Quando a Música Tem o Valor Totalizante

A música é parte essencial da dimensão física do espírito humano.
Daniel Baremboin

Há algum tempo resenhei “A Música a Despertar o Tempo”, do pianista, regente e pensador Daniel Barenboim, um dos mais notáveis músicos das últimas décadas (vide blog 17/09/2011). Em “La Musique est un Tout” (France, Fayard, 2014) Barenboim expõe conceitos que o tornaram o músico que é. Reúne o livro, publicado anteriormente na Itália em 2012, textos em forma de ensaios sobre música, a dar importância relevante a entrevistas concedidas ao musicólogo e crítico musical Enrico Girardi. Recorre igualmente, como o fez nas últimas publicações, à problemática Israel-Palestina. Portanto, dividi em dois posts o conteúdo do livro, o primeiro a abordar  o substancial ensaio inicial, “Éthique et Esthétique”.

Desde 2007 tenho colocado posição a respeito da necessidade do intérprete ter uma visão ampla do mundo que o cerca. Cultura abrangente é fundamental. Muitos artistas, consagrados nos palcos, prescindiram dessa prerrogativa essencial e talentos extraordinários, munidos de intuição clara, conseguiram ficar à margem de uma visão essencialmente cultural. Importava mais a recepção pública do que o aprofundamento humanístico. Se não indispensável para legião de profissionais que cultua a música popular, creio contudo significativa a edificação do músico sob o manto homogêneo da cultura. Enriquece o diálogo, tornando-se o intérprete arauto de procedimentos que poderão advir.

Seria em “Ética e Estética”, o capítulo mais importante do livro, a meu ver, que o pianista-regente apresenta sua concepção dessas palavras tão controvertidas. Preocupa-se em evidenciar aquilo que considera “o fosso crescente que separa o pensamento artístico do pensamento prático”. Apresenta como fulcral o respeito irrestrito à partitura, “obrigação moral”, como afirma. Barenboim assinala que “o primeiro dever de todo intérprete é o de recriar a obra com sinceridade e devoção, e não exprimir a sua própria personalidade”. Sim, respeita-a, mas dentro de limites que não interfiram na condução musical, pois tanto a negação de si mesmo como a arrogância não são louváveis.

Ao se referir ao repertório, entende maior a dificuldade em se familiarizar com obras contemporâneas do que com as de compositores do passado. Saliento que, se obras de períodos anteriores estiverem na penumbra quase absoluta, o trabalho para a edificação de uma interpretação também adquire o ineditismo e, portanto, grau maior de dificuldade, a se equiparar com as da contemporaneidade. Nos dois casos, a escuta não está familiarizada. Ao se referir às obras do passado, mas conhecidas e mantidas “na ponta dos dedos”, haveria, contudo, a necessidade de se conservar o frescor da primeira aproximação.

Considera Barenboim a problemática da manipulação e condena a busca de efeitos particulares, que levam à ausência da ética interpretativa e da autenticidade. O posicionamento que faz a respeito de obra de seu repertório interpretada no decurso de 60 anos seria exemplo de coerência e autenticidade. O YouTube nos apresenta, saliente-se, inúmeros intérpretes respeitados em execuções diferenciadas ao longo das décadas. Alterações existiriam? Quando há respeito à partitura, o que se ouve é mais uma interpretação autêntica. Em posts anteriores observei que o “tempo” para o compositor é finito pois, obra finda, é ela “atirada à roda”, na pena de Guerra Junqueiro. O tempo do intérprete dura enquanto perdurar sua atuação ao longo da carreira, e as mudanças interpretativas, sem desqualificar a partitura, evidenciam esse “tempo” infindável na busca da inatingível perfeição. E esse tempo da existência para o intérprete consciente “é o resultado do debruçar intenso sobre a obra, repetições e experimentações e do conhecimento de si mesmo como músico”, afirma Baremboin. Seria essa incontável parcela da vida dedicada à repetição atenta que levaria o intérprete alerta a poder executar diante do público a obra assimilada, incorporada, sem interrupção, mas referencial em seus intentos de divulgação. O zelo do pianista-regente-pensador mostra-se, portanto, integral. Justificar determinada mudança interpretativa é outra maneira dessa consciência cuidadosa, pois “a falta de ética é evidente quando um intérprete decide solução por puro capricho, simplesmente por lhe agradar e sem nenhum respeito pelo tempo objetivo, a hierarquia harmônica ou a frase musical”.

