Conflito Israel-Palestina e Outras Reflexões sobre Música
O Conflito Israel-Palestina e Outros Textos sobre Música
Esse conflito não é político, mas humano,
o choque radical de dois povos
que reivindicam seus direitos sobre a mesma faixa territorial,
que ambos consideram como sua pátria.
É necessário compreender a especificação histórica desses povos,
que deverão acabar por aceitar que seus destinos
são irremediavelmente misturados.
Daniel Barenboim
O conflito Israel-Palestina, que teve há poucas semanas atrás recrudescimento indescritível, tem sido um dos temas preferenciais do grande músico Daniel Barenboim, que exaustivamente tenta o utópico, o entendimento entre os dois povos conflitantes. Tanto nas conversas com Edward Said (“Parallèles et Paradoxes – Explorations Musicales et Politiques. Entretiens”, Paris, Le Serpent à Plumes, 2003), como em “La Musique Éveille le Temps” (Paris, Fayard, 2008), o músico insiste nessa aproximação que poderia levar à Paz. No livro atual, “La Musique Est un Tout”, capítulos são dedicados ao grave problema. Judeu, obteve o passaporte palestino, mercê, em parte, da orquestra West-Eastern Divan Orchestra, a reunir músicos de várias procedências.
No discurso de Barenboim inexiste sofisma. Acredita firmemente, assim como parcela considerável de não envolvidos com os povos da região conflitante, que apenas o entendimento poderá salvar uma situação que se acentua, recrudesce e, quando luz parece dar significado à compreensão, propositadamente o conflito se expande. Se o músico não sabe quem provocou o conflito, pergunta contudo quem dará os passos que levarão ao fim desse longo derramamento de sangue. O que parece relevante é a atitude consciente de Daniel Barenboim, que entende as duas partes: “Todos os Palestinos devem reconhecer que a violência não é remédio contra os sofrimentos sob regimes de ocupação ou de exílio. Se bem que os Palestinos tenham o direito de reagir com rancor à reivindicação dos Israelenses naquilo que eles consideram como sua pátria, devem contudo admitir a existência de Israel”. Propõe o desmantelamento das colônias, mas defende fronteiras seguras anteriores a 1967, com pequenas alterações. Posiciona-se firmemente ao escrever que Israel “deve aceitar que a parte oriental de Jerusalém seja a capital da Palestina, e reconhecer que ninguém tem moralmente o direito de negar a um outro povo o direito de regressar à sua terra. Esse direito tem de ser negociado entre as partes”.
Estava a ler o capítulo “La leçon humaine de Gaza” durante os dias fatídicos que marcaram o envio de foguetes de curto alcance pelo grupo Hamas na faixa de Gaza e a represália israelense. Vários são os fatores que resultam na supremacia do Hamas sobre o El Fatah na Autoridade Palestina. Tem o primeiro um objetivo primordial, que seria o aniquilamento de Israel. Isso é fato. Seus recursos logísticos e armamentísticos correspondem à ínfima parte do poderio militar de Israel. Entretanto, Gaza não é apenas a belicosidade do Hamas.
Daniel Barenboim tem postura clara a respeito do conflito. O ensaio em apreço, publicado inicialmente na edição italiana de 2012 (“La musica è un tutto”, Milano, Giangiacomo Feltrinelli), apresenta a posição do músico, meses antes do acirramento das hostilidades em meados deste ano. Importa verificar o que pensa Barenboim a respeito do povo de Gaza, da vida cotidiana, de suas difíceis conquistas nas áreas da saúde, educação e cultura. A radiografia estende-se ao lado humano do povo de Gaza. Barenboim atinge o cerne da questão e não vê outra saída a não ser o diálogo que poderia levar à paz. Observa: “Independentemente de suas implicações políticas, de sua injustiça e da miopia que o caracteriza, a mais terrível consequência do bloqueio de Gaza empreendido por Israel, atribuindo uma culpabilidade coletiva a todo o povo, é o prejuízo que essa atitude provoca na qualidade de vida da população que lá habita. Minha experiência recente me leva a afirmar que, malgrado as condições tantas vezes insuportáveis às quais são submetidos, numerosos cidadãos de Gaza continuam cheios de esperança e de iniciativas e estão prontos para construir um futuro melhor na paz. Não diferem de muitos israelenses. A questão, entretanto, é como encontrar meios de colocar em contato pessoas que, em fins de conta, têm aspirações análogas”. Acredita Barenboim que as aspirações palestinas “só podem ser satisfeitas pela criação de um Estado palestino autônomo e soberano”. Com a coragem que lhe é peculiar, o músico levaria sua orquestra a Gaza para concerto histórico, pois “o aspecto mais problemático de toda visita a Gaza tem sido o de passar a fronteira, mas uma das primeiras diretrizes do governo egípcio pós-revolucionário foi a de abrir a passagem de Rafah (fechada desde 2007), o que nos permitiu entrar em Gaza a partir do Egito”. Barenboim narra as dificuldades que teve. Após reunir outros corajosos músicos, integrantes da Staatskapelle de Berlin, das Filarmônicas de Berlin e de Viena, da Orquestra de Paris e do Teatro Scala de Milão, conseguiu atravessar as fronteiras, não sem restrições atemorizantes do Hamas. Lembre-se que Osama Bin-Laden morrera no dia 2 de Maio de 2011 e o concerto realizou-se no dia 3, sob os auspícios das Nações Unidas, da UNRWA e da Unesco, com a cooperação do governo egípcio. Frise-se que Barenboim elenca instituições que faziam Gaza respirar. Menciona a população de 1.200.000 habitantes e a existência de 12 universidades. Considera que “essa jovem geração de Palestinos seguiu estudos superiores, é bem informada, cheia de ambições e será chamada um dia a desempenhar papel relevante no desenvolvimento futuro da região”. Barenboim conclui que “a violência apenas obstaculiza toda legitimidade da causa palestina”.
