Em Torno de um Cinquentenário


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Tempos que mudam. Ainda bem.
Mas que isso não signifique a extinção de valores que,
por insignificantes que possam parecer,
não deixam de ser patrimônio
e fazer parte da história de cada gente,
de cada terra.

Sérgio Sá (Memórias de uma Aldeia)

A nova travessia do Atlântico atendeu a um apelo interior. No mais recôndito do de profundis, tem significado especial a 43º visita a Portugal. Sempre asseverei que não faço diferença entre Brasil e Portugal. Aprendi a amá-los, nesse amálgama, desde a tenra infância.
Apresentações fazem parte da trajetória de um intérprete. Todavia, quando integrantes de rememoração expressiva, revestem-se de outra aura. Anteriormente já comemorara o cinquentenário de meu relacionamento com a música portuguesa (vide site, item Essays, A Relação de Meio Século com a Música e Músicos de Portugal, 2006). O regresso à terra paterna apreende um sentimento de inefabilidade, nessa lembrança que se faz de meu primeiro recital em terras portuguesas, no distante 1959. Gerações de músicos que conheci em Portugal, alguns desaparecidos, dão-me a certeza da extraordinária pujança da criação composicional do país, comparável ao que de melhor existe em outros economicamente mais pujantes na Europa. Economia gera mercado, fortalece laços de intercâmbio e compositores de países ao norte e os latinos a leste de Portugal foram contemplados com maior divulgação. Isso é fato.
Recitais estão a me esperar nesta tournée afetiva, que se estende do Minho ao Algarve. Tendo selecionado autores portugueses da maior importância, do barroco à contemporaneidade, para as apresentações, incluí obra basilar na criação de Fernando Lopes-Graça. Interpretá-la na integralidade, em apresentação que está a apontar para pequena panorâmica da música portuguesa para piano, não se mostrava possível. Daí ter colocado algumas das peças de Cosmorame, coletânea composta em 1963. O caderno será tema de um futuro post, quando de meu regresso à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo.
Para a programação que inicio neste Maio, a partir de Tomar, a cidade dos templários, berço que viu nascer Lopes-Graça, incluí um texto explicativo. Inseri-lo no blog pode bem dar a visão do que se deve passar nesta tournée por solo lusíada.

“A convite do grande compositor Fernando Lopes-Graça, dei meu primeiro recital em Portugal no dia 14 de Julho de 1959, na velha e tradicional Academia de Amadores de Música em Lisboa. O fato de pensar nessa data comemorativa fez-me organizar um programa inteiramente dedicado à música portuguesa para piano, do barroco à contemporaneidade, exceções às três peças de compositores brasileiros que homenageiam Portugal.
Alguns dos autores constantes do programa foram, ao longo das décadas, temas para aprofundamento, resultando na gravação de CDs lançados na Bélgica e Estados Unidos, exceção àquele tributário a Lopes-Graça. Dos três CDs belgas produzidos pelo selo De Rode Pomp, primeiramente mencionaria: Francisco De Lacerda/Claude Debussy, a contemplar obras dos dois compositores e amigos (Gents Muzikaal Archief, Vol 5, 1999), e o álbum duplo contendo 23 Sonatas para tecla de Carlos Seixas (Gents Muzikaal Archief, Vol 22, 2004). Vilalbarosa, de Jorge Peixinho, está incluída no CD Tribute of Villa-Lobos gravado em Sófia, mas lançado nos Estados Unidos (Labor, Vol 1, 2001). O CD Viagens na Minha Terra, inteiramente dedicado às obras de Fernando Lopes-Graça, teve seu lançamento em 2004 pelo selo Portugaler.
Carlos Seixas (1704-1742), o notável conimbricense, está representado por duas Sonatas significativas, rigorosamente contrastantes. Dos compositores portugueses constantes no programa, tardiamente conheci algumas obras de António Fragoso (1897-1918) e Óscar da Silva (1870-1958). O primeiro morreu precocemente, mas nas poucas peças deixadas pode-se bem aquilatar o talento sensível, a qualidade da escrita musical e a apreensão de conteúdos de outros autores europeus coetâneos. Óscar da Silva, compositor e exímio pianista, legou uma produção onde não falta o apelo à virtuosidade. O seu idiomático técnico-pianístico estaria a atender às suas mãos, naturalmente possuidoras de grande abertura. Extraídas das Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, as dez miniaturas de Francisco de Lacerda (1869-1934) revelam a maestria do compositor açoriano que manteve diálogo com Claude Debussy e outras figuras ilustres de sua época. Cosmorame (1963), de Fernando Lopes-Graça (1906-1994), é obra referencial do autor, por ele considerada como um “gesto de amor”. Da coletânea, constituída de 21 peças, estarei a apresentar 10, reservando a integral para conferência-recital que apresentarei em três universidades portuguesas no atual período. Jorge Peixinho (1940-1995) e Clotilde Rosa (1930- ) escreveram Estudos para piano para um projeto que iniciei em 1985 – temos até o presente setenta e tais Estudos, compostos por importantes compositores de muitos países -, visando a uma panorâmica do técnico-pianístico na passagem dos séculos XX-XXI. No livro Jorge Peixinho- In Memorian (Lisboa, Caminho, 2002, págs. 203-222), o compositor nascido em Montijo analisa pormenorizadamente o Estudo V Die Reihe-Courante, constante do programa, onde não falta a herança de Darmstadt. Escreve Peixinho: “O Estudo V pretende ser uma reflexão sobre o profundo significado histórico e mítico da série, a série reificada e simbólica; uma visão crítica dos seus pressupostos teóricos e filosóficos e, ao mesmo tempo, uma homenagem (comovida) ao papel histórico propulsor da modernidade neste vertiginoso caminhar da música no século XX.” A peça de Filipe Pires (1934- ), Jorge Peixinho interpretou-a durante nossa tournée no Brasil em 1994, onde realizamos cinco apresentações, unicamente com a produção contemporânea portuguesa. Ofereceu-me uma cópia de Figurações II, indicando-me intenções quanto à execução da obra.
Em 1979, solicitei ao importante compositor brasileiro Francisco Mignone (1897-1986) uma criação dedicada a Portugal. Surgiria Adamastor – O Gigante da Tempestade, tendo como inspiração o relato de Camões. Quando do centenário de nascimento de Lopes-Graça, pedi a Ricardo Tacuchian (1939- ) uma homenagem ao mestre de Tomar. In Memorian Lopes-Graça é o tributo do excelente compositor nascido no Rio de Janeiro e que mantém permanente contacto com Portugal. A peça de Gilberto Mendes (1922- ), quase por unanimidade o mais importante compositor vivo do Brasil, nasceu de uma conversa informal. Quis participar dessa efeméride comemorativa de meu cinquentenário em terras portuguesas. Como estávamos a falar do fado e de sua abrangência, surgiria Largo do Chiado, onde não falta alusão a A Severa.
A relação com Portugal foi, é e continuará a ser afetiva, das entranhas. Privar da amizade de competentes e ilustres figuras da vida musical portuguesa, algumas já desaparecidas, é privilégio, uma grande dádiva.”

Durante a viagem, estarei a enviar posts mais curtos, devido à agenda plena e ao acesso à internet, nem sempre disponível. Fica meu perene agradecimento a Magnus Bardela e a Regina Maria Pitta que, em São Paulo, estarão a cuidar da inserção de texto, abstract e imagens enviados deste lado do Atlântico, assim como ao Banco Banif do Brasil que teve a sensibilidade de entender uma efeméride que me é tão profundamente expressiva, através de seu prestigioso apoio cultural.