Navegando Posts publicados em janeiro, 2008

Genro Exemplar

José Rinaldo - Desenho a lápis de Maria Fernanda Martins Rosella

Mon Dieu, vous l’avez voulu ainsi,
j’ai reconnu votre main.
J’ai cru la sentir sur mes lèvres.

Georges Bernanos

A vida salutar em família pressupõe entendimento, respeito e afeto entre os participantes. Poder-se-ia dizer que família unida é uma dádiva. Todos os membros seguem suas trajetórias, desenvolvem-se apreendendo todos os impactos da caminhada, assistem ao nascimento de outros entes, ajudando-os a entender o mundo, e encontram um dia o descanso final. Na grande maioria das vezes, seguimos o cortejo derradeiro de nossos ascendentes, conformando-nos com o destino, e aprendemos através de exemplos que tivemos o privilégio de presenciar. Alegrias e tristezas são divididas pelo clã, o que é salvaguarda da coexistência familiar.
Quando um ente querido parte prematuramente, a contrariar a lei natural, há sempre perplexidade. Se ancorado em solo seguro, onde a fé é fundamento, entende o clã como desígnio superior o acontecido. Em outra esfera, se aquele que nos deixa teve o dom da excepcionalidade moral e ética, dir-se-ia, um verdadeiro semeador, a partida é amenizada pelo exemplo. Budistas tibetanos entendem o desaparecimento daquele que só praticou o bem, como expurgo kármico, a levar o homem à compaixão como base para a eliminação dos ciclos da existência.
José Rinaldo Lazarini foi genro exemplar, portanto inesquecível. Estruturado em sólida formação cristã, católico de missa diária, foi filho, marido, genro, pai e amigo sem máculas. A tranqüila formação de berço em Batatais, onde seus pais apontavam-lhe as sendas da integridade do homem, apenas dimensionaria o aprofundamento individual futuro. Neste, todos os espaços foram preenchidos por visão que era motivo de admiração e respeito de todos que o cercavam.
Ao cursar a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (turma de 1987), conheceu nossa primeira filha Maria Beatriz, que comungava com ele princípios de vida. Do casamento, em 1990, nasceriam três de nossas netas. Rarissimamente conheci casal tão harmonioso, que entendia a vida sem choques, a resultar na mínima discórdia sequer.
Na vida profissional, José Rinaldo advogou, mas sua vocação mostrar-se-ia inequívoca, o magistério. Deu aulas em duas Instituições privadas, Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) até o peristilo da derradeira jornada e, durante certo período, nas Faculdades Oswaldo Cruz, a ser notória sua empatia com as sucessivas classes. Todos os anos era homenageado pelos formandos, resultado de ligação amorosa que mantinha com a função e com os alunos. A preparação das aulas traduzia-se na busca da mais aguda inteligibilidade, cercando-se de todas as informações jurídicas do passado e da atualidade que pudessem enriquecer ensinamentos a serem transmitidos aos alunos. Perguntei-lhe certa vez se gostaria de trabalhar em escritório de advocacia e sua resposta imediata não deixaria dúvidas quanto à sua real vocação.
Poderia testemunhar que conheci poucas pessoas tão bem informadas como José Rinaldo. Sua cultura geral tinha solidez e estava rigorosamente a par do que acontecia em nosso país e no Exterior. Todo esse acervo enriquecia ainda mais suas ponderações em classe a respeito de sua disciplina, Direito Tributário.
No cotidiano, sua preocupação fazia-se extrema no que se refere à educação e ao lazer de suas filhas. Acompanhava-as, seguia atentamente o seu desenvolvimento e nesse mister recebia sempre a colaboração inseparável de nossa filha.
Era torcedor do Corinthians. Constantemente freqüentava os jogos do “timão” e conversávamos muito a respeito, pois sabia tudo da minha Portuguesa, seu segundo time de coração. Acompanhei-o várias vezes aos estádios, a assistir ele, indiscriminadamente, jogos do Corinthians ou da Lusa. Num dia em que desabou um aguaceiro inusitado sobre a cidade, fomos, acompanhados de seu fiel amigo Elias, presenciar o jogo de seu time contra o Real Madrid no Morumbi, em certame que daria o título mundial ao Corinthians. Na ida ao estádio, compramos capa descartável de R$ 3,00 e, encharcados, mergulhamos até os joelhos naquela água pouco confiável, mas tudo era festa para José Rinaldo que se esquecia daquelas vicissitudes e externava uma sã alegria. Sua vibração era total.
Em uma manhã de Setembro de 2002, ligou-me a respeito de resultados de exames médicos. Um homem de fé, confiava-me, em momento emotivo, estar muito preocupado com a interpretação feita por seu clínico. Fui com ele à primeira visita ao cirurgião, que o operou semanas após. Começaria um longo calvário que terminaria no dia 29 de Janeiro de 2004. Acompanhamos, todos unidos, o mal que se difundia em seu organismo. Seus pais, sua irmã, minha mulher e eu nos irmanamos num amálgama absoluto. Esse período de tristeza imensa, mas de esperança para aqueles que acreditavam numa recuperação, deu-nos a grande dimensão de José Rinaldo e de nossa filha, que mostrava coragem e dedicação extremas. Se o seu sofrimento era notório, buscava retirar forças amparadas na fé inquebrantável. As crianças entendiam, através do convívio, essa passagem irremediável.
Mencionar alguns diálogos que mantive com José Rinaldo torna-se necessário, pois é a evidência das qualidades desse jovem extraordinário que nos deixou, tão pleno de projetos e de aspirações. Meses antes de sua partida, conversamos sobre o sofrimento. A certa altura, perguntei-lhe como ele apreendia, cônscio que estava do mal inexorável, a reação à dor. Disse-me que, diante de toda crise dolorosa que surgia com freqüência cada vez maior, oferecia seu sofrimento como penitência e orava para aqueles que, naquele instante, estavam a suportar dores mais intensas. Em outra oportunidade, a anteceder a derradeira internação hospitalar, perguntei-lhe a respeito de alguma orientação que quisesse porventura transmitir-me, a aliviá-lo naqueles momentos críticos. Asseverou-me que deixava nas mãos de Deus e de nossa filha a seqüência possível, mas lamentava não poder estar sentado na praia com seu pai a olhar o pôr do sol.
Dias após sua morte, viajava eu para a Bélgica, a fim de recitais e gravação de um CD de Música Contemporânea de compositores belgas. Três noites de registros fonográficos. Encerrada a última sessão, às 5 horas da manhã, pedi a Johan Kennivé, engenheiro de som, amigo e confidente, que apagasse todas as luzes da Capela de Sint-Hilarius em Mullem, deixando apenas aquela sobre o teclado do piano. Em plena comunhão com meu genro José Rinaldo, considerado um filho, prestei minha homenagem a essa figura querida, e os sons de Jesus Alegria dos Homens de J.S.Bach ecoaram pelas pedras milenares e pelo sacrário de Sint-Hilarius.

