Navegando Posts publicados em junho, 2014

Alguns Aspectos da Literatura e da Música no Romantismo em França

Venez, illusions !… au matin de ma vie,
que j’aimais à fixer votre inconstant essor !
Le soir vient, et pourtant c’est une douce envie,
c’est une vanité qui me séduit encor.
Goethe (Faust – Dédicace)
Tradução: Gérard de Nerval (1808-1855)

A Música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro

Nas entranhas do movimento romântico encontra-se a ilusão. Ela estaria a provocar sensíveis mutações emocionais. Nostalgia, exacerbação dos sentimentos, depressão, euforia passageira, devaneio povoam a imaginação, potencializando o amor, por vezes sem barreiras, de escritores, poetas, pintores e músicos. Se da natureza das coisas passa-se para a natureza interior, o fervilhar romântico possibilitaria doravante esse retorno à natureza das coisas dimensionada pela expressão desse interior humanizado, poder-se-ia acrescentar. Difícil não entender sonoridades na poesia plena de magia ou no texto fluido do contista ou romancista de talento. A frase literária e o verso adquirem a fluidez afetiva. A frase musical, a melodia contagiante, estruturadas na harmonia tão apregoada por Jean-Philippe Rameau (1683-1764) em período histórico distinto, conquistam o ouvinte, que assiste à “descoberta” da latente emoção. Em França, como alhures,  compositores souberam captar desde o nascedouro do movimento romântico a carga expressiva contida nas palavras. A Música para o gênero ópera absorve libretos poéticos de autores de qualidade duvidosa, salvo exceções. Sob outro patamar, a mélodie para canto e piano apreende a seiva que emana do poema. A concentração melódica, resumida em poucas páginas de uma partitura, pode desvelar a essência essencial do conteúdo romântico. Todavia, esperar-se-ia meio século para que tal destinação dual acontecesse.

Honoré de Balzac aborda as múltiplas facetas sociais: da aristocracia aos desafortunados; da vida cultural erudita à superficialidade da recepção pelos detentores da riqueza. Estuda os sentimentos humanos mais contrastantes, entre esses o fausto, a usura, a prostituição, a perfídia e a honradez. Possui a agudeza daquele que presenciou, auscultou o outro, empreendendo sem trégua, doravante, a viagem imaginária. Bem mais de 2.000 personagens penetram suas páginas em “La Comédie Humaine”! Quanto à música, vive Balzac em período de intensa e cosmopolita difusão sonora em Paris. Gustave Bertrand, em livro de interesse (vide item “Resenhas e Comentários” no menu) para a compreensão desse período, escreve: “Em que outro lugar no mundo, e mesmo na Itália, encontramos um teatro que apresenta, regularmente, todo o repertório histórico da ópera italiana, desde ‘Il Matrimonio Segreto’ e ‘Don Giovanni’ até ‘Un Ballo in Maschera’? Em qual lugar no mundo, mesmo na Alemanha, veríamos um público de cinco mil pessoas se apertar, se sufocar em um circo para ouvir as sinfonias dos mestres alemães, e isso mais de trinta vezes durante o inverno?” (1872)

Hector Berlioz (1803-1869), voltado preferencialmente à música sinfônica, mas também à lírica e à coral,  seria uma exceção em uma França direcionada a outros ideais. Gustave Bertrand afirma: “Chegando no momento da revolução romântica, Berlioz deu a si como missão ser um Victor Hugo musical”. Ainda a envolver o autor de “Os Miseráveis”, o musicólogo Robert Pitrou entende  que “Hector Berlioz, Hugo e Delacroix constituem a trindade da arte romântica” (1946) – (vide item “Resenhas e Comentários” no menu). Sob outro contexto, Victor Hugo (1802-1885) ofereceria ao músico libretos que não tiveram sequência por oposição da Ópera e da Ópera Comique de Paris. Digno de retenção o posicionamento do crítico musical e musicógrafo René Dumesnil (1879-1967), que rotula os compositores coetâneos de Berlioz e que não resistiram à história: “Certo, dos compositores aplaudidos por nossos pais não esquecemos ainda os nomes. Para maior segurança os conservamos nas placas de ruas ou praças, ou mesmo nas fachadas dos teatros; mas, salvo raras exceções, nós encontramos em suas obras o vazio e o enfado” (1934) – (vide item “Resenhas e Comentários” no menu). Incompreendido por alguns setores mais conservadores, a obra de Berlioz atravessaria os séculos a partir de uma reformulação na estrutura formal da composição, a influir no gosto parisiense afeito à superficialidade do espetáculo como evento social.

