Após Diálogo Encantador
Na Arte, aprende-se o ofício.
É bem restrito o que se pode entender como ofício em arte
e o que é possível transmitir aos outros.
Mas para sentir a necessidade de aprender esse ofício,
é preciso ser dotado de sensibilidade e vontade criativa.
Essas faculdades não se adquirem.
Desenvolvem-se exteriormente ao ofício
que não é nada mais que o material de expressão.
Georges Migot
Nem sempre a via erudita foi o mais rico canal das manifestações artísticas.
Benedito Lima de Toledo
A pergunta precisa de uma das netas deixou-me inicialmente surpreso. Indagava-me Valentina (14 anos) sobre a diferença entre a arte sacra popular e erudita, após ter-lhe mostrado algumas ilustrações em livros e pequenas imagens daquela que é a mais remota manifestação de arte desde a chegada dos portugueses em 1500 nas novas terras descobertas.
Seria pretensioso estabelecer neste espaço conceitos e definições sobre o tema. Somente em termos paulistas há literatura de interesse a respeito. Em blog bem anterior mencionei o contributo extraordinário de Eduardo Etzel, autor de nove livros referenciais, mormente sobre o que ele denominava Barroco pobre da região central do Brasil e também sobre os santeiros paulistas do Vale do Paraíba do final do século XVIII às primeiras décadas do século XX (vide blog: “Eduardo Etzel – Literatura sobre Arte Sacra no Brasil”, 25, 07, 2007). Sob outro contexto, recentemente foi lançado livro do notável arquiteto e urbanista Benedito Lima de Toledo (“Esplendor do Barroco Luso-brasileiro”. São Paulo, Ateliê, 2012), no qual o autor estuda com profundidade a arquitetura sacra portuguesa e brasileira, a buscar desvelá-la de maneira harmoniosa, interpretando igualmente as fases construtivas, a pintura, a imaginária. Para fundamentar seus argumentos, debruça-se também sobre as simples moradias ibéricas do passado remoto.
A imaginária erudita obedece preferencialmente a regras precisas. A antiga Grécia já se preocupara com as proporções do corpo humano aplicadas à escultura. Buscavam, nessa manifestação artística, a perfeição. Policleto de Argos (460-410 a.C), notável escultor grego, fixaria, através de tratado denominado “O Cânone”, regras precisas para a elaboração de seus trabalhos e que teriam enorme influência no decurso da história. O termo kanon, de origem grega, refere-se à regra, à medida. O artista, necessariamente de posse do conhecimento da mensuração correta do corpo humano, obedecerá normas. Podemos verificar que, já na Idade Média, a arte em pedra nas catedrais e mosteiros segue esse princípio da proporção. A Renascença viu eclodir artistas excepcionais, que ampliaram a noção do movimento, respeitando cânones exatos. Toda a imaginária de madeira de cunho erudito do período barroco acompanha essas regras rigorosas. Proporções da cabeça-corpo são mantidas, mãos e pés têm dimensões adequadas, a pintura é esmerada. Não faltam aplicação de folhas de ouro e estofo de gesso para a recepção e fixação das tintas, olhos de “vidro” colocados no interior de face secionada, panejamento esvoaçante, contrariamente às vestes hirtas da imaginária medieval. Eduardo Etzel disse-me nos anos 1970, em momento de descontração, que o esvoaçar seria como se tivessem colocado ventiladores sob as vestes. Valentina gostou da comparação.
O artista popular, santeiro, não teve esses conhecimentos. A intuição seria seu norte. O olhar, sua “regra” fundamental para a elaboração das imagens. Preocupa-se com o resultado, não com a precisão das medidas. A proporção cabeça-tronco pode, eventualmente, estar dentro do cânone. Os membros superiores e inferiores e a cabeça apresentam-se tantas vezes super ou subdimensionados. Após esculpir a madeira já bem seca, aplica a pintura diretamente sobre a imagem. Nem sempre as tintas têm a qualidade adequada. Olhos são apenas pintados.
