Origens e Trajetória

Silêncio! Guitarra minha,
Deixa ouvir, deixa cantar,
À branda luz do luar
A virgem que adoro e sigo.
Rumores que ides passando
Pelos roseirais em flor,
Vinde ouvir o meu amor.
Sonhando amores comigo.

Simões Dias

O Fado, como expressão significativa da alma portuguesa, tem sido objeto de estudos os mais diversos quanto à qualidade de aprofundamento. É menos provável a penetração, por musicólogos ligados à universidade em Portugal, na temática que tanto revela conteúdos da raça. Explica o fato a abundante ocorrência, em terras lusitanas, da manifestação da música denominada culta ou erudita, a levar quantidade apreciável de estudiosos a se debruçar sobre uma rica informação que se estende basicamente da Idade Média aos nossos dias.
Quando um musicólogo da dimensão de Rui Vieira Nery detém-se na temática do Fado, está-se diante da avaliação competente, do levantamento histórico-musical pormenorizado e do olhar crítico insofismável. Vieira Nery tem oferecido preciosos contributos à comunidade internacional, revelando e divulgando compositores eruditos conhecidos ou não, e até mesmo anônimos que produziram em Portugal criações à altura do que se conhece em outros países da Europa, assim como observando conteúdos sociais pertinentes à Música como um todo. Escreveu mais recentemente um livro da maior importância para as culturas de nossos dias (Vieira Nery, Rui. Para uma História do Fado. Portugal, Público-Corda Seca, 2004, 301 págs.) A precedê-lo, cuidou da elaboração de 19 textos da preciosa coletânea de 20 CDs publicada pelo diário o Público, penetrando no âmago da imagem sonora do universo do fado desde as origens gravadas (“O Fado do Público”. Lisboa, Público e Corda Seca, 20 CDs, 2004). Essa enciclopédia fadista, que teve publicação hebdomadária, levaria Vieira Nery à precisa sistematização que o tempo estreito exigia. O amálgama foi absoluto. A audição de fados registrados fonograficamente e textos lúcidos do musicólogo estabeleceram a ponte necessária a ser transposta, a fim de que a obra literário-musical a seguir adquirisse o sentido de abrangência, a atender às expectativas do leigo e daqueles que captam de maneira mais contundente a linguagem musical e literária do Fado. A revisão dos textos que acompanham os CDs levou à ampliação da pesquisa sob todos os fundamentos, a tornar Para uma História do Fado em seu formato livro, um marco nesse aprofundamento que se faz necessário em torno do Fado. Este – apesar de mutações naturais – traduz expressões da alma de um povo, genuinamente autênticas, resultando em salvaguarda para o estabelecimento de critérios alentadores.

O caminho escolhido por Vieira Nery tem o olhar acadêmico, sem contudo apresentar as armadilhas de um texto da Academia, invariavelmente freqüentado por aqueles que a ela pertencem. Sem as regras que regem artigos e teses universitárias, dificilmente um candidato encontra o norte representado pela aceitação. Estar na Universidade de Évora e dela ser um expoente, mas entender a amplitude de um tema que, aceito na Instituição, tem, no caso de Para uma História do Fado, destinação mais ampla, é tarefa árdua, a transparecer, paradoxalmente, leveza, conteúdo e esclarecimentos, muitos deles definitivos.
O livro está dividido em sete capítulos. Neles, o autor, a partir daquilo que afirma no prefácio, como o estar ciente da “consciência tranqüila no plano do rigor de fundamentação bibliográfica e documental”, estabelece das origens à contemporaneidade a trajetória do fado. Curiosamente, data de 1822 a primeira menção à palavra Fado com conotação musical, escrita por um geógrafo italiano, Adriano Balbi, que a ele se refere como uma das danças populares “mais comuns e notáveis do Brasil”. Alguns anos após, um capitão francês faria menção à dança em terras brasileiras. Poder-se-ia dizer que os capítulos da obra não sofrem descontinuidade e os aspectos fulcrais referentes ao Fado lá estão inseridos, estrategicamente articulados num sentido harmonioso. Lê-se a importância das danças afro-brasileiras, a penetração do Fado na capital portuguesa, todas as muitas transformações que sofreria o gênero, tanto sob o aspecto da própria estrutura como das ingerências políticas. Vieira Nery percorre o roteiro do Fado, suas “mutações” através da história, dos meios menos cultos ao Teatro de Revista, assim como a prática futura nas casas típicas onde pode ser ouvido. O autor acompanha a recepção pelos meios de divulgação, desde os primórdios. Quanto ao Teatro de Revista, aponta os direcionamentos, a eclosão do Fado em palco com rica coreografia, onde não faltam bailarinos, guitarristas e outros músicos. Pormenoriza também o Fado no cinema e sua aceitação.
Ao longo desse entrelaçamento nos capítulos, ressalte-se a intrigante associação, ou contágio, poder-se-ia acrescentar, das manifestações ideológicas, do olhar atento do Estado frente ao conteúdo das letras. Frise-se que Salazar teria confidenciado ser o Fado deprimente. Após o 25 de Abril de 1974, ideologias diferenciadas e efervescentes têm atuação no gênero como um todo, até o denominado “Novo Fado”. Em sendo o Fado uma categoria musical em que a letra é absolutamente entrelaçada à música, mesmo nos textos mais prosaicos, a possibilidade de mensagem que possa ferir susceptibilidades do establishment é enorme e tem seu preço a depender dos regimes.
Para uma História do Fado é farta e pertinentemente ilustrada. Poder-se-ia dizer que nenhuma das inúmeras ilustrações deixa de ter a sua importância. O olhar corrobora a absorção do discurso de Vieira Nery. O amálgama texto-iconografia encaminha o leitor a uma viagem ao universo do Fado. Frise-se a quantidade extraordinária de músicos e artistas outros que, na pena do autor, adquirem vida e estão a permear essa saga fadista, permanente libelo da alma portuguesa, tão rica em tantos outros gêneros musicais espalhados pelo território lusitano. A vasta bibliografia enriquece o conteúdo da obra, a indicar rumos aos interessados.
É significativa a dedicatória de Rui ao seu pai, Raul, “com carinho e admiração infinitos”. Grande guitarrista que é, transmitiu ao filho ilustre a relação amorosa com o Fado.

The fado is an essential part of the Portuguese soul. This music genre has been minutely and clearly explored in the book “Para uma História do Fado”, written by the musicologist Rui Vieira Nery: its origins, development, modern-day expressions, repertoire, performers, performance setting, influence of political ideologies. An indispensable reading for anyone with a true interest in the Portuguese Fado and its history.