Clique aqui para ouvir “Jesus Alegria dos Homens” de J.S.Bach, transcrito por Myra Hess, com J.E.M. ao piano.

My son-in-law, José Rinaldo, died four years ago, in January 2004. A man of faith, a model son, husband and father, he met an early death after a long and painful illness that he accepted as a penitence. A few days after his death I flew to Belgium to record a CD of Belgian contemporary music. After three nights of recordings in a chapel in the city of Mullem, in a freezing winter dawn I paid a tribute to his memory with J.S.Bach’s Jesus Joy of Man’s Desiring. It is possible to listen to this recording by selecting the link embedded in the post.

10.000 Anos de Descobertas

Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas
simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras;
mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e,
quando os folheio, reconheço as leituras anteriores,
muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me
facilitar outros e novos convívios.

António Menéres

Ultrapassar a barreira dos 10.000 acessos ao blog é motivo de muita alegria para o autor, que busca apenas a transmissão das idéias que estão sempre a surgir em diversas categorias: regressos ao passado ou observação do presente, leituras recentes ou cumplicidades acumuladas desde a infância, lembranças de tantos que se foram e nos ajudaram a caminhar, viagens retidas pelo olhar curioso e a música. “Nós estamos seguros um do outro” d’après a meditação final do personagem Jean-Christophe, de Romain Rolland. Veio-me à mente esse número por inteiro, mercê dos acessos de generosos leitores, fazendo-me lembrar de outra dezena de milhar de minha infância, aos onze anos, de 10.000 Anos de Descobertas, de Bruno Kaiser (São Paulo, Melhoramentos, 1949, 267 págs.).

