Quando a competência se sobrepõe à interpretação outra
A liberdade não pode ser mero apelo da retórica política.
Ela deve exercer-se dentro daqueles velhos princípios,
que impõem, como único limite à liberdade de cada homem,
o mesmo direito à liberdade dos outros homens.
Liberdade, Soberania, Justiça.
Sobre estas ideias simples construíram-se as maiores nações da história.
Elas serão o âmago da nossa razão comum no trabalho
de dotar a Nação de uma nova e legítima Carta Política.
Discordar, sim.
Divergir, sim.
Descumprir, jamais.
Afrontá-la, nunca.
Traidor da Constituição,
Traidor da Pátria.
Ulysses Guimarães (1916-1992)
Presidente da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988)
Longe de ser a minha área, predominantemente voltada à Música, causou-me forte impacto artigo do meu irmão, o jurista Ives Gandra Martins, inserido no Blog do Fausto Macedo e publicado no Estadão aos 3 de Abril. Laços de sangue à parte, Ives Gandra (1935-) e o também ilustre jurista Celso Bastos (1938-2003) foram aqueles que mais aprofundadamente se debruçaram sobre a nossa Constituição de 1988, pois a estudaram longamente, interpretando-a em 15 volumes e cerca de 10 mil páginas! Mutatis mutandi, como pianista, entendo o que representa o conhecimento da opera omnia para piano de um compositor.
À luz da nossa Carta Magna, Ives, sempre a mencionar ministros do STF, alguns deles partícipes de publicações conjuntas, sente-se “muito constrangido de divergir dos meus amigos da Suprema Corte, que tanto admiro. Mas, como cidadão, não poderia me calar”. E não se calou. No artigo em apreço, publicado na coluna Opinião do Fausto Macedo, Ives Gandra Martins penetra no âmago da polêmica decisão da Primeira Turma do STF que tornou o ex-presidente Jair Bolsonaro réu.
Mercê da dimensão do artigo, selecionei para o leitor segmentos que merecem especial reflexão e que ratificam não apenas a competência de Ives Gandra, como levam o leitor a considerar ainda mais o que reza a nossa Constituição, que jamais poderia ter seu texto distanciado do que determina seu conteúdo intrínseco.
Ives Gandra comenta: “A decisão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em relação ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de aceitar a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) e torná-lo réu, entendendo que houve uma tentativa de golpe de Estado com base no que foi, fundamentalmente, encontrado no celular do coronel Mauro Cid e em sua delação premiada, merece algumas breves considerações. Trata-se de uma mudança na jurisprudência do Supremo, pois, no caso da Lava Jato, apesar do prejuízo de bilhões causado ao Brasil por corruptores confessos, a Suprema Corte não utilizou a delação premiada como fundamento de suas decisões e até entendeu que ela não poderia servir para embasar prisões”.
Ives Gandra enumera elementos de interesse a respeito do suposto golpe: “Fato é que, primeiro, para haver uma tentativa de golpe, seria necessária uma ação concreta, que só poderia ser realizada por militares. No entanto, nenhum militar com comando de tropas saiu às ruas para essa tentativa. Lecionei durante 33 anos para coronéis que seriam promovidos a generais e, em 2022, creio que aproximadamente 90% dos generais haviam assistido às minhas aulas de Direito Constitucional. Lembro-me perfeitamente de que, durante as aulas, nos momentos de debate, não havia ambiente para que algum deles cogitasse golpes de Estado, até porque minhas aulas eram sobre o respeito à Constituição, jamais sobre sua ruptura. Reafirmo: para haver tentativa, é necessário que exista um ato de execução do crime. E, nesse caso, as Forças Armadas seriam as únicas que poderiam executar um eventual golpe. No entanto, não houve tentativa, pois sequer houve o início de uma ação. Em segundo lugar, afirmar que o evento de 8 de janeiro foi um golpe é algo muito difícil de aceitar. Como acadêmico da Academia Paulista de História, nunca vi, ao estudar a história mundial, um golpe de Estado sem a participação das Forças Armadas. Destaco, ainda, que a minha segunda tese acadêmica foi sobre o impacto das despesas militares nos orçamentos públicos, analisando todas as conhecidas batalhas mundiais até o ano 1.200, quando se tornaram tão numerosas a ponto de não ser mais possível citá-las individualmente. Insisto que o ocorrido