Retornar à Região Flamenga
Vi-me no cimo eterno da montanha,
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.
Alphonsus de Guimaraens
Regressar a Flandres sempre me traz recordações e o prazer de novo descortino. Neste sábado, pela 21ª vez retorno à região e jamais houve a sensação da rotina. Há surpresas em todos os sentidos: o pulsar musical de altíssimo batimento; esse território pequeno, mas pleno de pujança cultural e de vida; as figuras humanas de traços marcantes e convívio intenso, desde que sejamos aceitos; o céu preferencialmente plúmbeo, mormente no inverno, que está rigorosíssimo nessa temporada; a arquitetura única. Todos são aspectos que me impulsionam à travessia.
Neste ano, Antuérpia e Gent, duas cidades encravadas no solo flamengo. Recitais que privilegiarão Francisco de Lacerda, o notável compositor português nascido nos Açores, Claude Debussy, Robert Schumann e P.I. Tchaikowsky. Aos setenta anos, tenho revisitado programas que me foram muito caros nas primeiras décadas da atividade pianística. Esse novo olhar desperta-me uma sensação inusitada. Se continuo a incorporar anualmente obras novas, contudo as revisitações tardias fazem-me lembrar o grande compositor norueguês Edvard Grieg (1843-1907), que compôs ao longo de sua trajetória a coletânea a reunir dez opus, as Peças Líricas. A primeira das 66 peças, uma Arieta do op. 12, é lindamente despojada em sua tonalidade de mi bemol maior, lírica e sem muitas alterações quanto à modulação. Quando encerra o ciclo com o op. 71, Lembranças (Efterklang), retoma o tema da primeira peça na mesma tonalidade, modula muito e o todo adequa-se à valsa, tempo di valse. Diria, bem nostálgica. Não seriam todas essas modulações somatória musical, consciente ou não, do grande compositor? Sob égides outras, não nos tornamos mais complacentes com a idade? O estreitamento do tempo da existência não nos daria essa possibilidade quase contemplativa em relação aos nossos atos, sem porém danificar nossos anseios? No caso, não se tornaria mais etérea a nossa concepção relativa à interpretação musical? Não seria essa atitude uma salvaguarda da obra de arte em sua constante mutação hermenêutica, sem fugir, entretanto, à traditio, que prioritariamente deve ser nosso norte? Mas o homem é outro. As etapas, nessa trilha finita, podem ser dimensionadas através dos degraus vencidos. Um dos mistérios da vida. Apreender a existência como um constante aclive em direção ao hipotético aperfeiçoamento.
Atravessar o oceano faz-nos antecipar sensações novas. Cada viagem tem sua história. A rotina pode ser o trajeto tão somente, mas os momentos que estão por vir sempre são inesperados. Nessa época pode haver grandes nevascas e a planura flamenga, serena e sem ondulações, transforma-se num tapete branco. Se apenas chuva, o solo fica desolador em sua certeza gélida e empoçada. Para se entender a região flamenga é preciso insistir. Revisitá-la tantas vezes dá-me uma infinitesimal parcela de sua sabedoria. A Flandres contagia. Sei que atravessar o oceano em direção às terras baixas já faz parte de minha vida. O contato com tantos que prezo já de per si enche-me de expectativas. E o abraço será o sinal de reencontro. Pulsa mais forte o coração.
This week I travel to Belgium for recitals in Gent and Antwerp and the release of my new CD, with works by the French composer Gabriel Fauré (1845-1924), one of the foremost musicians of his generation. I’m always delighted to be back in Gent. The place fascinates me with its many faces: Medieval on one side – with ancient churches, narrow streets, canals and rivers – and modern and cosmopolitan on the other. The next two post will be written there. I’m sure the city will provide me with inspiration for them.
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