As Primeiras Universidades - Xilogravura, Paul Boesch

Foram meus pais que me ofereceram o belo livro, contendo, antes de cada pequeno segmento da História da Humanidade, uma das 266 xilogravuras de Paul Boesch que compõem a obra. O fascínio foi imediato. Dos dois capítulos iniciais, Na Idade da Pedra Lascada : Regresso da Caça ao Urso e Os habitantes da Terra Fazem Fogo e Cozinham, aos derradeiros, A Exploração dos Pólos da Terra e Seda Artificial e Celofane, o autor percorre os passos do Homem e o encadeamento dos fatos torna-se harmonioso. Para o menino que eu fui, começava o encantamento, que é o longo percurso em direção à parcela, mínima que seja, do conhecimento. As duras conquistas da Humanidade, seu esforço e sua fraqueza, o longo pensar que leva à invenção, e o arrojo a motivar a vontade de descobrir, tudo lá estava, a fazer o miúdo sonhar. Lembro-me de que determinados capítulos – nenhum ultrapassa uma página – provocavam curiosidade imensa. Foi 10.000 Anos… verdadeira enciclopédia resumida para os jovens, introdução a duas outras, igualmente a eles destinadas, mas bem mais amplas, como O Mundo Pitoresco (9 volumes) e o Thesouro da Juventude (18 volumes), lidos nos anos sucessivos.

Cânticos Sacros - Xilogravura, Paul Boesch

A obra de Bruno Kaiser, a levantar a cada capítulo uma pergunta de incontáveis outras que a vida se encarregaria de acumular, tinha essa magia de propor a reflexão sobre o caminho do Homem, sua indomável vontade de descobrir novos horizontes, a fim da conquista ou da realização de ideais, sua criatividade ilimitada, e do simples ao mais complexo, no olhar do autor, todas as criações do ser humano recebem a mesma atenção: arado, roda, bússola chinesa, torno do oleiro, hieróglifos, papiro, vidro, do odre ao barril, sabão, papel, relógio de rodas, imprensa, bicicleta, motocicleta, automóvel, cinema, dirigível, planador, aeroplano, telégrafo sem fio e tantos outros inventos. Na medicina, encaminha a curiosidade científica que chega ao radium, às vacinas. Na área musical, Kaiser insere pouco a pouco, a partir dos gregos, capítulos especiais. Sobre a música na Idade Média, conta sucintamente a história dos instrumentos, aborda o canto sacro-profano, posteriormente pormenoriza-se nos violinos do século XVIII, focaliza J.S.Bach e o prodígio que foi W.A. Mozart. Está tudo explicado, após dezenas de anos de pesquisa amorosa do autor. As xilogravuras de Paul Boesch têm a virtude da simplicidade e da pureza, hoje qualidades difíceis de serem encontradas, a servirem como abertura aos textos e aos vôos da imaginação daquele menino que conservou esse livro que lhe foi tão importante. No instante do insigth referente aos números, compreende-se que a geração a que pertenço tinha referências precisas. O impacto de tantos avanços, que hoje diariamente se apresentam à juventude, era-nos desconhecido. A cultura do livros permanecia sem interferências, absolutamente única quando uma obra era iniciada. O interesse levava a outras leituras e assim sucessivamente. E a imanência seria decorrente. Hoje, jovens estão ajustados ao seu tempo e à proliferação de informações, mas o convívio com as novas gerações, se diferente em tantos aspectos, é sempre muito salutar e ajuda-nos a crescer.

Da História dos Antigos Instrumentos Musicais - Xilogravura, Paul Boesch

Divagações são necessárias e a associação de números idênticos é um estímulo a mais para que aquilo que ficou na memória aflore, o cotidiano revele a perene curiosidade e o caminho que está a ser percorrido continue a trazer maravilhamento.
Foram muitos os questionamentos até os 10.000 acessos. Se as temáticas são diferenciadas, é porque a observação de tantas coisas que me envolvem suscita reflexões. Se a música, ao longo desses dez meses, esteve presente em muitos posts, afeições outras igualmente levam-me a integrá-las àquela vontade de comunicar aos prezados leitores esses textos semanais.
Meu agradecimentos à Editora Melhoramentos, que gentilmente autorizou a publicação on line das xilogravuras de Paul Boesch.