em 8 de janeiro não foi um golpe de Estado, também porque ninguém estava armado. Foi uma baderna, mas não foi um golpe de Estado. Uma das participantes estava com batom e alguns tinham estilingues. Ora, com batom e estilingues não se faz uma revolução. O terceiro elemento que me impressiona é chamar de documento golpista um papel sem assinatura, onde constava uma declaração de estado de sítio. Ora, o estado de sítio é uma figura constitucional que existe para garantir o Estado de Direito e não para rompê-lo. Para ser decretado pelo presidente, o estado de sítio deve ser autorizado por maioria absoluta do Congresso Nacional. Trata-se, portanto, de um papel sem valor algum, já que o Congresso Nacional jamais autorizaria o estado de sítio. Sendo assim, não vale nada, não é um documento. Quarto ponto que, como advogado, me parece importante: muitos dos advogados que eu conheço, alguns brilhantes e respeitadíssimos no Brasil, não tiveram acesso completo à delação premiada e a todos documentos. Como é que eu vou defender o meu cliente sem conhecer todos os elementos que levaram à acusação? A Constituição, no inciso LV do artigo 5º, prevê a garantia da ‘ampla defesa’. A palavra ‘ampla’ é um adjetivo de uma força ôntica impressionante. Não é, portanto, qualquer defesa judicial e processual”.
Significativo o entendimento que Ives Gandra estende à defesa ampla: “Mesmo assim, a defesa queixou-se de ter tido acesso a apenas àquela parte que constava dos autos. Tratou-se, portanto, de uma defesa limitada e cerceada”. Entende Ives Gandra que a matéria, graças à importância, deveria ser decidida pelo Plenário da Suprema Corte.
Um segmento que merece reflexão atinge o cerne daquilo que o cidadão comum apreende da realidade atual quanto a algumas das decisões dos ministros do STF, consideradas de cunho político: “Embora, nas decisões judiciais, nossa convergência seja muito grande, nossa divergência ocorre quando entendo que eles se transformaram em poder político. Por essa razão é que, hoje, são obrigados a andar acompanhados de seguranças. Algo que não ocorria quando eu saía com os Ministros Maurício Corrêa, Moreira Alves, Oscar Corrêa, Cordeiro Guerra, Sidney Sanches, enfim, todos aqueles que foram meus amigos de tempos imemoriais, como os de Aliomar Baleeiro, Hahnemann Guimarães ou José Néri da Silveira. Não era necessário uso de seguranças, porque era o STF apenas Poder Judiciário. Significa dizer que os nossos atuais Ministros recebem um tratamento típico de políticos: quando estão na rua, quem os aprova, aplaude, enquanto quem não gosta, os ataca”. Estou a me lembrar de dois Ministros expressivos do STF, Eros Grau, com quem tive contatos durante convívio na USP, e Carlos Velloso, em viagem cultural à Romênia. Pessoas vinham cumprimentar o Ministro Velloso no aeroporto. Ambos andavam tranquilamente sem seguranças.
Ives Gandra, tendo presenciado as discussões durante a elaboração da nossa Carta Magna, considera que “nos 20 meses em que participei comentando a Constituição fui ouvido em audiências públicas pelos Constituintes, mantendo contato permanente com Bernardo Cabral e visitando Ulisses Guimarães em sua casa, perto do Jóquei Clube, para discutirmos pontos da Constituição. Naquele momento, o objetivo era, ao sairmos de um regime de exceção, onde havia um poder dominante, estabelecer três poderes harmônicos e independentes. Retrato, pois, aquilo que vi na discussão e na formulação de uma Constituição ampla, prolixa, mas que tinha uma espinha dorsal fantástica, baseada na harmonia e independência dos Poderes, além da previsão dos direitos e garantias individuais, que são os dois maiores sustentáculos da Constituição de 1988. Como um idoso de 90 anos, gostaria de trazer essas minhas reflexões para aqueles que me leem e viram a decisão de ilustres Ministros do STF, a quem respeito, mas que têm, entretanto, neste nonagenário, advogado e professor universitário, uma interpretação que, infelizmente, em relação ao direito, é bem diferente daquilo que foi decidido”.
I’m reproducing segments of an important article by my brother, the jurist Ives Gandra Martins, on the judgment of the first panel of the Supreme Court that made the former president of the Republic, Jair Bolsonaro, a defendant for coup attempt.
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