Ao ver as imagens de duas Sant’Annas, uma sentada em um simples banco (11,0 cm) e outra com a poltrona tendo no espaldar a figura de um divino (12,0 cm), Valentina me questiona sobre as diferenças entre as duas. Disse-lhe que gostaria que descobrisse. Após observar, acertou ao dizer que a cabeça de Maria, na Sant’Ana de espaldar alto, era minúscula. Microcéfala, acrescentou a sorrir. Oportunidade para explicar-lhe que a segunda tinha sido elaborada por artista sem aqueles conhecimentos do cânone e que a outra certamente foi esculpida por artista erudito. Mostrei-lhe que a Sant’Ana erudita (séculos XVIII-XIX) tinha vestes pintadas com pequenas tiras de folha de ouro. Quanto à “semierudita” (século XIX), que assim denomino, pois há quesitos de proporção adequados na Santa, as vestes têm esse esvoaçar, mas a pintura está intrinsecamente conforme às imagens de barro cozido de cunho popular, as denominadas paulistinhas, que foram confeccionadas com a utilização de moldes da segunda metade do século XVIII a meados do século XIX. Aliás, o santeiro que esculpiu na madeira essa peça única teve certamente como modelo a paulistinha. Ainda nessa imagem, o dorso da poltrona teve tratamento rústico, contrariamente à imagem erudita, em que as tiras de ouro persistem e os cabelos de Maria estão dentro da “moda” nessa transição dos séculos XVIII-XIX.
Valentina quis conhecer outros exemplos comparativos. Expliquei-lhe que o “olhar” erudito, a seguir regras e medidas coerentes, corria o risco da repetição. Acompanhar com critério determinado cânone poderia significar “amarra” para o artista. Ao esculpir a madeira e utilizar as tintas adequadas, a obediência à “regra” levava, quiçá, à rotina da feitura. Não por acaso, tantas e tantas imagens (entre 25,0 a 30,0 cm aproximadamente) dos séculos XVIII e XIX elaboradas no Brasil colonial, como Nª. Srª. da Conceição, São José, Santo Antônio e alguns outros santos de culto acentuado, têm semelhanças.
Vem a pergunta de Valentina. “Vovô, as paulistinhas não são repetidas e populares”? Sim, mas, neste caso específico, temos que considerar essas peças em barro cozido confeccionadas com moldes. Estes foram inicialmente trazidos de Portugal por beneditinos, franciscanos e jesuítas, ordens que tiveram maior influência nos primeiros séculos da colonização. Após o preenchimento do molde com barro (branco, preferencialmente, mas também róseo), a peça ia ao forno que chegava a atingir altíssima temperatura, daí ser vazada na sua parte inferior, a denominada peanha. O vazamento evitava rachaduras do barro nesse processo. Ao santeiro competia, depois dessa etapa, a arte final da pintura, geralmente feita com grande esmero. Mostrei-lhe três paulistinhas com idêntica representação de São Bento (ca. 480-547). Curiosamente, ao pintá-las o santeiro teve em mente as serpentes venenosas que existem na região do Vale do Paraíba. As duas imagens laterais têm a entrelaçar as vestes do santo, cobras corais; a central, possivelmente jararacuçu ou jararaca. Reza a lenda que São Bento se safou milagrosamente ao não tomar bebida envenenada por monges do mal, e a taça que continha o líquido se partiu tão logo o taumaturgo fez o sinal da cruz no coração. Para o simples homem do campo, São Bento deveria protegê-lo das picadas dos répteis peçonhentos. Disse-lhe que, majoritariamente, as paulistinhas de santas não apresentam as tais vestes esvoaçantes e que, com certeza, os moldes para a feitura das primeiras paulistinhas foram feitos no Brasil colônia por padres e frades que conheciam as proporções, os cânones, passando ao discípulo, habilidoso santeiro da região, a técnica integral, a fim de que, finalizadas, as pequenas imagens de culto pudessem povoar oratórios domésticos.
Com o passar do tempo, moldes poderiam ficar danificados. Ao fazer outros, o santeiro popular das fronteiras dos séculos XIX-XX possivelmente fê-los não a obedecer cânones, como pode ser exemplificado através da paulistinha tardia de São João Batista, com sua cabeça diminuta. Ao lado de uma outra paulistinha, nota-se a diferença do cânone.