Durante a recente crise provocada pela insanidade de membros do Hamas, lançando foguetes de curto alcance que provocaram umas poucas mortes, houve a retaliação desproporcional de Israel, ceifando centenas de vidas, entre estas as de idosos e crianças, destruindo instituições que funcionavam como hospitais, escolas, prédios e tudo que estivesse ao alcance de uma das mais poderosas máquinas de guerra do planeta. Sim, lhes é dado o direito de se defender e caríssimo sistema de interceptação dos foguetes lançados pelo Hamas evitou maiores baixas em Israel. A represália, a cada saraivada de foguetes, é que foi rigorosamente desproporcional. E a paz? Quando virá? Não deveriam dirigentes do Hamas ou a cúpula que governa Israel serem submetidos às Cortes Internacionais? São crimes de Guerra, que teriam de ser julgados e seus mentores responsabilizados. O pensamento visionário de Daniel Barenboim jamais, creio, assistirá nem julgamento nem paz naquela região.
Em “La Musique Est un Tout” há uma série de entrevistas concedidas a Enrico Girardi. Creio que a primeira sobre a West-Eastern Divan Orquestra, é a mais interessante. Apesar de retomar temas referentes ao conflito, reitera Barenboim que os dois povos estão convencidos “de ter direito histórico, filosófico, antropológico e religioso. Em uma palavra, humano, de viver sobre o mesmo território. Nenhuma estratégia militar trará solução. Só há três possibilidades objetivas: viver num único país cuja população teria duas nacionalidades e que contaria sete (Israel) mais sete (o todo da Palestina) milhões de habitantes, solução inaceitável por Israel e pelos judeus, desde o Shoah (holocausto); ou a criação de dois países independentes que, após certo tempo, se unissem eventualmente em uma federação, solução difícil de ser aceita pelos palestinos, que sempre acreditaram que a região lhes pertence; ou o massacre de ambos os lados. Quartum non datur: não há outra possibilidade. Eu não trabalho pela paz, mas contra a ignorância e contra soluções falsas e ilusórias”. Nesse capítulo perguntas foram formuladas sobre o desenvolvimento de Barenboim e sobre interpretação.
Se a primeira entrevista é rica em pormenores a abranger parte das preocupações do músico, as seguintes envolvendo três óperas emblemáticas, Carmen de Bizet, As Walkírias de Wagner ou Don Giovanni de Mozart, antolham-se-me como as de menor interesse. Creio que o músico, com agenda plena de concertos como pianista e regente, além de acumular cargos diretivos relevantes, tenha caído em “armadilha”. Que subsídios de grande interesse não poderia ter legado se fosse perguntado sobre o gênero ópera dos primórdios à atualidade, a evidenciar estilos, evolução histórica… Enrico Guirardi levanta alguns questionamentos, diga-se, respondidos com competência pelo maestro Barenboim, de larga experiência no gênero operístico. Algumas perguntas chegam a ser pueris, ligadas à agenda a ser apresentada em público, e justamente baseadas em apenas três modelos com fartíssima bibliografia.
Finalmente, em “Épilogue”, Barenboim presta homenagem ao extraordinário barítono Dietrich Fischer-Dieskau (1925-2012), ratificando convívio mantido e as qualidades do grande cantor. Em “Épilogue verdien”, tece elogios à imensa contribuição de Giuseppe Verdi à ópera universal. Justamente nesse curto epílogo Barenboim expõe algumas de suas preocupações quanto à interpretação: a flexibilização dos andamentos indicados pelo compositor, para mais ou para menos rápido, conservando-se contudo, in conditio sine qua non, a proporcionalidade dos tempi e, na mesma orientação, a observância da dinâmica, fatores essenciais à responsabilidade interpretativa frente à obra.
Um grande livro, apesar das 172 páginas.
This post resumes the appreciation of Daniel Barenboim’s book “La musique est un tout”, now addressing topics of his interview with journalist Enrico Girardi and in special the author’s views on the Israeli-Palestinian conflict and his conviction that both sides can take a step toward each other and live in peace side by side.
___________________________________
No link abaixo o leitor terá acesso à “Suonata Seconda” das “Sonatas Bíblicas” de Johann Kuhnau, sempre sob os cuidados de meu amigo maratonista Elson Otake. Belíssima obra que ilustramos com imagens referenciais.
Clique para ouvir a “Seconda Suonata” bíblica de Johann Kuhnau. Piano J.E.M.
Comentários