Berlioz se inspiraria em “Fausto”, de Goethe, na tradução em prosa do poeta Gérard de Nerval (1808-1855), para a composição de “Danação de Fausto” para orquestra, solistas e coro. Li a magnífica tradução de Gérard de Nerval em 1959 (Paris, Le Livre Club du Libraire, s.d.). Causou-me à altura forte impressão. Tão decisiva era a influência da língua francesa na Alemanha que Nerval comenta no prefácio da quarta edição, em 1853: “Com efeito, Goethe estudava em Strasbourg quando concebia Fausto e  preocupava-se tanto com a literatura francesa do período que se perguntou em dado momento se não escreveria a obra em francês, como o fizeram vários autores alemães de nascimento”. Franz Liszt (1811-1886), Charles Gounod (1818-1893) e mais outros seriam seduzidos pelo mito de Fausto? Em “Illusions Perdues”, o misterioso Carlos Herrera não teria “afinidades” com Mefistófeles do Dr. Fausto? Lucien de Rubempré, personagem essencial de “Illusions Perdues” e “Splendeurs et Misères des Courtisanes”, não buscará no suicídio, assim como a cortesã Esther, o ato derradeiro de Fausto? Sob outro contexto, Goethe, em “Os Sofrimentos do jovem Werther”, não lhe concede idêntico destino?

Apesar de Hector Berlioz ser o nome mais representativo da composição em França no período em que Balzac viveu, não foi seu escolhido, pois o criador de “Ilusões Perdidas” preferia Giacomo Meyerbeer (1791-1864), compositor em moda. Contudo, dedicaria seu romance “Ferragus” ao compositor da célebre “Sinfonia Fantástica”. Como curiosidade, encoraja Berlioz a viajar à Rússia e empresta-lhe sua pèlerine como proteção para o rigoroso frio do leste.

A colaboração intrínseca de poetas e escritores franceses com seus coetâneos músicos fez-se sentir através de libretos para as óperas, cantatas e outros gêneros. Emile Deschamps (1791-1871), Alfred de Vigny (1797-1863), Alphonse de Lamartine, para quem “a música é a linguagem do infinito, ligação do homem com o mundo espiritual”, reverenciaram a música. Franz Liszt inspirar-se-ia em alguns dos poemas contidos em “Harmonies Poétiques et Réligieuses”, de Lamartine, para a criação de obras expressivas para piano, assim como nas “Nouvelles Méditations Poétiques” para os seus “Préludes” para orquestra. O autor de “Le Génie du Christianisme”, François-René Chateaubriand (1768-1848), escritor notável, tinha pela música, mormente a sacra, uma profunda inclinação. Mme de Staël (1766-1817), romancista e ensaísta, professava que “nada retrata melhor o passado do que a música”; Alfred de Musset (1810-1857) escrevia que “a música o fez crer em Deus”; Théophile Gautier (1811-1872), poeta, romancista e crítico, deixaria quantidade expressiva de textos sobre música. Stendhal (1783-1842), autor do célebre “Le Rouge et le Noir”, entendia-se especialista em música e escreveu biografias de “Haydn”, “Mozart” e “Métastase”. Berlioz considerava-as bem fracas.