A respeito do repertório da denominada música antiga, Baremboin tem pensamento bem próximo àquele reiteradamente colocado por mim em textos desde o início dos anos 2000 (Gent, De Rode Pomp, 2001; Coimbra, IUC, 2004; Paris, Témoignage nº4 – Sorbonne, 2012) e ratificado pelo ilustre François Lesure, que considerava ultrapassado o debate cravo-piano, interessando-lhe sim a qualidade do intérprete. Menciono esses fatos que corroboram a guarida que meus cinco CDs lançados na Bélgica, privilegiando Jean-Philippe Rameau, Johann Kuhnau e Carlos Seixas, tiveram na Europa. Contudo, Barenboim vai mais ao fundo e, no texto em apreço, “Éthique et Esthétique”, considera que há entre os adeptos da música antiga aqueles mais dotados, frise-se, que fazem vir à luz seus estudos aprofundados, mas que “inversamente, há aqueles menos dotados de talento, que se submetem aos dogmas do movimento, como se esses pudessem substituir o pensamento individual, transformando sua prática musical em entreguismo que pretende muitas vezes oferecer respostas a perguntas que ninguém jamais colocou”. Curiosamente, François Lesure também utilizou-se em 2001 dos termos dogma e entreguismo. Barenboim ironiza o movimento, considerado progressista e moderno, “sistema de pensamento cujo objetivo é o de recriar circunstâncias que existiram há duzentos anos”. Menciona ainda o progresso técnico de tantos instrumentos e a recepção auditiva, pois as salas de concerto atuais são bem mais amplas. Em meus textos citados acima observei que o primordial entrave possa ter sido o silêncio de um século do cravo durante o transcorrer do século XIX. A tradição da escuta perdeu-se para sempre e os apegados aos “dogmas” citados por Baremboim e Lesure tiveram de buscar, na fonte impressa ou nos instrumentos “empoeirados” durante longo período, respostas a perguntas por vezes insondáveis.

Ao observar a condução das vozes em uma partitura, o autor evidencia todo o respeito à importância de cada uma, comparando-as ao “diálogo falado, quando interlocutores mais importantes têm durante mais tempo a palavra”.

Sobre gravações, pondera que “a qualidade da escuta é função do indivíduo”. Com certa dose de ceticismo, considera a escuta sem discernimento, ouvida em qualquer lugar, como barulho de fundo, apenas. A escuta atenta revestir-se-ia do sagrado: “a verdadeira escuta exige concentração, curiosidade e devotamento total àquilo que se está a ouvir”.

Barenboim considera a emoção, palavra tão anatematizada por estruturalistas. “A emoção não é inerente a uma peça musical. Será a percepção humana da repetição e das mudanças, entre outras, que confere emoção à música”. Ficaria confiado ao público “modificar seu estado de espírito e acolher o senso da música no momento de sua realização física”.

As últimas páginas de “Éthique et Esthétique” privilegiam a ascensão tecnológica. Contudo, mostra-se o autor pronto ao desafio: “O século XX distinguiu-se pela tendência à desconstrução, à fragmentação e à especialização e meus votos para o século XXI fixam como objetivo o papel não fácil da reconstrução, da reunificação e da expansão do saber”. Utópico? Talvez. Contudo, vê valores no progresso tecnológico e nas comunicações. Considera que a música (certamente a de concerto) viva ainda em torre de marfim, a abrigar intérpretes e público.

No próximo post comentarei os capítulos seguintes. Os dedicados ao conflito Israel-Palestina são pungentes. As entrevistas a Enrico Girardi, afeitas, infelizmente, a um quadro repertorial repetitivo, não permitem tantas expansões por parte do respeitado intérprete e pensador. Em dois outros instigantes artigos a abordar a área musical o músico comenta aspectos fulcrais da interpretação.

This post addresses the book “La Musique Est un Tout”, a series of essays in which the musician, intellectual and writer Daniel Baremboin explains in a very lucid way his ideas on music and on the Israeli-Palestinian conflict. For now I’ll confine myself to the section of the book devoted to music. The next post will deal with the Israeli-Palestinian issue and other music-related topics.