Quando o Tema Ressurge Através de uma Criança
Si l’on vient à consulter les maîtres,
on apprendra que la première condition pour apprendre à penser,
c’est de cultiver en soi la faculté de l’étonnement.
Jean Guitton (“Nouvel Art de Penser”)
Não raras vezes escrevi sobre a dádiva da leitura. Ela enriquece interiormente o ser humano, aprimora a reflexão, faz descortinar maravilhamentos, envolve, seduz, encanta e leva-nos à comparação com outras obras percorridas pelos olhos e retidas na mente. Um livro é um companheiro de vida. Seria lógico concluir que, assim como temos nossas impressões digitais únicas e perenes, assim também não há gosto uniforme e todos têm suas preferências.
Nos dias de hoje consegue-se comprar e receber, via internet, uma infinidade de livros e, durante leitura, fazer as devidas anotações. Minha dileta amiga Jenny Aisenberg, que adora o livro impresso, presentemente viaja com seu Kindle, que tem o peso de revista semanal – mas dimensão bem inferior -, a carregar consigo uma biblioteca inteira. São outros tempos.
Não chegarei a tanto. De minha biblioteca saíram muitos livros que dei a alunos e colegas, mormente em temas a envolver música. Já escrevi que, ao olhar uma lombada e ter a certeza que jamais regressarei àquele exemplar específico, escolho a pessoa certa e ofereço-lhe a obra. Sei que ela terá outros olhares, será fixada na mente daquele que saberá transmitir a mensagem absorvida. Contudo, livros que conservo – a imensa maioria lidos – têm nas páginas derradeiras em branco minhas anotações, em que indico o número da página e o conteúdo a ser guardado. Essa prática, que vem dos anos 1950, não a abandono, pois provoca a fixação mental. Ao consultar uma obra sei exatamente onde determinado tema que me interessa está. Memória privilegiada? Longe disso, apenas prática sedimentada através das décadas.
O convívio com a leitura pode nascer espontaneamente ou ser fruto de estímulo. Tendo sido flagrado em foto com uma das netas em plena resposta a uma de suas perguntas, fiquei inclinado a escrever este post. Emanuela estava encantada com um livro de 1764. Tratava-se da “Nova Instrucção Musical ou Theorica Pratica da Musica Rythmica” do teórico setecentista português Francisco Ignácio Solano (c. 1720 – 1800), obra que me foi oferecida pela saudosa e ilustre amiga Júlia d’Almendra. Particulamente esse referencial livro de Ignácio Solano chamava a tempos sua atenção. Pediu-me que lhe explicasse uma “tabela” inserida no livro, “Epílogo Enigmatico, e Indicativo do Primeiro Discurso do Compendio Summario…”. Como está a estudar música, expliquei-lhe que o precioso livro apresenta um “método” para facilitar o estudo do solfejo num patamar mais adiantado. Ficou a admirar durante bons momentos aquela página enorme e eu a refletir o que se passava na mente de minha neta. Emanuela tem uma queda pelos livros mais antigos. Observa-os atentamente e gosta de folheá-los. Aqueles de literatura francesa clássica, que pertenciam ao meu pai, encantam a menina, não apenas pelas encadernações, mas pelo papel e também pelo seu cheiro. Sem saber francês, Emanuela curte folhear aqueles velhos volumes.
Essas menções corroboram o fato de que o amor à leitura e ao livro físico pode ter muitas origens, desde a história em quadrinhos até esse processo que surpreende minha neta. Acredito mesmo ser um dom inalienável que leva à prática da leitura, seja através da obra impressa ou na formatação eletrônica. Para a minha geração, curtir a leitura impressa graficamente tem a carga da tradição. Fomos assim educados e o manuseio de um livro tem até a conotação do sagrado. Integra o nosso ser e não podemos viver sem a cotidiana leitura. As conversas que mantenho com meu dileto amigo António Meneres quando estou em Portugal, passeiam invariavelmente pelos livros e os muitos olhares que se descortinam durante e após uma leitura que nos seduz.
Sob outra égide, há quase que diária visitação a minhas estantes. A simples lombada de obra percorrida pelos olhos e fixada na mente já traduz a sua essência essencial. Para tanto, a retenção durante décadas do conteúdo de um livro só pode advir do espírito alerta. Escolhida a obra, e esse quesito é fundamental, atirar-se a ela com cuidado, empolgação tantas vezes, atenção e carinho torna-se imperativo. Só retemos aquilo que realmente nos causou impacto. Assim também acontece com a partitura musical. Apreende-se o que nos seduz e acredito que, após os anos de intenso aprendizado – na realidade, a vida inteira -, devemos nos concentrar nas obras em que acreditamos. Estudar algo que não nos traz sentido ou ler um livro por ler traz a mesma sensação, ou seja, o desencanto.
Nesse turbilhão em permanente aceleração, as possibilidades de se ter a concentração em objeto de estudo preciso vai se tornando mais difícil. Tantas são as novidades apresentadas ao jovem que, pouco a pouco, a grande maioria se dilui diante da multidiversidade do viver. Contudo, a boa leitura, escolhida com discernimento, poderá sempre apontar para o conhecimento. Enriquecerá a mente aquele que buscar boas obras, tornando-se mais consciente de seu caminhar pela História.
On the pleasures of reading serious literature and its importance to store background knowledge, expand our horizons, be able to think critically and grow more conscious of our own walk through History.
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