Navegando Posts publicados em agosto, 2013

Recepção de Mensagens Enriquecedoras

O verdadeiro gênio sem coração não tem sentido.
Nem a grande inteligência, nem a imaginação,
tampouco as duas juntas não  caracterizam o gênio.
Amor! Amor! Amor! Eis a alma do gênio.
W.A. Mozart

O Post anterior suscitou uma série de mensagens recebidas, incisivas, todas enaltecendo o congraçamento que se faz quando um hino é cantado, mormente em situações especiais. Tive o prazer de assistir a muitas provas de dois campeonatos mundiais relevantes, de natação e de atletismo. O hino consagrado ao vencedor era por este seguido, tantas vezes acompanhado pelo canto – abafado pelas circunstâncias – ou pelas lágrimas do vitorioso. Bonito de se ver. Cesar Cielo ganhou duas medalhas de ouro e não se conteve ao receber a da prova mais rápida da natação, consagrando-o como tricampeão dos 50m livre. As lágrimas vertidas quando da execução do Hino Nacional Brasileiro comoveram a todos os que acompanharam o desenrolar das provas. Quanto passado de sacrifício, preparo exaustivo para se chegar ao pódio mais alto! Tudo isso deve ter povoado a mente do extraordinário nadador naquele momento sublime.

Meu dileto amigo Magnus Bardela rememora hinos destinados aos fiéis: “Fato é que lembrei dos corais harmonizados por J.S.Bach. Vieram (acho que todos, ou quase todos) dos hinários protestantes. Talvez Albert Schweitzer tenha algo sobre isso. E, entendo eu, que os hinos cantados e entoados pelos fiéis serviam (e servem) para fixação das Escrituras, bem como para o devocional cristão, congraçamento entre os fiéis, etc… Possuem, portanto, importância social e musical. E é bom lembrar que alguns corais serviram de ideia-base para outras obras de Bach, a exemplo de Paixões, Cantatas, Prelúdios Corais e outras tantas (através de citações, arranjos, etc). Entendo que ele não iria utilizá-los caso não tivessem relevância musical e/ou extra-musical”.

No contexto em que abordo a Torre de Babel que abriga as incontáveis correntes da música contemporânea dita erudita, menciono que a maior parte delas, com suas linguagens ininteligíveis para o ouvinte comum, estaria distante da melodia que é necessária a todo hino. De um músico que pediu para não ser mencionado – entendo e respeito suas razões – recebi um curto e-mail: “Professor, tente assobiar uma frase musical que seja produzida nesses laboratórios de música ‘erudita’ eletroacústica. Ao menos tente. Laboratórios que mais parecem masturbatórios mentais e que são louvados pelos poucos seguidores” (sic).

O compositor e pensador francês François Servenière, que me privilegia sistematicamente com apreciações contundentes de meus posts, a partir do tema Hino tece inúmeras considerações, mormente nos quesitos por mim abordados a respeito da presença de temas simples, inteligibilidade, convívio hino e povo, assim como da impossibilidade de determinadas tendências da música contemporânea, incompreensíveis ao cidadão comum, entenderem a anima de um hino.

“Uma instantânea reflexão, um primeiro questionamento me vem à mente após a leitura de seu texto: ‘a música, essa arte tão universal e mística, é feita para o povo ou não?’ A questão foi colocada pela música contemporânea, que se petrificou no insustentável posicionamento ‘nós somos a verdadeira e única música’. Você conhece minha resposta, não distante da sua. Sem povo, sem público, a música não existe. A música, etimologicamente, é a voz do povo, das intimidades individuais e de grupos, e não podemos separar a música popular da grande música. Meu eminente professor de composição Michel Merlet não cansava de dizer e repetir a seus alunos: ‘só há dois tipos de música, a boa e a mal feita’. Sem comentários! Lição que jamais esqueci. Se quisermos compor, inútil fazê-la chata, pois será imediata e eternamente rejeitada.

Após seu artigo, retomei meu Hymne des petits, des sans-grades et des handicapés e cantei-o em voz alta de um lado a outro da sala com as janelas abertas. Sem problemas com os vizinhos! Os hinos são feitos para serem cantados, cabeça descoberta, e são remédios ideais contra a adversidade. Nada melhor, quando não estamos bem, do que cantar um hino. Essa atitude nos reanima e confesso também ter ficado impressionado, aqui na Normandia, com o hino brasileiro sendo cantado pelo Maracanã lotado.

