensagem, Lucien me diz que o conserva, após quase vinte anos, enviando-me a foto. O meu Bydlo permanece sobre o Pleyel de estudo diário.

Mesmo para aqueles não versados na escrita musical é possível seguir o “Étude Modeste” através das frases dessa criativa composição programática. Lucien enviou-me o “conto” de sua composição para facilitar a percepção prévia. Para esse texto jocoso, mas que pode não fazer sentido para o leitor que desconhece as cenas dos “Quadros de uma Exposição”, numero cada andança do Estudo nessa visitação à criação de Moussorgsky, seguindo o roteiro da monumental obra do compositor russo, sendo que ao final de “Le conte…” proponho a escuta da minha interpretação dos “Quadros de uma Exposição” de Moussorgsky para o CD da De Rode Pomp lançado em 2004.

Escreve Lucien Posman:

“O conto do Étude Modeste é a história de Modeste, um estudo de piano. Nesses cem anos, ele está ao lado de seu célebre companheiro, Modeste Moussorgsky, autor dos ‘Quadros de uma Exposição’. Um dia ele prefere partir. Ainda próximo de sua casa de origem percebe um Gnomo (1) assustador, que o observa de maneira bárbara. O Gnomo persegue o Estudo, que se refugia num Velho Castelo (2). O Estudo se encanta com as lamentações dos blues de Duke Bluebeard, idoso e adoentado. Ao abrir as janelas, seus ouvidos são acariciados pela algazarra das crianças (3) que saem do interior do Centro Pompidou. O Estudo decide pegar um táxi. O motorista se apresenta, chama-se Bydlo (4). É um negro alto, que conhece uma canção da África do Sul - ‘adiante, carro de boi, adiante’ (‘Ry maar aan, ossewa, ry maar aan’) - e que ele cantarola baixinho sem parar. Para passar o tempo, o Estudo combina a melodia do motorista com a melodia de Bydlo de Moussorgsky, seu vizinho nos arquivos da biblioteca; essa atitude parece funcionar maravilhosamente, com alguns ajustes rítmicos. O motorista mostra ao Estudo Modeste as atrações durante o percurso, entre elas o ballet belga da galinha com dioxina, o que provoca uma verdadeira balbúrdia (5). Aos sons do hino nacional belga, pincelada em van Beethoven e suspeitas de um ‘Dies Irae’, um verdadeiro dia das bruxas se apresenta. Entretanto, Modeste, o Estudo, não está a favor dessas cenas e pede para Bydlo ligar o Rádio. Uma discussão está em debate entre o deputado mundialista Goldenberg e Schmuyle (6), um cansado maoísta sessentão. Sob os tons orientalizados de ‘Washington Post’ (marcha do célebre compositor norte-americano John Philip Sousa), Goldenberg defende sua visão do futuro sistema político; Schmuyle intervém claudicante com os tons da ‘Internationale’ (compassos 136, etc…), a célebre canção de Pierre De Geyter, natural de Gent (Bélgica). Todavia, essa cena parece uma discussão sem esperanças e Modeste anseia por outros divertimentos. Isso começa a enervar Bydlo e, numa disparada vertiginosa, leva o Estudo ao velho mercado (7). Parece-lhe, contudo, não ser o local adequado para aquele dia e velozmente segue a dirigir. O Estudo Modeste insiste em vão para que se acalme. Finalmente eles se encontram na catacumba (8), recentemente restaurada. Não obstante, ela parece mais um sistema de esgoto não cuidado, evocando lembranças do ‘Terceiro Homem’, de Orson Welles (9). Modeste sente frio e Bydlo propõe levá-lo a visitar Baba Yaga (10). O Estudo rejeita com ênfase e solenemente, sob a ária de ‘It’s a long way to Tipperary’! Já em casa (11), o Estudo Modesto se aconchega novamente nos ‘Quadros de uma Exposição’, de seu homônimo Modeste Moussorgsky, seu lugar preferido”.

Notas: Após o Passeio (Promenade - tema que será apresentado em várias roupagens no decorrer da obra -, Moussorgsky introduz os “quadros”:

1, Gnomus
2, O Velho Castelo
3, Tuilleries
4, Bydlo
5, Ballet dos pintinhos em suas cascas (Lucien relembra o drama da administração da dioxina às rações dos galináceos, que levou ao abate de milhões de aves do país em 1999).
6, Samuel Goldenberg e Schmuyle (judeus rico e pobre, respectivamente)
7, O mercado de Limoges
8, Catacumba
9, Com Mortuis in Lingua Morta
10, Cabana sobre as patas de galinha (Baba Yaga)
11, a Grande Porta de Kiev

Clique para ouvir, de Lucien Posman, “Le conte de l’Étude Modeste”, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=nkuj97dvXYA

Faz-se necessária a divulgação dessas criações belgas. A Bélgica tem alguns dos mais relevantes compositores da Europa e penso paulatinamente, com o consenso dos autores, inserir no Youtube minhas gravações das obras contidas no CD “New Belgian Etudes”, lançado pela De Rode Pomp em 2004.

“The tale of Etude Modeste” is a pastiche of Modeste Mussorgsky’s “Pictures at an Exhibition”. Lucian Posman, one of the most important Belgian composers today, accepted the invitation to write a work for my piano etude project, which would be part of the CD “New Belgian Etudes” (De Rode Pomp, Ghent, 2004). The inspiration came after my performance in Ghent of “Pictures at an Exhibition”. Modeste was the first name of the Russian composer and also the name of Lucien’s father. In “The tale…”, Etude Modeste is the narrator and Bydlo, one of Mussorgsky’s paintings, the cab driver.