Curiosamente, a França não vê, nessa primeira metade do século XIX, obras para piano de um compositor  francês que tenham atravessado os séculos, pois a música para o teatro ou sinfônica, mormente a de compositores estrangeiros, preenchia as atenções. Essa concentração tecladística se daria na Alemanha. A aceitação das criações para piano do germânico Robert Schumann (1810-1856) em terras francesas dar-se-ia, possivelmente, por ter sido o músico, segundo o musicólogo Marcel Beaufils (1899-1985), o mais francês dos alemães.

Significativo lembrar que, nesse meio século em que viveu Honoré de Balzac, compositores e intérpretes, pianistas estrangeiros, foram glorificados. A concentração dar-se-ia em torno de Fréderic Chopin e Franz Liszt. Como divagação, essa ausência de compositores franceses escrevendo para piano não indicaria certa timidez frente a esses dois magistrais intérpretes? A presença forte da ópera italiana de Rossini (1792-1868) e Bellini (1801-1835), ou a do alemão Meyerbeer, assim como o sinfonismo alemão em Paris não teriam desviado intenções francesas destinadas ao instrumento solo? Berlioz e Félicien David (1810-1876) sequer pensam no instrumento. Tem-se a presença de Charles-Valentin Alkan (1813-1888), mas sua obra extremamente virtuosística e admirada por Liszt está longe de ser le langage du coeur externada in extremis por Chopin e Liszt,  frequentadores adulados nos salões parisienses. Essa questão não poderia explicar a presença, já na segunda metade do século XIX, de compositores franceses que escreveram magistralmente para piano, como Camille Saint-Saëns (1835-1921), Gabriel Fauré (1848-1924), Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937)? Excetuando-se a presença de Johannes Brahms (1833-1897), a música para piano alemã escrita para piano nessa segunda metade do século XX praticamente não resistiria ao tempo. Paradoxal.

Honoré de Balzac, tanto em sua vida privada como em poucas obras da enorme produção literária, apresenta ligação tênue com a música. Segundo  Théophile Gautier, Balzac não a reverenciava à altura. Escreveria que “Beethoven é o único homem que me faz ter inveja. Queria ser Beethoven preferencialmente a ser Rossini ou Mozart. Há nele uma pujança divina”. O musicólogo Jean Gaudefroy-Demombynes (1898-1984), em livro referencial, afirma: “Que se ame a música de outras plagas ou que se não ame, não faz diferença alguma: para Balzac, cuja obra aspira a constituir um inventário completo da sociedade, a música é um fato social que se deve ater a esse título, como o negócio, a pintura, o notariado ou a mediocridade” (vide item “Resenhas e Comentários” no menu). Se em “Illusions Perdues” a música, em seu conteúdo sócio-receptivo, é mencionada superficialmente, seria contudo em duas outras obras que  integram “La Comédie Humaine”  que Balzac se “instrui” sobre termos musicais e concentra atividades da área a seus personagens. Frequentador preferencial do espetáculo operístico, teria sido após conversas com George Sand (1804-1876) que Balzac incursionou na narrativa de figuras voltadas à música. Em “Gambara” (1837), o personagem central é fabricante de instrumento, tendo criado o panhamonicon. Balzac explica: “tão grande quanto um piano de cauda, mas tendo uma parte superior a mais capaz de substituir uma orquestra inteira, oferecendo harmonias mais grandiosas do que todas aquelas ouvidas até o presente”. Compositor desequilibrado que, quando ébrio, torna-se criativo, Gambara cria uma trilogia que recebe o nome de “Martyrs”, composta de “Mahomet”, “Jérusalem” e “La lutte des Réligions”. O personagem é igualmente autor do poema. Na “Ouverture”, Gambara apresenta os temas de sua ópera. Repetições temáticas que se apresentam levam Gaudefroy-Demombynes a opinar: “A ideia evoca irresistivelmente a ‘Tetralogia’, exemplo autêntico do leitmotif… Esse romance autorizaria a ver em Balzac o comentarista de Wagner, antes de Wagner!” (1955).  Do mesmo ano, “Massimilla Doni” (1837), num outro contexto, é uma duquesa respeitada. Em torno da personagem a música lírica desliza num ambiente de aficionados. Cultua-se, entre outros, Rossini. Torna-se significativa essa incursão do romancista eclético que, a fim de melhor apreender área não afeita, busca compreender terminologia musical e alguns elementos básicos. Para tanto, receberia Balzac conselhos musicais de um músico bávaro que admirava, Jacques Strunz (1783-1852).