Mozart mostrou a possibilidade da mistura entre a bela melodia, identificada e memorizada instantaneamente por cada indivíduo, e a ciência musical mais avançada de sua época. Seu Requiem é um exemplo típico dessa  combinação levada a termo. O compositor, na maioria das vezes e a cada nova composição, é confrontado com dilemas filosóficos e técnicos. Para quem escrevo? Para intelectuais, que necessitam de formas complexas para serem subjugadas, ou para o povo, que precisa de formas simples para sentirem a elevação? A escolha do estilo e do gênero é sempre uma escolha à la Corneille. Ela é idêntica na escolha de todo criador. Compondo uma música que deve subjugar o intelectual, sabe o autor que corre o risco quase certo de ser rejeitado pelo povo e pela posteridade. Sob outra égide, se a composição for simples e facilmente  compreendida pelo povo, há risco de ser desacreditado pela crítica e pelos experts do métier que, na realidade, julgam pelo extremismo das propostas, mais do que pelo talento.

Seria necessário conciliar a grande exigência técnica (modernismo último) e compreensão popular. É difícil, mas há uma via que corresponde à demanda do mercado. A síntese de nossa época seguramente já existe em nossas mentes, por meios intelectualizado e formalizado, tendo como base nossos estudos e cultura. Esse caminho (voz) é natural.

A relação do hino e da poesia tem lógica. A poesia apresenta, como primeira característica, a observação da natureza. Ela descreve e narra, tece reflexões e fala das emoções e dos sentimentos por meio do ritmo e dos versos.  Encontramos essa forma antiga entre os feiticeiros da África, assim como entre os gregos, para os quais ‘aquele que escreve um texto é um poeta’. O hino tem, pois, a vocação de ser um primo da poesia, e a canção, seu descendente comum. Toda canção, intimista ou popular, é um hino sobre tema particular ou mais geral, para população minúscula ou imensa. Amar uma ou várias não seria o encontro de palavras e de notas que farão a construção de nossa alma? Não seria o conjunto de ‘hinos’ que correspondem à nossa personalidade particular, que se fundem em nós de acordo com o nosso de profundis? A música mais complexa coloca-nos em contato com as formas mais elaboradas, embora às vezes possa levar à perda do contato com o Universo, cujo objetivo terminal é a constatação da vida. Esta, em definitivo, deveria ser sempre a expressão do amor.

Tem-se de refletir sobre a frase de seu último post: ‘Seria possível deduzir que, para que haja interação, independentemente da qualidade musical do hino, há a necessidade de que ele possa ser cantado por todos’. Meus questionamentos consequentes: ‘Por que a música, que é a linguagem essencial da vida, converteu-se ao longo de milênios, por complexidade natural, sofismas e nihilismos, em determinadas seitas da música contemporânea, seitas essas da linguagem da não vida? A antítese da linguagem da vida? A linguagem dos bunkers e das salas de dissecação da vida? A linguagem da ausência da comunicação entre os seres?’

Como sempre, penso que a causa do drama musical é a mesma que a do drama humano vivido por todos no século XX. Uma nova ideologia pensa transformar o homem, ‘criar um homem novo’ e quando ‘o povo não quer mudar, mudemos o povo’. Mesmas causas, mesmos efeitos! Não seria necessário aprofundar muito para encontrarmos consequências filosóficas e sociais nas artes e na música. Há heranças filosóficas que duram milhares de anos, fiéis ao Universo e às regras imanentes. Aí se encontram as grandes ideias.

Finalmente, teu post me inspirou, e foi motivo para evidenciar que a música é UMA, seja qual for a origem, e que a vontade de separá-la em múltiplas seitas não tem nenhum sentido, mesmo se inúmeros forem estilos e nomenclaturas. Entendo uma verdade: a música fala ao homem e ao seu coração. A não-música não o faz. E como coda aos meus comentários, muitas vezes fui impactado por músicas que não faziam parte de minha cultura adquirida, mas expressadas por criadores e músicos que falavam com o coração”. (tradução: JEM).

Cultuemos os hinos dos países, dos clubes, das associações. Bons ou “ruinzinhos”, como afirmou meu ex-colega mencionado no post anterior, eles são a certeza de que ainda há pulsar, amor e devoção neste planeta tão maltratado.

This week’s post resumes the subject of national anthems, this time with messages received from readers with their own reflections on the spirit of anthems and their ability to give people a sense of unity, safety and pride. The composer and intellectual François Servenière wrote a long comment approaching the subject from original perspectives.

