Navegando Posts publicados em setembro, 2009

Turbilhão de Toda Espécie e Imaginação Sonora

O rodopiar da bailarina. Desenho de Luca Vitali. Setembro, 2009. Clique para ampliar.

O pião entrou na roda, ó pião
O pião entrou na roda, ó pião
Roda pião, bambeia pião
Roda pião, bambeia pião…

Cantiga de roda

Vento ou água, quando resultando em sugadores de formatação espiral ou circular, sejam estes os grandes tornados ou simples ventos provocando rodopios da areia, enormes formações em forma de crateras marítimas ou pequeno movimento provocado no ralo de uma pia, representam fenômenos que nos deparamos com frequência. Ao longo da história, o rodamoinho ou redemoinho tem despertado interesse e curiosidade. No mar ou em um grande rio, pode sugar embarcações com extrema facilidade. Quando na configuração de um tornado, tudo o que está pela frente é aspirado, a causar catástrofe. Documentários muito bem cuidados no Exterior mostram imagens aterradoras de ciclones, tornados e tufões, que são acompanhados por especialistas arrojados focalizando suas aproximações e a destruição após curta passagem.
Ainda miúdo, achava curioso ver a água de um imenso aquário ao ar livre em nossa casa ter seu líquido escoado em breve tempo, tão logo o ralo aberto. Formava-se uma coluna afunilada desde a superfície, e toda a água desaparecia como por encanto. Seco o aquário em cimento, tínhamos a incumbência de limpá-lo periodicamente. Num córrego que passava a uns 400 metros de nossa casa e de águas limpas – inimaginável hoje na megalópole – pegávamos pequenos guarus ou barrigudinhos. Num declive natural de vinte e tantos centímetros, mini rodamoinhos se formavam o que facilitava pegar os peixinhos nas bordas desses círculos. Iam todos para o aquário fazer companhia aos pequenos peixes dourados e aos cascudos, estes permanecendo sempre ao fundo. O córrego atravessava a Rua Amâncio de Carvalho e dirigia-se ao Ibirapuera. Gostava igualmente, ao lavar e esvaziar garrafas que serviriam para a transferência de vinhos importados em pipas de Portugal por meu pai, de realizar movimentos giratórios a fazer o líquido descer velozmente sem formar bolhas. Num outro contexto, como não recordar dos piões e dos desafios no recreio da escola, quando menino encantado com o conhecer as coisas? Enrolávamos o pião de madeira com ponta de metal em um cordão, atirávamos velozmente o objeto ao chão após puxar o grosso barbante, e aquele que conseguisse mantê-lo rodando por mais tempo era o vencedor. Longe de ser o melhor entre meus colegas, tinha lá minhas habilidades. Lembrança que não se esquece.
O tema veio-me motivado por dois fatos, um corriqueiro, outro trágico. Estava a correr quando senti uma rajada de vento que levantou a poeira de uma calçada, a formar um pequeno rodamoinho de dois ou três segundos de duração. Afloraram ideias a respeito e associei-as de imediato à música. Ao regressar à casa, sempre na cadenciada corrida, passei pelo nosso cantinho de conversas, onde meus vizinhos aposentados comentavam sobre recente tornado que sugou casas, plantações, pessoas e animais, a causar danos imensos em Guaraciaba, no Estado de Santa Catarina.
No sentido figurado, o fenômeno que provoca o rodamoinho é aplicado em muitas outras situações. A vida que é sugada pelas vicissitudes, o turbilhão da paixão, a atividade frenética. O homem tende sempre a buscar analogias na natureza. Desrespeito às leis naturais a levar a degradação do planeta tem motivado tragédias cada vez mais marcantes e, por analogia, poder-se-ia dizer que os turbilhões da existência têm por sua vez trazido dimensionamentos, levando a distúrbios psíquicos nunca vistos. Natureza e procedimento humano têm muito em comum.
Vladimir Jankélévich, ao abordar a obra de Claude Debussy em três livros maiúsculos (vide Vladimir Jankélévitch e os opostos em Harmonia no item Essays do site), pormenoriza-se no movimento giratório, espiral ou aquele que em círculos não leva a nenhum lugar. Observa: “O paradoxo do movimento imóvel não caracteriza tão somente a água que jorra e a vaga marítima, pois essa ‘coincidentia oppositorum’ é uma marca distinta da velocidade e da cinemática debussysta em geral. Mas a velocidade não é necessariamente progresso”. Referindo-se a Mouvement do primeiro caderno de Images: “qual movimento ! talvez um carrossel e um movimento in loco preferencialmente a um verdadeiro movimento”. Na sequência do pensamento, numa outra visão do giratório, comenta: “ Rondes francesas, gigas inglesas, tarantelas napolitanas: tudo o que leva à rotação e ritmo composto é objeto de sua vertigem”. Em La Boîte à Joujoux, essa obra extraordinária e quase ignota de Debussy, uma Ronde no premier tableau dá bem a noção desse movimento em constante girar.
Através da história da criação musical, verifica-se que rodamoinhos e outros movimentos que tendem a círculos ou espirais, seja a dança impulsiva ou o fenômeno natural, fascinaram os compositores. Contrariamente aos autores germânicos, ibéricos e italianos do século XVIII, que encontraram na terminologia abstrata ou formal veículo para a exteriorização da criação, os clavecinistas franceses tiveram sempre a imagem como inspiração, mesmo que aspectos formais configurassem semelhanças aos coetâneos outros europeus. Interessa ao cravista francês descrever o que vê, ouve ou sente. Se muitos foram os temas abordados por compositores como François Couperin (1668-1733), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) e tantos outros, um teria tratamento bem especial, Les Tourbillons (Os Rodamoinhos). Jean-François Dandrieu (1682-1738) e Rameau escreveriam a respeito desse movimento giratório que, traduzido cravisticamente, pode levar a imaginação a entendê-lo em sua origem. Este último escreveria a Houdar de la Motte “Tourbillons de poeira agitados pelos grandes ventos”, a respeito da peça pertencente às Pièces de Clavecin, de 1724. Em forma rondeau, Les Tourbillons é extremamente diversificada em seu tratamento, onde não faltam passagens virtuosísticas. O mesmo não ocorre com a peça de Dandrieu, também na forma rondeau, caracterizando-se pela graciosidade, verve, rapidez, mas sem as inovações que o Mestre de Dijon, Rameau, apresenta.
Da puerilidade dos cravistas barrocos nessa interpretação à própria percepção de autores quanto à aceleração de intensidades relativas aos acontecimentos naturais, tudo leva a supor que o homem não prescindirá, como temática “criativa”, desse constante girar, a exemplo do que se passa no universo. O importante, à maneira do pião guardado no meu lúdico, é não perder a noção do eixo. O equilíbrio volta a ser sentido.