Busquei sumariamente focalizar o período romântico na música e na literatura, tendo Honoré de Balzac como epicentro. Não houve a intenção de classificar o autor de “Illusions Perdues” como realista ou pré-realista. Tanto Balzac como Sthendal já apresentam as características fundamentais que marcarão o movimento na segunda metade do século XIX. As datas de nascimento e morte de escritores, poetas e compositores foram inseridas, para mostrar ao leitor o período essencial vivido por Balzac, a exata primeira metade do século XIX. Sendo apenas uma panorâmica, nomes faltaram. Contudo, a intenção foi evidenciar aspectos da inter-relação que se estabeleceu naquele período, sobretudo em Paris, entre músicos e literatos, tendo  Honoré de Balzac como epicentro, mercê da proposta de minha amiga, a professora e poetisa Maria Cândida Ribas.

A pintura como fundamento do élan romântico ficará para outra oportunidade, a abordar o olhar romântico mesclado à poesia e aos sons.  Contudo, fica registrada a lembrança preliminar de Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867) e Eugène Delacroix (1798-1863), este último o nome mais representativo do período em França.

In this post I resume the subject of the relationship between literature and music during the French Romanticism of the 1st half of the 19th century, with focus on Berlioz and Balzac.

 

 

 

 

 

 

 

Alguns Aspectos da Literatura e da Música no Romantismo Francês

Na França só se pode triunfar
quando todos se achegam à cabeça do triunfante.
Honoré de Balzac (“Illusions Perdues”)

Leitora dos blogs semanais, Maria Cândida Ribas, professora, tradutora e poetisa de mérito, fez-me um convite direto. Seu grupo de leitura estava a ler “Illusions Perdues”, de Honoré de Balzac (1799-1850). Pergunta-me se poderia comparecer ao próximo encontro para tecer considerações sobre a música em França na primeira metade do século XIX. O convite veio durante um treino para as corridas de rua que realizava pelas vias de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Disse à amiga que iria pensar e brevemente lhe daria uma resposta.

Durante alguns dias fiquei a refletir, e o tema foi ganhando acalanto.  Convite aceito, primeiramente recordei a leitura da obra recomendada por meu dileto amigo Antoine Robert no início dos anos 1960, quando de meus estudos pianísticos em Paris. Emprestou-me o livro. Com ele discuti muitas das implicações contidas em “Illusions Perdues” e seu enquadramento no contexto romântico. Vivia-se o florescimento no cinema da Nouvelle Vague em França. Tendências estéticas entravam em choque e, na literatura, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, André Malraux, Georges Bernanos ou mesmo o humanismo visionário, lírico e espiritual de Saint-Exupéry faziam parte de nossas leituras. Antolhava-se-nos que Honoré de Balzac pairava num patamar diferenciado, permeando romantismo, realismo e uma visão social que, aliás, não ficaria despercebida até por Karl Marx.