 

Quando Pergunta Leva à Reflexão

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante,
E o sol da Liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.
Osório Duque Estrada

Afonso foi meu colega na Faculdade de Direito de Pouso Alegre, Minas Gerais. Não o via desde os anos 1980. “Lembra-se de mim?”, perguntou-me num dos corredores de supermercado. “Sim… estou a me lembrar”, respondi-lhe, não sem ligeira hesitação. Três décadas modificam nossos traços, mas reencontramo-nos prazerosamente. Aproveitamos para um curto no Natural da Terra e lembranças e trajetórias serviram como motivação de conversa animada. Afonso é advogado aposentado, mas tem lá seus hobbies, entre os quais a criação de canários belgas e a pesquisa relacionada à região da Mogiana, onde tem raízes profundas.

Afonso tem ouvido algumas de minhas gravações que ocasionalmente a Cultura FM retransmite. E veio uma pergunta de interesse relacionada ao Hino Nacional. Confessou-me que ficou profundamente emocionado com a final da Copa das Confederações, em que a multidão que lotou o Maracanã cantou com orgulho o Hino Pátrio e a questão para ele se resumia no impacto forte que essa criação musical causa quando tocado. Perguntou-me ainda a causa de um hino tanto sensibilizar as massas, seja qual for a música, apesar de alguns bem “feinhos”, como afirmou.

Mencionei, em post bem anterior, sábia argumentação do musicólogo alemão Carl Dahlhaus (1928-1989), que escreveria que a qualidade de um hino não é o importante, mas sim o efeito que ele produz em um povo. Nada mais correto e Afonso tem razão, pois há hinos bem “ruinzinhos”, inclusive de países de “alto padrão” sócio-econômico-cultural. Se a Marselhesa da França, o God save the King da Inglaterra, o norte-americano, assim como outros hinos diferenciados, entre os quais o da Internacional Socialista, cuja música é do belga flamengo (Gent) Pierre De Geyter (1848-1932), há aqueles que parecem verdadeiras marchinhas tocadas em coretos espalhados pelo interior e que trazem a alegria para as cidades. Meu pai cantava na íntegra o hino de Portugal, também conhecido como A Portuguesa, composto por Alfredo Keil (1850-1907). A letra é do poeta Henrique Lopes de Mendonça (1856-1931). Massas humanas se emocionam ao ouvir “seus” hinos, mormente em momentos sensíveis por que passam as nações: guerra, tragédias, júbilos… O hino agrega, faz com que diferenças momentaneamente sejam esquecidas. Não por outro motivo clubes de futebol, como exemplos, têm lá seus hinos, e os adeptos, tantos fanáticos, memorizam-nos, muitas vezes de maneira bem mais completa do que as primeiras frases do hino do país. Seria possível supor que a relação com o hino de um clube é quase que diária e a de natureza pátria atende a momentos menos frequentes. Lembremo-nos de Lamartine Babo (1904-1963), o talentoso compositor popular carioca que compôs 11 hinos para os times participantes do Campeonato Carioca de Futebol, sendo que em um só dia os das equipes mais conhecidas do Rio de Janeiro estavam prontos.

A longa trajetória do hino através da história fê-lo passar por várias destinações. Há menções anteriores às invocações encontradas nas tumbas egípcias. Hino e poesia tinham relação intrínseca na antiga Grécia e os hinos que integram as sete horas canônicas do ofício divino na liturgia da Igreja remontam aos tempos dos apóstolos. Hino e Salmo acompanham os ritos da Igreja Católica desse período ao presente.

Já em torno da Revolução Francesa (1789), hinos consagrados às várias manifestações populares eram cantados ou entoados. Ao ganhar o “status” de hino nacional, o gênero se sedimenta e tornar-se-ia um dos símbolos cultuados pelos povos de cada nação.

Pode-se constatar que mais há fato relevante, positivo ou não, mais o hino é cantado com ênfase, entusiasmo e emoção. Estou a me lembrar de que estava em Paris poucos meses antes da comemoração do bi-centenário da Revolução Francesa. À noite, e por vezes pela madrugada, grupos percorriam as ruas cantando a Marselhesa, acompanhados por instrumentos de percussão.

Seria possível deduzir que, para haver interação, independentemente da qualidade musical do hino, há a necessidade de que ele possa ser cantado por todos. Para tanto, melodias facilmente identificáveis corroboram o aprendizado quase que imediato. Nessa Torre de Babel em que se abrigam inúmeras tendências da música contemporânea dita erudita, com ou sem o auxílio da eletroacústica, em tantas delas desaparece a “apreensão” melódica, ou ao menos a  inteligibilidade. A elucubração mental se instaura, tornando-se, por vezes, difícil distinguir joio do trigo, o que não acontece com a música do passado.  A presença do hino reverencia a tradição sem possibilidade de ruptura, pois destina-se às multidões, e essas não saberiam entoar um hino sem uma melodia simples. A garantia é plena. Sob outra égide, distingue-se o hino das “músicas” em altos decibéis apresentadas por grupos pós-rock, que inebriam massas em histeria que buscam na vociferação imitar ídolos de barro, “músicas” essas logo esquecidas em detrimento de outras, apresentadas por grupo gritante recém chegado. Como bem afirma Mario Vargas Llosa em “La Civilización del Espectáculo” (brevemente neste espaço farei resenha): “o indivíduo se desindividualiza, torna-se massa e, inconscientemente, regressa aos tempos primitivos da magia e da tribo”.