Clique nos links abaixo para ouvir, na interpretação de J.E.M. ao piano, as faixas:

Les Tourbillons, de J-P. Rameau

Les Tourbillons, de J-F. Dandrieu

Ronde (Boîte a Joujoux), de C. Debussy

Noticing a small whirl of dust on the ground amidst the wind during my morning jogging, my mind went wandering about twisters and typhoons, the metaphorical “windstorms” of one’s life and the fascination composers have always had for such natural phenomena, drawing inspiration for their pieces from the swirling movements of such violent columns of air.

A Negação como Defesa

A Máscara. Desenho de Luca Vitali. Setembro, 2009. Clique para ampliar.

Rien ne naît ni ne périt, mais des choses
déjà existantes se combinent, puis se séparent de nouveau.

Anaxágoras de Clazômenas (500 a.C – 428)

Rien ne se perd, rien ne se crée, tout se transforme.
Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794)

Estava a aguardar consulta e fui até a janela do consultório que dava para um estacionamento. Carros chegavam e saíam, e os funcionários colocavam os cubos numerados que fazem parte do cotidiano nesses incontáveis estabelecimentos guarda-carros da megalópole. Modelos diferentes de montadoras fixadas no país. Dei-me conta, mais pormenorizadamente, da mesmice dos veículos e pensei nas propagandas que inundam televisores, rádios, jornais e revistas, a glorificar o arrojo e originalidade das linhas de tal novo carro lançado. Contudo, para um leigo, são todos os modelos muito parecidos, diferenciando-se através dos detalhes. Se dirigentes dessas montadoras forem entrevistados, tomarão como injúria a palavra imitação, mas que ela existe é evidente, mesmo que camuflada por “inspirado em vaga ideia”. Mutatis mutandi, o mesmo ocorre com todo tipo de mercadoria à disposição do consumidor. Fabricantes recusam-se a admitir que partiram de modelos concorrentes que ditaram inovações. Estes, por sua vez, foram desenhados a partir de protótipos de toda espécie de firmas. Essas observações levaram-me a reflexões.
Já na Grécia antiga, mímese designaria imitação – imitatio, em latim -, e os filósofos gregos debruçaram-se sobre o conceito, mormente Platão e Aristóteles. No século XV, sob outra égide, o célebre Imitação de Cristo, atribuído a Tomas à Kempis (1380-1471), dava ao homem a prerrogativa de seguir os passos de Jesus na aplicação de conduta ditada pelos Evangelhos. Livro de cunho devocional, proporcionava ao fiel o modelo de virtude. Teve enorme guarida durante séculos. Santo Inácio de Loyola teria se inspirado na obra, a fim de estabelecer princípios espirituais.
O termo imitação tem sido compreendido como pejorativo. Dificilmente alguém aprecia essa palavra quando a si aplicada, mas a história tem evidenciado que os acúmulos do conhecimento se baseiam em algo já pensado. Dir-se-ia que um degrau a mais no longo caminho em direção ao desvelamento.
Se observarmos os movimentos artísticos – pintura, escultura, música, teatro, literatura – e, mais recentemente, o cinema, poderemos sentir com clareza, através dos séculos, aquisições que paulatinamente estariam a configurar novas técnicas relacionadas às artes, mas que sofreram influências do passado.
Parte-se sempre da aquisição daqueles que permaneceram pela qualidade, referências paradigmáticas, estabelecendo-se então princípios orientativos para o aprimoramento. Legião de aprendizes dirigem-se diariamente aos museus ou às escolas especializadas e retratam o que foi realizado e que perdurou, assim como modelos ao vivo. Escultura, pintura e desenho estimulam essa possibilidade do vir a ser. Busca-se, através da imitação, chegar ao conhecimento das técnicas elementares às apuradas, que servirão no futuro, se qualidade houver, à própria criatividade daquele que está, de certa forma, a imitar ou a reproduzir gestos e traços.
Na Música, o termo Imitação é utilizado quando frase anteriormente exposta é novamente apresentada, alterada ou não, em outro segmento da textura musical. Essa característica repetitiva poderá obedecer a inúmeros critérios na organização da obra. Sob outra égide, as técnicas das escolas de composição não estariam a estabecer a constante presença de alicerces seguros que demonstram origens? Para a interpretação, que maior modelo para um estudante do que ouvir os grandes mestres?