“Illusions Perdues” é um tríptico publicado entre 1837 e 1843: “Les Deux Poètes”, “Un Grand Homme de Province à Paris” e “Les Souffrances de L’Inventeur”. Faz parte do primeiro, Étude de Moeurs, dos três segmentos de “La Comédie Humaine”, a monumental coleção de obras selecionadas por Balzac, somando-se quase 100 títulos! Études Philosophiques e Études Analytiques completam o gigantesco conjunto literário que não contempla, diga-se, a opera omnia do romancista. À guisa de prefácio de “La Comédie Humaine”, Balzac finaliza: “A imensidão de um plano que engloba tanto a história como a crítica da Sociedade, a análise de seus malefícios e a discussão de seus princípios autoriza-me, creio eu, a dar o título sob o qual é publicada: ‘La Comédie Humaine’. É ele ambicioso? É justo? Obra terminada, o público decidirá”. Seria, contudo, o primeiro conjunto, Estudo dos Costumes, possivelmente o mais significativo da coleção.

Segundo a proposição de Maria Cândida, faria a exposição do comprometimento do escritor francês com a música. A reunião deu-se no último dia 14 de Junho. Tive o grato prazer de expor ao seu competente e atento grupo de estudos, formado por professores e profissionais liberais de várias áreas, aspectos dessa intrínseca relação música e literatura durante o romantismo em França, detendo-me preferencialmente, após exposição inicial, no comprometimento de Honoré de Balzac com o universo sonoro. Seguiu-se profícuo debate em torno do tema e de outros mais.

Vivendo em plena efervescência do movimento romântico na Europa e em  França, particularmente, Honoré de Balzac, cuja vida está associada às ligações com a aristocracia, mas também à crítica a tantas distorções da sociedade, teria contato com as artes, mormente a música, e algumas de suas obras permeiam visitas à área. Estava-se no período histórico primordial do romantismo.

A eclosão romântica nas fronteiras dos séculos XVIII e XIX teria início primeiramente na Alemanha e, logo após, em França. O  movimento literário e político alemão Sturm und Drang (tempestade e ímpeto) seria precursor do romantismo, que penetraria a França e se alastraria  por tantas regiões da Europa. Os alemães J.W.Goethe (1749-1832) e Friecrick Schiller (1759-1805) são exemplos marcantes. A “Ode da Alegria” (Ode an die Freude), de Schiller, seria o poema utilizado por Beethoven (1870-1927) no quarto movimento da monumental “Nona Sinfonia”. Beethoven não descartaria poemas de Goethe, que, por sua vez, foi autor de libretos de ópera.

Basicamente, traduz-se o romantismo pela exacerbação dos sentimentos, da sensibilidade. A “atitude romântica”, não nomeada, pode ser encontrada em séculos anteriores, mas seria no período mencionado que abertamente a eclosão se dá. Tendências românticas já se fazem sentir na música francesa em pleno iluminismo. O filósofo francês Henry Berr (1863-1954) chegaria a escrever que “há um estado de alma romântica… um romantismo eterno”. A obra de arte no romantismo tenderia a levar à emoção, langage du coeur, sendo que música e literatura, pela natureza de seus propósitos, mais tenderiam à manifestação desse “eu” interior que necessita expressar o sentimento abertamente. Alemães entendiam como “riqueza da vida interior” esse eflúvio dos sentimentos.

Se no classicismo a música, quando descritiva, capta o que se passa na natureza, no romantismo tem-se a natureza desse “eu” interior. O olhar é diferenciado e do objeto, como tal observado e assimilado, passa-se ao palpitar emotivo. As palavras tenderiam a seduzir o leitor, os sons a subjugar o ouvinte. Beethoven (1770-1827), Schubert (1797-1828), Schumann (1810-1956), Chopin (1810-1849) e Liszt (1811-1886) são exemplos claros dessa encantação. O poeta e escritor francês Alphonse de Lamartine (1790-1869) bem capta essa tendência voltada à exacerbação da sensibilidade: “O sentimento vago ou apaixonado do instrumento pode, a depender daquele que ouve, ser interpretado como homenagem tímida ou como suspiro ardente, para se tornar confissão; dois olhares que se cruzam no momento de êxtase musical põem por terra a muda inteligência; daí à paixão mútua, revelada ou confessa, não há que um momento de audácia ou de fraqueza”.