Sou um conservador em termos de hino pátrio. As inúmeras descaracterizações do Hino Nacional do Brasil, o estranho e desrespeitoso arranjo apresentado imediatamente após a morte do Presidente Tancredo Neves (1910-1985), cantado com portamentos de mau gosto e de intencional arbitrariedade, abriram as portas, à la manière do universo fantástico de Hieronymus Bosch, às mais díspares versões, caricatas tantas delas, desfigurando a essência de um símbolo que mereceria, sempre, o mais absoluto respeito. O mesmo se passa com o belo Hino dos Estados Unidos, tristemente banalizado antes de determinadas apresentações desportivas. E o mais grave, fato que corrobora a posição de Mário Vargas Llosa, que faz duras críticas a essa total deterioração da cultura, o povo se habitua. E todo o mal está feito. Se essa deturpação se faz presente nas mais diversas roupagens, não desconsideremos uma outra alteração, no caso em absoluto outro contexto. Trata-se da Grande Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro, de Louis Moreau Gottschalk (1829-1869). Está-se em outro patamar criativo e as virtuosísticas variações sobre o tema do hino composto por Francisco Manuel da Silva (1795-1865) têm sido interpretadas por inúmeros pianistas e foram imortalizadas pela excelsa Guiomar Novaes (1894-1979/vide YouTube).

Os caminhos de nossas vidas são incertos. Não sei se tornarei a rever Afonso, mas nossa prazerosa conversa serviu para que pensasse num tema tão presente em nossas vidas.

Listening to the Brazilian national anthem sang with one voice by spectators that crammed into the Maracanã stadium at the final match of the Confederation Cup led me to reflections on the wide array of contexts our anthem is played and how its use has been trivialized and distorted by the media in the last decades.

“No 100º Aniversário de Maria Augusta Barbosa”

O homem olímpico não ignora o seu contrário,
não foge à sua dor: utiliza-a como a um instrumento de perfeição. 
Agostinho da Silva

O culto às figuras que marcaram determinada área na busca incessante direcionada ao conhecimento e ao caminhar pela História de maneira integrada e harmoniosa deveria ser constante absoluta. Nem sempre o é e tantas personalidades que realizaram obras meritórias permanecem em penumbra constrangedora, no mínimo.

Bem houve a Imprensa da Universidade de Coimbra publicar o resultado de projeto acalentado pelos professores e musicólogos José Maria Pedrosa Cardoso e Margarida Lopes de Miranda, intencionados há longa data em prestar homenagem à musicóloga Maria Augusta Barbosa (1912-2012), figura singular na musicologia portuguesa (“Sons do Clássico – no 100º Aniversário de Maria Augusta Barbosa”. Coordenação J.M. Pedrosa Cardoso, Margarida Lopes de Miranda, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, Dezembro de 2012, 280 págs).

Para que o leitor apreenda a importância da homenageada, transcrevo o breve perfil traçado na “Abertura” do livro por seu mais próximo discípulo, Doutor Pedrosa Cardoso:

“Maria Augusta Barbosa investiu grande parte dos seus anos no estudo: aos 31 anos, após a conclusão dos cursos superiores de Piano e Composição no Conservatório Nacional de Lisboa, concluiu a sua licenciatura em Ciências Musicais na Universidade Humboldt de Berlim e aos 58 obteve o grau de Doctor Philosophiae, área de Ciências Musicais, na Universidade de Colônia.

No Conservatório Nacional fez duas etapas: a primeira, por força da II Grande Guerra, durante 13 anos, aceitando um convite do Diretor, Dr. Ivos Cruz, e a segunda, durante 9 anos, compelida pelo Diretor Geral do Ensino Superior a regressar ao país.

O resto de sua vida foi o ensino universitário: primeiro, na Universidade Nova de Lisboa, onde aliás viu reconhecido o seu doutoramento e onde criou a primeira licenciatura em Ciências Musicais em Portugal, aí permanecendo até sua jubilação (1982). Em seguida, gratuitamente, na Universidade de Coimbra e na Universidade de Lisboa, prestando ainda notável contributo na Universidade Autónoma e na Universidade Lusíada. E foi em plena actividade nas Universidades de Coimbra e Lusíada que viu chegar ao fim, em 2001, aos 89 anos, inesperadamente para ela, a sua carreira universitária”.