Não reconhecer que ideias foram extraídas de acertos seria falta de modéstia. Quando o ilustre compositor Francisco Mignone (1897-1986) escreveu A Parte do Anjo – Autocrítica de um Cinquentenário (São Paulo, E.S.Mangione,1947), teceria considerações sinceras e sem preconceitos a respeito do plágio. Em sendo o aproveitamento de “elementos fecundos da criação alheia”, considera que “Ninguém é inteiramente pessoal. O que devo é organizar essa faculdade de maneira a me aproveitar do alheio”. Observa: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio”. Menciona poeta paulista: “Guilherme de Almeida plagiou descaradamente Pierre Loüys, mas conseguiu fazer as admiráveis Canções Gregas”. A acompanhar a História: “Foi a tempestade de Ulisses, em Homero, que deu a tempestade de Virgílio, e esta deu a tempestade de Camões. São tempestades idênticas, e no entanto… são três tempestades!” Enumera compositores que permaneceram na história como tendo recorrido às aquisições de seus ascendentes: “deixar de bobagens e de pruridos de ser original. Originalidade está na lógica da criação e si Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet!), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma terça parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola!” Explicaria essa atitude a adesão a preceitos europeus no quesito composição. Fá-lo conscientemente, mas se fosse criticado e “si os outros disserem que estou imitando, si disserem que a minha invenção melódica é banal, que estou mostrando o meu rabinho italiano em meu brilho e violência apaixonadas, mandarei todos àquela parte”. As convicções de Francisco Mignone permaneceram ao longo das décadas. Cerca de um ano antes de sua morte, ocorrida em 1986, escreveu-me carta a ratificar convicções: “Junto vai a ‘Parte do Anjo’. Você vai encontrar a minha maneira de ser como artista. Continuo e permaneço sempre o mesmo!”
O notável escritor português Miguel Torga (1907-1995) teria compreendido a proximidade entre imitação e acúmulo, a resultar no próprio estilo de um autor. Em palestra, explicaria: “Acham que é possível ser um espontâneo, saltar para dentro da arena literária e fazer uma obra assim de qualquer maneira? Quando um escritor escreve uma coisa significativa, fá-lo tendo em conta toda uma legião de escritores que o precederam. Numa literatura como a portuguesa, que tem 700 anos de idade, não acham que essa herança é uma carga muito pesada? Acham que é possível escrever sem saber o que escreveram todos os antepassados da língua? Sem fazer um esforço prévio?” Em termos literários, como musicais, ter conhecimento intenso do que foi escrito ou composto, apenas dará consistência à obra. Desse entendimento poderão eventualmente advir proximidades que levem à imitação, realizada conscientemente ou não.
Mario Lavista (1943- ), notável compositor mexicano, tem precisão quanto às influências sobre sua obra. Em entrevista a mim concedida em Julho de 1989 e publicada um ano após na Revista Música da USP, observou: “Eu estou convencido de que elegemos nossos antecessores e quais são nossos avós. Eu elegi Mozart e Debussy como meus antepassados, mas essa escolha não foi sempre imutável. Há muitos anos, Webern foi meu antecessor; num futuro próximo, poderei eleger um outro”.
Influências notórias encontramos em basicamente a totalidade da criação humana. Faz parte da trajetória do homem. Desde os genes contidos no útero materno até a morte, estamos sempre a receber impactos que têm peso decisivo em nossa conduta. A imitação bem administrada e “autêntica” também integra esses acervos. Não seria a tradição dos povos Culturas sobrepostas? Religião, costume, língua não subsistem pela traditio e pela repetição? Quando os cravistas em França nos séculos XVII e XVIII e Olivier Messiaen (1908-1992) evocam o onomatopaico, não buscam, através da douta escrita musical, reproduzir o canto dos pássaros e das aves? Em La Poule (1728), Jean-Philippe Rameau (1683-1764) chega a escrever na partitura as hipotéticas sílabas da galinha. Em toda a história da música há exemplos desse emprestar da natureza sons e ruídos que lhe são característicos. Cachoeiras, relâmpagos, trovões, sem contar os emitidos em batalhas, evocação de instrumentos vários, até a eclosão do romantismo, sob égide outra, a clamar o sentimento humano como expressão maior.