Contrariamente à composição instrumental solo, de câmara ou sinfônica professada na Alemanha, a França cultua formas mais “leves”, “superficiais” talvez, mas que serviram a esse amalgamar com a poesia e a literatura. Está-se longe do hermetismo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) com suas óperas-balés voltadas à magnificência. A ópera menos densa vinda da Itália tem imensa recepção em Paris. Óperas de Giacomo Rossini (1792-1868) e Vincenzo Bellini (1801-1835) seriam apresentadas com amplo sucesso na também cidade luz. O alemão Giacomo Meyerbeer (1791-1864) seria cultuado e uma de suas muitas óperas, “Robert le Diable”, foi executada inúmeras vezes em Paris com estrondosa acolhida. Excertos dela, vertidos para piano solo e publicados em coletâneas para o instrumento, deleitaram salões aristocráticos até a segunda metade do século XIX.

No próximo blog abordarei aspectos da relação mais ou menos intensa de poetas e escritores franceses com a música, focalizando preferencialmente Balzac e Berlioz. Em “La Comédie Humaine” encontram-se inúmeras menções e mesmo, dois títulos precisos concentrados na área musical. Tem-se, na gigantesca coleção, apreciações sobre música de importância para estudiosos do período, por vezes mais pertinentes do que a realidade publicada na imprensa da época. Uma das características essenciais de “La Comédie Humaine”, à qual pertence “Illusions Perdues”, é a “visitação” de personagens a outros livros da coleção, caso específico do romance em causa, de Lucien Chardon, posteriormente Rubempré, e que estará em “Splendeurs et Misères des Courtisanes”.  Esse penetrar outros cenários não seria um dos princípios do leitmotif professado por Richard Wagner (1813-1883) e da forma cíclica tão utilizada por César Franck (1822-1890) na música?

My thoughts on the book “Illusions Perdues” (Lost Illusions), by Honoré de Balzac, and the connections between literature and music during the French Romanticism in the first half of the 19th century.

Post-Scriptum: E chegamos aos 500.000 acessos. Desde 2 de Março de 2007, o blog é renovado, ininterruptamente, todos os sábados. Até o presente, sem falhar nenhuma semana. Número expressivo? Para o que proponho, sim. Distante de quaisquer mídias profissionais, assisto homeopaticamente ao crescimento de generosos leitores do blog. Sob outra égide, o número é ilusão se comparado a determinados blogs renovados por várias vezes ao dia e que tratam da política, do futebol, da moda, da economia, mas também do frívolo e da música descartável que inunda as arenas de nosso país. Alguns desses blogs têm milhões de acessos… diariamente. Sinais dos tempos e irreversível situação, segundo Mario Vargas Llosa. Continuarei. É o que sei fazer.

Considerações

Eu não falo evidentemente às crianças que são forçadas a aprender música,
mas àquelas cujos ouvidos são naturalmente atentos
a tudo que a vida tem de musical,
e que sonham com os ruídos da água, os ecos das músicas campestres,
as canções de ninar ou as cirandas.
Eu penso nessa vida interior não formulada
que é propriamente musical e que algumas crianças
reconhecem com espontaneidade em Mozart ou Debussy.
André Souris

É sempre prazeroso reencontrar amigos e conhecidos e trocar cordialidades ou ideias. Faz parte do convívio social. Jéssica frequenta a mesma feira-livre que há cerca de 20 anos me alegra aos sábados, pois a efervescência dessa atividade, cuja origem se perde na história, tem seu lado extraordinário. Casada, tem filhos pequenos. Disse-me que estava maravilhada, pois assistira pelo YouTube a uma menina de pouco mais de 10 anos tocando obras difíceis ao piano. “Como pode, meu amigo?” questionou-me. Sempre tive uma posição cautelosa quanto aos prodígios, mas apenas respondi que iria refletir sobre o tema e que sua pergunta estimulava-me a um post num futuro próximo. Passaram-se algumas semanas e o texto ora é publicado no blog. Como acontece, a maturação de um tema torna-se evidente durante meus treinamentos para as corridas de rua.