Para a elaboração do livro, os coordenadores buscaram a colaboração de especialistas que tiveram relação com a ilustre homenageada, seja através de estudos conjuntos, ação pedagógica ou laços de amizade. Os textos inseridos compõem-se harmoniosamente e estudiosos da dimensão de  Mário Vieira de Carvalho, Salwa El-Shawan Castelo-Branco e Gerhard Doderer, entre outros, oferecem contributos de valor. Dois artigos dos coordenadores têm igualmente grande relevância. Há sequência histórica nas contribuições de Vieira de Carvalho e Castelo-Branco, o primeiro a tratar da “Investigação em Música no Ensino Superior”, traçando, com a competência que lhe é peculiar, as origens da organização da musicologia no sentido mais amplo e das ciências musicais no âmbito da universidade e Salwa El-Shawan a buscar desenvolver o tema em torno da “Etnomusicologia na Universidade Nova de Lisboa: os Primeiros Anos”, tributo à homenageada, que criou o curso de Licenciatura mencionado acima, ponto de partida para o desenvolvimento da música como ciência nas universidades portuguesas.

Destacaria a contribuição de Pedrosa Cardoso, que sintetiza em texto fundamental – “Em Busca do Peculiar na Música Sacra Portuguesa dos Séculos XVI, XVII e XVIII” – parcela de seus aprofundamentos que resultaram em livros essenciais. Em posts anteriores já pormenorizei algumas de suas obras relevantes.

Tiveram os doutores Pedrosa Cardoso e Margarida L. de Miranda a feliz ideia de inserir dois textos da homenageada, referentes a uma breve autobiografia e ao período em que passou pesquisando em Berlin durante a Segunda Grande Guerra. Recolhida ao Lar “Casa de Saúde e Repouso da Amoreira” em 2002, após problemas físicos, Maria Augusta Barbosa ditaria esses textos à fiel Sónia de Carvalho, funcionária do estabelecimento. Os títulos foram dados pelos coordenadores. No primeiro relato, “As Curvas de Meu Percurso”, Maria Augusta Barbosa evidencia a vocação plena à pesquisa, sem subterfúgios. Uma vida inteira dedicada à Música, ao estudo aprofundado, ao ensino em alto nível. No segundo, “Debaixo do Fogo: A Música em Tempo de Guerra”, a homenageada descreve os tempos difíceis vividos de 1939 a 1943 em Berlim “… Facilmente me adaptei a um estudo absorvente no início de uma guerra ainda relativamente calma, evidente apenas no racionamento inteligentemente elaborado e obrigatoriamente seguido, além de alguns bombardeamentos nocturnos, durante os quais os estrangeiros, ao contrário dos nacionais, não eram obrigados a recolher aos abrigos. Aproveitei portanto essas vigílias forçadas para avançar no estudo das novas matérias e preparar os trabalhos marcados, entre os quais as longas transcrições de paleografia musical”. Tem-se nessas frases o sentido pleno do denodo e da obstinação voltada à mais precisa investigação.

Generosa, Maria Augusta Barbosa doaria todo seu acervo à Universidade de Coimbra (2003), onde foi uma das fundadoras, em 1986, do Mestrado em Ciências Musicais na Faculdade de Letras. Como bem se expressou, “concretizou-se aquando da minha fixação na residência actual”, a Casa de Repouso já citada. Aos c. 8.000 livros, mais farta documentação e registros fonográficos, somar-se-ia seu piano de concerto, um Bechstein de 3/4 de cauda, que hoje se encontra na Biblioteca Joanina da Universidade. Tive a honra de por duas vezes (2004 e 2005) nele interpretar meus recitais, sendo que o primeiro inteiramente dedicado ao notável compositor conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), festejado por ocasião do tri-centenário.

O magnífico e justíssimo tributo à grande mestra servirá de imediato para a lembrança mais acentuada de uma das figuras fundamentais da música em Portugal no século XX. Seus numerosos e competentes ex-alunos, espalhados por terras lusíadas e alhures, saberão reverenciar Maria Augusta Barbosa ad eternum.

This post is an appreciation of the book Sons do Clássico (Sounds of Classic), written by a team of experts as a tribute to Maria Augusta Barbosa on the 100th anniversary of her birth. Musicologist, university teacher, founder of the Music Sciences Department of Universidade Nova de Lisboa, Maria Augusta was one of the most significant figures in music in Portugal in the last century.