Jean-Philippe Rameau. La Poule (1728), primeiros compassos. Clique para ampliar.

Clique aqui para ouvir La Poule, de Jean-Philippe Rameau, com J.E.M. ao piano

Autores se inspiraram em temas consagrados como citação e tem-se uma profusão dessas menções. Possivelmente, o antológico Dies Irae tenha sido um dos mais citados na história. Mozart, Verdi, Berlioz, Liszt, Saint-Saëns, entre tantos, utilizaram-se desse tema em obras específicas. Imitação? Talvez não. Citação sim, e clima outro para estruturas reinventadas a partir desse hino medieval.
Volta-me a ideia de carros antigos fotografados. Nos primeiros registros do início do século XX, poucas marcas, mas formatos bem próximos, independentemente da soberana cor preta. Hoje, muitas marcas, uma certa tendência para o cinza e grande semelhança nas linhas. Ou seja, nada mudou quanto ao conceito. Aperfeiçoamentos de montadoras “copiados” para modelos de concorrentes. Contudo, nega-se sempre a origem a motivar o plágio, e a propaganda, como assaz acontece, ajuda a vender a “originalidade absoluta”, mesmo que seja a partir do pormenor. E todos parecem satisfeitos nessa parafernália. As diferentes emissoras de rádio insistem, cada uma à sua maneira, mas com incrível dose imitativa, que os seus comentaristas são os melhores do Brasil; antigripais de tantos fabricantes proclamam seus remédios como os únicos que liquidam a gripe. É só ler a bula e verificamos a identidade dos princípios ativos. Sob contexto próximo, igualdade absoluta nos propósitos, repetições flagrantes para o ouvinte. Anátema dos poderosos à palavra imitação, apesar de ser ela tão evidente. Aceitá-la com naturalidade seria prova de grandeza dessas empresas, impedidas de acatá-la por motivos unicamente voltados à necessidade de demonstrar primazia. Nas artes seria plausível acreditar que majoritariamente artistas e artesãos não negam ascendendências transparentes. Tornar-se-ia evidente que o curso do rio continua e que as águas que retornam às suas cabeceiras fazem parte do ciclo da natureza. Ciclo do homem, sempre a renovar a partir de ensinamentos do passado.

