Amigo e Afinador

Giovanne Aronne na busca incessante do som exato. Clique para ampliar.

O amigo no templo, aquele que,
graças a Deus, eu reencontro,
é o que devolve meu olhar
com a mesma expressão,
iluminada pelo mesmo Deus,
pois desde logo a unidade se fez,
mesmo sendo ele comerciante e eu capitão,
ou ele jardineiro e eu marujo sobre o mar.
Acima de nossos pontos de vista,
eu o encontrei e sou seu amigo.

Antoine de Saint-Exupéry

O desaparecimento recente de amigos diletos faz-me tecer reflexões sobre a perda de entes importantes que apreendi a amar através de exemplos que deixavam diuturnamente. Álvaro Guimarães (vide Álvaro Guimarães (1956-2009) – In Memoriam, 04-07-09) e Giovanni Aronne permaneciam presentes em meus pensamentos, fosse a partir de menções em conversas com outros amigos ou pelo contato direto, quando sentíamos realmente prazer no convívio.
Giovanni nasceu na Itália, em Orsomarso, província de Cosenza, e desde tenra idade teve inclinação para a música. O canto foi-lhe sempre familiar, desde a participação em coral da igreja da cidade. Aportou no Brasil em 1953, a iniciar aos 16 anos vida laboriosa na Pianofatura Paulista. Giovanni, pouco a pouco, foi granjeando respeitabilidade na área da afinação e reparo de pianos, tanto nas incontáveis residências da cidade e do interior, como mestre afinador das principais salas de concerto de nossa cidade: Teatro Municipal, Sala São Luís, Fundação Oscar Americano e tantas outras. Mente privilegiada, soube incutir em seus três filhos – Marcelo, Ângela e Armando – o amor pela profissão, seguindo antiga tradição bem européia de transmissão desse ensino de pai para filhos, e que fundamenta decisivamente competências na área. Assim foi na construção das igrejas medievais, assim também o trabalho artesanal em todas as áreas prolongou-se, por vezes durante séculos. Poderia ser apenas um afinador, mas foi o mais importante da cidade e sua grande oficina de reformas de piano na zona leste, assim como as duas lojas da Vila Mariana e Higienópolis, atestam a abrangência profissional de Giovanni, que soube delegar responsabilidades aos filhos com o passar do tempo (www.aronepianos.com.br ). Amante do bel canto, apresentava-se com amigos em locais apropriados e divertia-se muito com essa atividade, tanto nas apresentações como tenor nas récitas promovidas pelo professor Domingos Viola Neto no Círculo Militar, como também nas orientadas pelo professor Dante Perini na Unione Italiana.
A morte de Giovanni Aronne no dia seis de Agosto pegou-me de surpresa. Poucos dias antes conversáramos ao telefone e o amigo já mencionava um declínio das funções coronárias, que se acentuaram a partir do começo deste ano. Mas continuava a trabalhar, cuidar de suas casas de piano e a afinar. Atencioso, tinha sempre segredos no trato dos instrumentos. Apesar de o Brasil não ter quantidade de pianos das melhores marcas do mundo em bom estado e de inexistir a assistência técnica imediata das fábricas internacionais, Giovanni, aqui nos trópicos, fazia por vezes milagres, quase sempre a acertar em seus engenhos. Uma peça da intrincada mecânica do piano enguiçada, som que estava a se deteriorar, afinações que não se mantinham em instrumentos mais antigos, pedais com problemas, cordas rompidas e lá estava Giovanni a estudar a melhor maneira de reparar o estrago do tempo, do uso ou até… dos terríveis cupins.
Conheci Giovanni nos anos 50, mas tivemos uma ligação ininterrupta a partir da década de 60. Jovem como eu, demonstrava rara aptidão para a profissão. Naqueles tempos em casa de meus pais tínhamos sete pianos, três de cauda inteira, e Giovanni já se salientava nessa disposição permanente quanto à verificação das avarias ou à afinação cuidadosa. João Carlos e eu mantínhamos com ele longas conversas, pois Giovanni durante toda a vida mostrar-se-ia um interessado contador de casos.
Foi Giovanni que anos depois, até a sua morte, cuidou dos pianos de nossa casa. Atento, poderia atrasar uma visita, mas não deixava de realizá-la. Por tradição e gosto, apreciávamos sempre durante o almoço, no intervalo das afinações, o vinho generoso – português, de nossa preferência -, pois Giovanni sabia que, quando cá vinha, a visita prolongava-se nos reparos dos instrumentos desgastados ao longo do tempo, graças à nossa prática diária durante várias horas, a resultar em constantes desajustes. Ultimamente, quando não podia vir, era um de seus filhos que realizava os consertos a contento.
Seu sogro era português, torcedor da lusa e colecionador de aves canoras. Faleceu há tempos, mas quando eu ia ao Tatuapé visitar Giovanni não faltavam boas conversas sobre pássaros, a excepcionalidade de alguns, e sobre a nossa sempre Portuguesa, nau permanentemente à deriva. Glória, a dedicada esposa de Giovanni, preparava o café e o “papo” se prolongava. Esse convívio com o sogro deu ao dileto amigo afinador o gosto pela cozinha portuguesa, que Giovanni conservaria até o final de seus dias. Almoçamos uma vezes no Restaurante Cereja, no entorno de seu bairro, onde o bacalhau é especialidade. Um requinte para o afinador e para o pianista.

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Como gostava de cantar as belas canções italianas, gravou um CD em que despretensiosamente, mas com grande expressividade, lembra perenemente de sua Italia mia.
Granjeou amizades em todos os cantos. Cuidou dos pianos de grande parte dos músicos que operam na cidade, assim como daqueles amadores que têm o instrumento como companhia e entretenimento. Sua índole voltada à vida simples e o seu espírito empreendedor, responsável pela competente empresa que construiu, são evidências de sua permanência na memória. Giovanni não será esquecido. Nem poderia sê-lo. Figura sensível e generosa, que estará a ser lembrado em cada afinação que seus filhos continuarão a fazer. A dinastia permanece através dos belos exemplos deixados pelo profissional dedicado e amigo, para bem de nós, músicos. Grande Giovanni.

Clique nos links abaixo para ouvir Giovanni Aronne cantando duas canções italianas:
Italia Mia
Parlami d’amore

Giovanni Aronne, who passed away last August 6, was the most skilled piano tuner in São Paulo, working for the best concert halls in town. We have been close friends for more than 50 years, since the days we both were young and he was responsible for tuning the seven pianos of my father’s house. His death was a shock to me and this post is a tribute to his memory. An expert in piano care and maintenance, he had three piano repair shops that will now be handled by his two sons and daughter, to whom he handed down a legacy of professional excellence and ethical conduct.