Tem-se de distinguir gênio e talento, dada a extrema raridade do primeiro atributo. W.A.Mozart (1756-1791) é a tipificação do gênio absoluto que, na infância, já compunha com maestria. A Música fez desfilar ao longo dos séculos pouquíssimos gênios compondo na precocidade. Na outra ponta, interpretação, há precocidades também geniais que comprovaram, durante a trajetória, que o termo estava apropriado. Entre muitos, poderíamos mencionar Wilhem Kempff (1895-1991), Claudio Arrau (1903-1991),  Georg Cziffra (1921-1994), Daniel Barenboim (1942-  ). O legado musical e a consequente leitura de seus livros evidenciam o absoluto domínio técnico-interpretativo desses pianistas ainda na infância e a presença de memórias prodigiosas. Essas qualidades inusitadas permaneceram, e a história reservou-lhes os lugares que eles fizeram por merecer.

Após a conversa com a amiga busquei na internet alguns dos inúmeros meninos prodígios. Presentemente o YouTube nos inunda com vídeos de precocidades, muitas delas originárias do Extremo Oriente. São crianças preferencialmente pianistas e violinistas, que exibem destreza invejável, proezas por vezes, chegando a causar impacto. Talentosos. Outros, nem tanto; e quantidade deles, sem comentários.

Estava a fazer elucubrações sobre o tema e lembrei-me de um precioso livro de João José Cochofel, “Opiniões com Data”, já mencionado em post bem anterior (12/05/2012). O autor, poeta, ensaísta e crítico musical português, posiciona-se em dois períodos, pois comenta, vinte anos após a redação de críticas selecionadas, suas posições, que nem sempre são concordantes com as de seu passado como articulista musical. Uma em particular chamou-me a atenção, justamente aquela a abordar a existência da denominada criança prodígio. Nessa, Cochofel aborda o retorno a Lisboa (Fevereiro de 1950) do menino prodígio Pierino Gamba, a fim de reger a Orquestra Sinfônica Nacional. ” O ‘caso’ Pierino não sofreu modificação do ano passado para cá, e o que então disse dele continua a aplicar-se-lhe por inteiro. Simplesmente o rapazinho vai crescendo, o sensacionalismo da sua precocidade deixa de ser um motivo de admiração, e acode-nos inevitavelmente esta pergunta: daqui a dois ou três anos, o que restará de uma infância lisonjeada até a idolatria, queimada no cabotinismo, explorada por um comercialismo repugnante? Será necessário que Pierino possua um excepcional estofo de artista para que saia incólume de tudo isso, pelo qual hoje não é responsável, mas que só por milagre deixará de agir na sua mentalidade, deformando-a, numa idade decisiva para a formação tanto física e psíquica como intelectual. Possuirá Pierino esse estofo? Não se tratará de um desses fugazes surtos, de certo modo vulgares nas crianças? Tudo parece indicar que não: o reflectido cuidado que põe nas interpretações, o começo de personalidade que lhes imprime e o labor que está por trás delas, a maneira como prepara a orquestra e que revela um sólido ofício”. Após outras considerações, o crítico conclui: “Só o futuro nos poderá elucidar”.