Watching cars going to and fro at a parking lot, I observed once more how similar to one another they all look, differing only in details. The industrial design of one is blatantly copied by another, though automakers vehemently deny it. This was the starting point of a reflection on mimesis or imitation, a word in general considered pejorative. However, history shows that in any field of knowledge – when talent exists – pre-existent models function simply as starting points for innovative ideas of one’s own making.

Generosidade dos Leitores

Generoso desenho de Luca Vitali após recital privado. Fevereiro 2009. Clique para ampliar.

O que ganhamos viajando até a Lua,
se não podemos cruzar o abismo que nos separa de nós mesmos?
Essa é a mais importante de todas as viagens de descobrimento,
e sem ela todo o resto é não apenas inútil, mas desastroso.

Thomas Merton

Uma mudança de significado é necessária
para transformar este mundo política, econômica e socialmente.
Mas essa mudança deve começar no indivíduo,
esse significado deve mudar para ele…
se o significado é uma parte vital da realidade,
então, uma vez que a sociedade,
o indivíduo e as relações sejam vistos
como alguma coisa diferente,
uma mudança fundamental ocorrerá.

David Bohm

Atingimos essa cifra após dois anos e meio de posts publicados semanalmente de maneira ininterrupta, sem qualquer publicidade, sem a menor ventilação fora do próprio veículo de comunicação de que disponho. Houve aproximações para abertura a determinadas propagandas, mas preferi manter-me fiel aos propósitos eleitos, pois poderia haver cobranças ou pressões mercê de patrocínio. A independência do pensar pode levar a equívocos, mas está a traduzir a nossa pulsação sem qualquer aparelho controlador. Dependerá de quem escreve essa auto-avaliação que tantas vezes é repartida, pré-blog, com amigos que comungam ideias afins. Em textos espalhados nesse período frisei que reflexões costumam aflorar a partir de fatos os mais variados. A temática surge sem qualquer esforço devido aos impactos de toda ordem. A simples observação do cotidiano, as impressões sempre enriquecedoras das viagens, as leituras permanentes e a música, que é a própria respiração, estão a me servir, perenemente, como fontes inspiradoras.
Meu saudoso pai dizia que, sem um método preciso, dificilmente o homem atinge objetivos. Dizia mais, a complementar que disciplina, concentração, vontade e, de preferência, amor ao que se faz derrubam barreiras. Quando Magnus, meu antigo aluno e amigo sincero, sugeriu a criação do blog, relutei com certa firmeza. Entendia Magnus que temas tratados através do diálogo deveriam ser repartidos com potenciais leitores. Montou tecnicamente o blog, sem o meu aval, a dizer “ele está à sua disposição, é só começar a escrever”. Foi aos 2 de Março de 2007 que surgiu o primeiro post inserido no blog. Não houve até o presente uma semana a falhar, e o texto entra durante todas as madrugadas dos sábados. Uma amiga perguntou-me se eu não me dava férias quanto aos posts. Disse-lhe que se textos acadêmicos para o Exterior fluem periodicamente, mas sem previsão, o post para o blog e a música são respirações. Sem eles, o coração deixaria de bater. Trégua para o respirar? É curioso que, a partir do post inicial, pouco a pouco, assim como acontece com a música, o blog integrou decididamente meu batimento cardíaco. Confesso ao leitor que em geral os temas e as ideias para os textos surgem durante as corridas que realizo pelas ruas de minha cidade-bairro três vezes por semana. Diria que as passadas e a cadência respiratória avivam ideias tantas vezes retidas e conservadas numa espécie de baú mental, sendo que tantas outras nascem das leituras, do olhar o cotidiano, das viagens que permanecem.