My blog reached 10.000 accesses since March 2007, making me remind of a book I read when I was a child: 10.000 Anos de Descobertas (10.000 Years of Discoveries), by the German author Bruno Kaiser, a concise encyclopedia for young readers with information on all fields of human inventions. I still keep it as one of the treasures of my childhood.

Ou Sua Ausência

'A feitura da ausência (ou da interpretação).' - Mathias, lápis de cor, 1984

Il faut avoir vis-à-vis de l’oeuvre que l’on écoute,
que l’on interprète ou que l’on compose, un respect
profond comme devant l’existence même.
Comme si c’était une question de vie et de mort.

Pierre Boulez

La relation entre la vie et la mort est la même que celle
qui existe entre le silence et la musique – le silence
précède la musique, et lui succède.

Daniel Barenboïm

Ao longo das décadas, constantemente ouvi debates acalorados, opiniões incisivas ou pálidas, mas jamais indiferença quando o tema é a Interpretação Musical. Paradoxalmente, seria no plano da própria performance que a “ausência” da interpretação pode existir. Todavia, para que tal ocorra, fatores internos do instrumentista atestariam a impossibilidade de vislumbre por detrás do pentagrama depositário da composição. Apesar de subjetiva em sua percepção, essa “ausência” interpretativa determinaria a não perenidade de um intérprete.
Igor Stravinsky (1882-1971) já observava que a entidade musical apresenta apenas duas formas de existência, separadas pelo silêncio do vazio, e que haveria somente duas espécies de músicos: o criador e o intérprete. A opinião do autor de Sagração da Primavera evidencia de um lado – ao se tratar de repertório que se estende do barroco às fronteiras da primeira metade do século XX – a criação imutável para sempre, quando definitivamente finda, e o instrumentista a conviver sob vários condicionamentos. Entre estes: tradição, talento, as várias culturas e mesmo a indiferença quanto ao aprofundamento do conteúdo musical. O amálgama entre as duas categorias propostas por Stravinsky pareceria irremediavelmente perdido pela existência, de um lado, da criação composicional fixada no papel pautado e, de outro, das infinitas flexibilizações interpretativas. Se racionalmente isso ocorre, as múltiplas performances de um mesmo texto podem convergir para um consenso sob a salvaguarda da tradição. A traditio possibilita, inclusive, a manutenção da excelência interpretativa ou da mediana execução, esta ditada por limitações involuntárias do intérprete. Ao considerar-se o vasto período do repertório mencionado, verifica-se que a tradição é fundamento essencial. Através dela, a obra perpetua-se, apesar das flutuações interpretativas individuais.
Talento é uma dádiva, mas não é tudo, apenas parcela do compromisso, e deveria estar a serviço da interpretação responsável, que excluiria o interpretar a atender ao vedetismo. Pode ser o espelho a refletir individualidades super autodimensionadas. Quando ocorre tal fato, a leitura da partitura estará apenas a valorizar egos, desviando-se da essencialidade. O intérprete, nessa única possibilidade proposta por Stravinsky, criador-intérprete, sobrepõe-se à obra e, por mais impacto que possa causar, haveria o simulacro. Subjetivo, é certo, mas ao longo da existência sua mensagem não deixa lastro referencial.
A cultura de um intérprete apresentar-se-ia como fator imperioso. Quantos não são os intérpretes superdotados, espalhados pelos continentes, com os quais é impossível um diálogo consistente por falta de estrutura cultural sólida? Quando talento faz-se acompanhado de uma apreensão das muitas culturas, há necessariamente acréscimo à consciência responsável, que leva a entender a obra escrita como definitiva e multireveladora, a ser respeitada em seus fundamentos. E dessa conscientização talvez nasça a interpretação que permanece.
Tem-se ainda a indiferença, tragédia da “ausência”, que o leigo nem sempre percebe ao ouvir um executante incensado pela mídia, talvez hábil instrumentista, mas a carecer da antítese do fugaz, a imanência. Habilidade e destreza são físico-motoras, inerentes em graus diferenciados a cada intérprete, mas passíveis de aprimoramento mercê de disciplina e de estudos prolongados. Se voltadas aos holofotes, podem tornar-se armadilhas obliterando a interpretação responsável. Em termos brasileiros, some-se a tragédia de outra ausência, a crítica mediática, praticada por diletantes ou aficionados possuidores de superficial camada de verniz musical e produtores de verdadeiras crônicas sociais, sem jamais atingir a compreensão e o resultado sonoro de um evento.
Se a partitura impressa revela parte considerável da criação, não tem ela contudo todos os elementos reveladores de uma obra. Hoje, mais e mais estão à disposição edições críticas e muitas vezes facsimiladas, a reproduzirem a coloração atual do papel, dispendiosas é certo, mas imprescindíveis à compreensão de atributos fundamentais da criação, inclusive a hesitação e a rasura, integrantes da dúvida, caminho para o acerto. O manuscrito, autógrafo ou não, rarissimamente é preocupação do intérprete voltado à rotina da carreira, que o faz ter de preparar, sempre em prazo certo, peças do repertório, preferencialmente obras impostas por sociedades de concertos ou empresários. E as temporadas musicais apresentam, quase sempre, a programação mais freqüentada.
A “ausência” da interpretação tem componente a ser compreendido. Mesmo em interpretação ausente, a obra automatizada, mas a servir a outros fins estereotipados, está a ser ouvida, faltando-lhe contudo a essência do interpretar, a anima misteriosa. Se a obra musical tiver uma leitura sem quaisquer elementos flexibilizantes, que caracterizam a palavra interpretare, pode perder a essencialidade da transmissão, que pressupõe sempre o envolvimento do instrumentista. Seria pois esse envolver, sob a égide da tradição, do talento responsável e das culturas, a única possibilidade da salvaguarda da interpretação.