Em Março de 1965, Cochofel comenta: “E o futuro elucidou. Pierino deve andar agora pelos seus 26 anos. Largou a blusinha de gola e punhos rendados, largou os calções de veludo, largou o diminutivo do nome. Ficou um desconhecido”. Possivelmente por não estar a par da trajetória do maestro o autor tenha se equivocado, pois Piero Gamba (1936- ) desenvolveria uma sólida carreira, atuando até o presente frente a orquestras do maior renome. Não apenas é regente consagrado, mas professor e organizador de importantes atividades ligadas à música. Se Cochofel precipitou-se em sua conclusão, todavia sua apreciação sobre a existência da criança prodígio carrega enorme contributo, mormente ao discorrer sobre problemas que poderão advir do incenso ao talento precoce. “Mas que estragos não será capaz, antes do desabrochar de todas as faculdades, a má orientação, as medalhas que lhe põem no peito, os focos luminosos que acompanham, os livros e filmes biográficos ou pseudobiográficos que lhe consagram, enfim: toda a adulação de uma máquina de propaganda montada com todos os expedientes comerciais do tempo em que vivemos?” Estou a me lembrar da menina regente Giannella De Marco que, aos seis anos de idade, entusiasmou plateias brasileiras. Tinha eu doze anos em 1950 e fui ao Teatro Municipal vê-la reger. Causaria impacto. Ao crescer, outras foram as exigências da crítica e do público. Não resistiu. Tornou-se professora de piano do Conservatório de Roma. Evitava falar de seu passado de glórias na infância (http://www.vivaocharque.com.br/interativo/artigo07). Faleceu em 2010.

A minha reserva quanto à criança prodígio acentuou-se com a profusão desses miúdos na internet. Há realmente talento em tantos deles, por vezes em interpretações frente renomadas orquestras. Duas razões, uma da educação no lar e outra concernente à criação interpretativa, levam-me a questionamentos. Primeiramente, descoberto o talento, podem os pais, movidos pelas mais variadas razões, dedicarem-se a esse filho em particular, levando-o ao limite de um aprendizado? O caso da pianista norte americana Ruth Slenczynska (1925-  ) é exemplo. Apesar da carreira brilhante, lamentaria profunda e contundentemente a implacável fiscalização de seu pai desde os 3 anos de idade, quando começou a aprender piano. O crescimento harmonioso da criança se esvai e pais possessivos, aguardando o alentado sucesso, podem negligenciar o equilíbrio necessário à formação integral do miúdo, logo adolescente. E todo o mal está feito, talvez não intencionalmente. Uma segunda pergunta estaria ligada à interpretação. Por mais talentosa que seja a criança, haverá soberana a intenção do professor, entendendo-se que, para a realização acontecer, o mestre tem de ter qualidade comprovada. Teríamos, pois, o talento precoce à disposição das ideias competentes do professor. É um fato. Seria impossível uma criança na mais tenra idade compreender a essencialidade de uma fuga de J.S.Bach ou um tempo de Sonata de Beethoven, pois essa compreensão dar-se-á através dos anos, de estudos aprofundados e da experiência pianística. Tendo ouvido um sem número de crianças ao longo das décadas, mais me certifiquei dessas assertivas. Excepcional que seja a interpretação, impossível para um músico adulto não perceber determinadas inflexões da criança, pois, por mais que ela tenha o código a ela transmitido pelo mestre, haveria sempre essa presença espontânea, que é característica da idade infanto-juvenil. O prodígio sem o acompanhamento educativo harmonioso corre sério risco de estiolar-se. Quantas dessas crianças não abandonaram a música, já na juventude, por enfado? Interessa considerar que a maioria dos compositores e intérpretes de mérito não foram crianças prodígios, mas talentos embrionários que comprovaram, com o decantar das décadas, qualidades inalienáveis.

Reiteradas vezes inseri pensamento da lendária pianista e professora Marguerite Long: “Nada resiste ao trabalho”. Será através de disciplina, concentração, dedicação e ação amorosa durante toda a vida que o talento se desenvolverá com resultados. Para que essa trajetória seja harmoniosa e equilibrada, necessário será que o caminhar sereno e sem pressões já prepondere na infância, e que a música seja o principal objetivo, não o único, pois a cultura de um músico deve ser abrangente e não unilateral. Acrescente-se a importância da família nesse universo sonoro. Essencial.

With the web jam-packed with young geniuses showcasing their talents in different fields, I can’t help reflecting upon child prodigies and the reasons why so few fulfil early promises in adult life.