Corrida Corpore 10km, 23/08/09, tempo 1:11:26. Foto Daniel Martins da Treinoonline. Clique para ampliar.

A depender do tema, o vernáculo pode sofrer adaptações. O cotidiano é sempre mais informal, contrapondo-se às resenhas ou aos comentários de livros, que fazem parte de meu outro cotidiano. Cada livro eleito para a leitura representa a visita a um universo desconhecido. É uma das dádivas da civilização. Tecer considerações sobre esses caminhos que os olhos percorrem e a mente absorve dá-me profundo prazer.
A leitura que fazemos do cotidiano não frequentado pela mídia não seria uma outra forma de prospecção? A escrever sobre personagens que eclodem panfletariamente nos meios de comunicação, prefiro retratar com palavras experiências sensíveis que Pedro o andarilho, Sisuphos, os moços do supermercado e da feira-livre, o velho e atencioso amolador Constantino, Carlinhos da pequena loja de produtos de limpeza, os músicos da calçada, o jornaleiro proporcionam-me a cada momento. São eles parte de meu olhar que pulsa nessa comunhão com essa gente humilde, digna, trabalhadora ou, nos tristes casos de Pedro e Sisuphos, abandonados pela sociedade. Os retratos da escrita, quando nesse segmento ignoto para a mídia, despertam a sensibilidade de Luca Vitali, artista que pratica o ato de comunhão em arte, depois do olhar o cotidiano que a maioria teima em não ver, e espontaneamente, sem eu nada dizer, ouve a leitura que gosto de fazer de determinados textos – pré-edição no blog -, capta a mensagem, traduzindo-a em poesia do traço. Flui a criação com a naturalidade dos grandes. Quando o desenho tende à “fotografia” poética, é Maria Fernanda que traduz determinado contexto com rara sensibilidade. Minha mulher Regina e Magnus permanecem ouvintes sensíveis dos textos em fase final que, a seguir, generosamente têm o crivo de Regina Pitta, revisora atenta e autora dos abstracts. O compositor Henrique Oswald já dizia que o pior revisor é o autor e complementava que se incluía entre os piores. Se de um lado há esse pré-conhecimento dos posts por alguns, como não ficar sensibilizado com leitores assíduos, alguns deles escrevendo-me semanalmente sobre temas lidos e as inserções dos conteúdos em suas vidas. A partir dessa espontânea comunicação, exemplos têm-me enriquecido e estimulado a prosseguir. De Portugal e de vários rincões de nosso país escrevem-me e as experiências trocadas são outra categoria do pulsar irmanado.
As viagens têm sido o registro de outros cotidianos, das paisagens e construções que cá não temos e do convívio humano. No fundo somos todos iguais e os sentimentos de amor, de amizade permanecem semelhantes, aqui ou alhures. A visão frente à vida pode diferenciar-nos, pois sofremos de problemas endêmicos devido ao descaso do Estado nesse nosso país eternamente deitado. Em que berço?
A aposentadoria da USP permitiu-me a liberdade da escrita informal, longe do rigorismo tantas vezes inócuo ou dos malefícios da pseudo-erudição evidentes em inúmeros textos acadêmicos (vide “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 21/03/09). A crítica à universidade pública brasileira, contida nas entrelinhas de textos espalhados pelo blog, na realidade é a denúncia ao que de nocivo está a acontecer em nossa educação e nas benesses precisas a tantos projetos estranhos. Que desestimula o ensino público básico e médio e que repercute no ensino superior, não há dúvidas. O tempo evidenciará o capitis diminutio que está a ocorrer na área da educação em todos os níveis, mercê do quantitativo sem estrutura em detrimento da qualidade seletiva.
A Música tem sido tema constante. Basta uma ideia surgir, ou receber a sugestão de um leitor atencioso, para que pouco a pouco determinado assunto comece a germinar. Os e-mails recebidos vêm através do endereço contido no contact do site. Costumo respondê-los, e diálogos extremamente interessantes têm estimulado o pensar. Procuro contudo adaptar as indagações e interesses dos leitores àquilo que me é caro na Música, a sua própria essência a partir da interpretação. A busca eterna pela consideração ao estilo do compositor e todas as decorrências que dele advém.