Pergunta-me Valentina:”Vovô, e as mãos e pés desproporcionais, sobretudo em imagens do Pituba?”. Tinha-lhe mostrado os livros de Etzel sobre o extraordinário santeiro da região de Santa Izabel e Nazaré Paulista, Benedito Amaro de Oliveira, o Dito Pituba (1848-1923), assim como umas poucas imagens do artista popular. Expliquei-lhe que, numa fase do santeiro, que Etzel considerava mais sensitiva, erótica talvez, na qual lavrava sobretudo imagens em barro cozido, cabeça e membros podem se apresentar desproporcionais. Isso até o final do século XIX. Quando Pituba, a atender enorme clientela de devotos, passou a produzir mais acentuadamente imagens de madeira, as proporções foram se harmonizando. Várias poderiam ser as causas: o conhecimento de estampas de santos e a penetração, no “mercado”, das imagens de gesso oco, tantas delas originárias da Itália. Pituba envelhecia, também na sabedoria. Passou a simplificar a feitura, a fim de atender à demanda crescente. Eduardo Etzel, muito apropriadamente, denomina essa última fase de mística. As duas imagens, uma de São Lázaro (século XIX), em que a cabeça do santo e as extremidades dos membros são grandes, assim como a pequena imagem de Santa Maria (retirei-lhe a pintura totalmente desgastada), em que a talha é esmerada e as proporções são exatas, evidenciam a evolução do santeiro.
Disse a Valentina que conheci nos anos 1970 em Nazaré Paulista Benedito Lopes (1904 – ?), um dos últimos santeiros vocacionados a fazer imagens para o culto. Hoje temos figureiros e até santeiros, mas a “produção” das imagens volta-se preferencialmente ao artesanato turístico, com destino decorativo. O catolicismo teve concorrência, naqueles rincões, de várias seitas evangélicas, que negam a imaginária sacro-religiosa. Duro golpe para a atividade do santeiro autêntico. De Benedito Lopes adquiri um presépio basicamente trabalhado na madeira. As figuras são desproporcionais, mas há interesse nessa singular feitura, mormente nas imagens de São José e de Maria. Quanto ao Menino Jesus, emprega vários materiais, o que demonstra criatividade e sentido prático: palha (verde), serragem (forro do berço e cabelos dourados do Menino Deus), palito de sorvete (berço).
Ficamos ainda a conversar sobre o tema durante um bom tempo. Mostrei-lhe outras ilustrações e imagens. Por fim, Valentina me coloca questão perspicaz: “Qual arte você prefere, a erudita ou a popular?”. Respondi-lhe que aprecio as duas manifestações da imaginária sacro-religiosa. Contudo, tenho uma tendência a admirar a criatividade e a invenção, assim também os recursos empregados pelo santeiro. Nisso Pituba excedeu. Todo o material possível que porventura tivesse utilidade, essa é a palavra, Pituba pensou e aplicou em sua gigantesca produção. Só para citar: madeira dura ou macia, a depender da destinação; barro, prego (para ligar a peanha ao restante da imagem), couro, tampinha de garrafa (a fabricação era bem recente), caixas vindas do Exterior (geralmente de pinho de riga) contendo bacalhau, óleo ou vinho para a confecção de oratórios, olhos de boneca para um São Sebastião de boa dimensão, pano, jornal… Para concluir observei que os materiais utilizados são apenas materiais. O talento, a vontade, a disciplina e a concentração do artista, movidos pelo fervor criativo, serão eles a dar vida à obra de arte. O piano pode ser tão somente uma peça decorativa. As mãos do intérprete saberão extrair as sonoridades que tendem ao encantamento. Em ambos os casos, o Belo tem de fluir, disse à minha querida neta.
Valentina gostou das explicações. Um beijinho carinhoso foi o delicado presente que recebi após nosso convívio.
A conversation with Valentina, my 14 year-old granddaughter, was the starting point of this post. It addresses the religious images(small sculptures of Catholic saints and angels) produced in São Paulo State by the turn of the 19th century. Using wood and fired clay, popular artists made their own readings of classical canons, what resulted in an output of great stylistic simplicity, but rich in originality and inventiveness.
Comentários