A Música Destinada às Empatias
La musique de Fauré, comme la pudeur elle-même,
est une espèce de secret:
elle décourage les lourdauds, les frivoles et les touristes,
mais elle parle tout bas à l’oreille de ceux qui méritent d’entendre.
Vladimir Jankélévitch
Muda o registo, eis uma barcarola:
Lírios, lírios, águas do rio, a lua…
Camilo Pessanha
Durante meu recital em Gent, num gélido 14 de Fevereiro, foi lançado pelo selo De Rode Pomp o CD contendo unicamente obras para piano de Gabriel Fauré. Gravei-o em 2008. Fauré, o menos tocado dos três grandes compositores franceses do período – Claude Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937) – é pouquíssimo frequentado pelos pianistas. De sua obra pianística, o público conhece um ou dois Impromptus ou dois ou três Nocturnes. E é só. Essa lamentável situação deve-se a fatores vários: a não existência, em sua opera omnia para o instrumento, de coletâneas compactas encontráveis em Debussy e Ravel, exceção aos Neuf Préludes op. 103 ou as Pièces Brèves op. 84. Se a Ballade op. 19 para piano solo é mais conhecida em sua versão com orquestra e o Thème et Variations op. 73 tem longa duração, nem por isso entram em programas como obras de résistance, o que estaria a evidenciar um equívoco. Sob outra égide, os empresários não estimulam a introdução de Fauré nos repertórios por motivos relativos à existência de grandes ciclos na obra do compositor, mas percorrendo décadas de criação. São os casos dos 13 Nocturnes e das 13 Barcarolles, escritos respectivamentes entre 1883-1922 e 1881-1922 assim como dos 5 Impromptus, que surgiram de 1881 a 1909. Essa descontinuidade teria sido uma das razões a rotular Fauré como autor de pequenas peças. Ledo engano perpetrou-se e a obra do ilustre compositor permanece pouco tocada.
Há que se considerar uma característica essencial na produção de Gabriel Fauré. Vive o período romântico da segunda metade do século XIX e dos primeiros decênios do XX, quando já se faziam sentir as várias tendências levando a tonalidade ao impasse. Procedimentos novos se instalam. Sob outro aspecto, convive com autores que tinham em mente a renovação sonora. Fauré, sem aderir aos novos anseios e tampouco tendo como meta caminhos timbrísticos específicos, mantem-se fiel aos seus princípios. Escreveria à sua mulher aos 23 de Agosto de 1904: “Como é difícil fazer boa música que não deve nada a ninguém, mas que possa interessar algumas pessoas”. Torna-se axiomática essa assertiva, pois o romantismo faureano não busca jamais o grandiloquente. Há algo velado, contido, intenso, pressionado, mas de fina elegância. Música do inefável. Realmente a interessar não à multidão, mas parcela de ouvintes. Paradoxalmente, o “som” em sua obra é único.
A renovação faureana estaria expressa na condução de sua escrita voltada à intensa trama polifônica, pois o autor em tantas obras apresenta o discurso musical nesse sentido horizontal, onde as linhas têm o seu caminhar inusitado. Talvez o fato de ser ambidestro tenha conferido à sua escrita pianística dificuldades análogas para ambas as mãos. No CD em pauta, a extraordinária Ballade op. 19, infelizmente pouco tocada em sua versão original para piano solo, é um exemplo claro, assim como o monumental 6º Nocturne ou o 4º Impromptu.
Sob o aspecto da interpretação, acredito ser Fauré um dos compositores mais complexos. Poder-se-ia dizer que há uma sonoridade faureana. Ela estará a serviço dos temas longos e generosos, da polifonia singular, dos contrastes dinâmicos tantas vezes abruptos, da agógica sensível, de uma técnica apurada quanto ao emprego dos pedais.
A minha relação com a obra para piano de Gabriel Fauré vem da adolescência. Quando meu pai fez-nos ouvir um LP com os Nocturnes do compositor, fiquei subjugado, tamanha foi a penetração daqueles sons etéreos em meus ouvidos. Ao estudar durante quatro anos em Paris com Marguerite Long, ratifiquei preferências. Mme Long criara a Ballade op 19 em sua versão para piano e orquestra, e a ela Gabriel Fauré dedicou o 4º Impromptu. No meu de profundis, sinto a pressão dos dedos da ilustre pianista e professora sobre meus ombros quando tocava em sala de aula o 4º Nocturne, dizendo-me: “C’est comme ça”, a querer transmitir herança recebida do mestre.
Do novo CD da Rode Pomp constam: Ballade op. 19, Thème et Variations op. 73, Nocturnes 4 e 6, os cinco Impromptus (integral) e a 12ª Barcarolle.
Abrir as portas da imaginação, estar propenso a entender esse romantismo velado, mas não alheio à intensa emoção, deixar-se penetrar por esses sons mágicos são tópicos que podem propiciar ao coração transferir à razão sentimentos destinados a “poucas pessoas”. É só estar propenso ao entendimento.
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