Personalidades que me foram caras, mestres não esquecidos, amigos que passaram para a outra margem, deixando exemplos de afeto, são temas que, por vezes, abordamos contristados. Revelam que convívios permanecem e que a gratidão por tê-los conhecido deságua no mínimo em forma de tributo que jorra sincero.
A montanha. Os Himalaias que me levaram às leituras das aventuras e do pensamento místico da região. Católico, não dispenso penetrar minimamente nesse pensar puro e elevado de alguns iluminados mestres tibetanos. Há tantas concordâncias com o cristianismo. Leigo no budismo, os textos tibetanos, a revelar a inclinação do homem em direção ao aperfeiçoamento individual e dele à compaixão que pode advir, seriam uma visão bem próxima aos ensinamentos que me foram transmitidos durante a trajetória. Ajudam a melhor compreender o homem na procura da plena humanidade. Utopia, talvez, mas vale acreditar.
Dileto amigo ponderou que deveria escrever sobre o que acontece na política brasileira. Sou um a integrar muitos milhões de descontentes com o que acontece nos três poderes desse país. Contudo, há especialistas que diuturnamente proclamam a vergonhosa situação a que chegaram as classes políticas e empresariais, umbilicalmente ligadas em tantas escandalosas oportunidades, quando interesses estranhos se apresentam. Escrever sobre esses tristes episódios? Qual seria a razão, se tantos outros com autêntica competência o fazem? Portanto, não será esse pantanoso terreno aquele em que ousaria colocar opinião pessoal, um mínimo post sequer. Certo dia, conversando com respeitado cientista político, dizia-me ele que a cada artigo que fluía de sua mente a respeito da realidade político-empresarial do Brasil, e destinado a determinado veículo de comunicação, seu batimento cardíaco chegava às alturas e a sensação de fel que sentia após redigi-lo atestava o descontentamento. Não que me queira furtar, mas são tantos a denunciar, tão cristalina a verdade ! Contudo, a impunidade, mãe de tantos vícios, chaga a sol aberto nessas terras tropicais, está sempre a apontar para o desvario e o surrealismo absoluto dos quais somos observadores sem a menor possibilidade de reação, pois as máquinas dos compadrios estão instaladas. Se o fugir à verdade é soberano nessa triste realidade brasileira, com o beneplácito dos três poderes, nada a fazer, a não ser protestar, sabendo que ouvidos e olhos bem tampados – estes sim, definitivamente vendados à justiça – descartam por parte da “trindade” o encontro com a realidade gritante das ruas.
Persisto. Até quando, não sei. Os posts continuarão a fluir, livros vão sendo penetrados com prazer acentuado, o cotidiano é sempre surpreendente e a música permanece intacta. Entre suas dádivas, está a de me fazer conhecer repertórios sempre renovados, sons inefáveis, raças e regiões. A geografia e o contato humano no Exterior possibilitaram a extensão sonora, e cada centímetro percorrido e um novo encontro calam fundo em meu coração. As corridas pelas ruas e em provas que me são caras, pela proximidade com a gente saudável e feliz, têm-me, como acréscimo, melhorado o desempenho físico. E por fim, a família. Sem a compreensão dessa âncora, que atenua turbulências, não estaríamos possivelmente à deriva? Complementando meu post inicial de 2 de Março de 2007, continuemos cúmplices. A guarida do querido leitor é chama que não se apaga, e o seu contato, mesmo que distante, faz-me ainda mais refletir sobre o grande mistério, a existência.

This week the number of visitors to my blog reached 50.000. I would like to take this time for a few words of gratitude to those who, working behind the stage, help me keep the blog and also to recollect the subjects that are dearest to me: music, books, travels, family, friends, the man in the street.