Pour José Eduardo et João Carlos Silva Martins en souvenir d' Alfred Cortot 1953.

Alfred Cortot (1877-1962) diria, em conferência sobre a obra de Robert Schumann, que “ A arte do intérprete – para aquele, ao menos, que não se limita unicamente às insuficientes proezas ditadas pela virtuosidade – tem como objeto essencial a transmissão dos sentimentos ou das impressões da qual a idéia musical é o reflexo” e que “o artista dever estar preocupado menos com a nota (figura musical), mas sim em traduzir o espírito que a anima, esforçando-se em apoiar sua concepção no estudo da vida dos compositores e, singularmente, na interrogação dos mínimos fatos de sua existência íntima”. É lógico que o grande mestre pressupõe todo um conhecimento das estruturas composicionais, apriorístico para o músico e indispensável à qualquer formação. Todavia, a opinião de Cortot quanto ao pleno conhecimento de um compositor por parte do intérprete pode ser exemplificada em frase reveladora de Francis Poulenc (1899-1963), quando de uma entrevista ao musicólogo francês Roland Manuel (1891-1966). Diria o autor que “meus melhores achados da escritura pianística surgiram ao escrever o acompanhamento de minhas melodias”, a demonstrar característica essencial que deve ser apreendida pelo intérprete. O posicionamento de Poulenc pode ser estendido a outros compositores em idênticos ou outros contextos.
As considerações de Cortot, absolutamente colocadas em prática pelo notável e paradigmático pianista, seriam, além disso, a evidência de um respeito à tradição – da qual foi ele um cultor -, da plena exemplificação de um talento extraordinário e de uma das mais abrangentes culturas entre os intérpretes em todos os tempos.
A ausência da interpretação seria o vazio que, tantas vezes não entendido como tal, tem contudo permanência circunstancial, prazo limitado durante parte da trajetória de uma carreira, esquecida após estiolar-se a “magia”. O tempo encarrega-se de apagar traços na areia, ou de dar continuidade às vagas do oceano.

L’intérprétation musicale et quelques attributs: tradition, talent responsable, cultures. L’ indifférence au sujet d’une connaissance plus profonde du contenu musical et le besoin d’éblouir le public, facteurs qui mènent à l’absence de l’intérprétation.

Tradition, talent, technique, intellectual depth are some of the aspects affecting the outcome of a musical performance. Many interpreters content themselves with a flawless technique, sometimes belittling the research that could help them play a piece of music as the composer envisioned it. My point is that a thoughtful interpretation, when tempered with precise technique and emotion, enhances the performance of a musical work. A flamboyant display tends to be enough to mesmerize audiences and gratify inflated egos, and also to make sounds become void of meaning.