Razões de uma Escolha
Vontade de ficar neste sossego toda a vida:
bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,
para andar à toa, falando sozinha,
enquanto as formigas caminham nas árvores…
Cecília Meireles
Sempre que há texto sobre Música a ser redigido, a necessitar um debruçar mais prolongado, ou a edição de um CD, a exigir tranqüilidade quase absoluta, devido à escuta concentrada, dirijo-me a Bragança Paulista. Há 15 e tal anos mantenho esta rotina. Cada um de nós está constantemente a buscar o modus faciendi que melhor se amolde à sua índole.
Em texto anterior (Nélson, o Sábio, de 18/04/07, categoria Cotidiano), ao comentar as praças espalhadas pelo mundo, referi-me à cidade como tendo uma de minhas preferidas. Igualmente provável que olhar o que nos agrada, sem choques que levem à distração, tenha sido fator responsável pela escolha do local.
Falemos sucintamente da urbe. Próxima de São Paulo, distante cerca de 100 quilômetros, tem características de cidade do interior em expansão, mas a guardar, ainda, uma tranqüilidade perdida para sempre em nossa megalópole. De um povoado ao redor de uma capela, surge em 1763 a designação de Conceição do Jaguari. Com o crescimento, tem-se em 1767 Vila Nova Bragança, nome que tem antecedente em Portugal, mercê da dinastia de Bragança, que governou Portugal e Brasil. Somente em 1856 recebe o nome de Bragança, a ganhar ainda, em 1944, o complemento “Paulista”, a fim de se diferenciar de cidade do mesmo nome existente no Estado do Pará.
Em todos esses anos, observo, absolutamente anônimo entre os habitantes, a cordialidade de um povo que, nos momentos de descontração, senta-se nas praças e fica a conversar e a olhar a vida passar. Faz bem para alguém que vive em São Paulo. O lago, à entrada de Bragança para quem chega pela rodovia Fernão Dias, é um reconforto, com passeios bem cuidados a margearem as águas. Nos poucos dias em que permaneço na cidade, troto meus quatro quilômetros nessa pista aprazível. Há bons restaurantes, mas freqüento basicamente dois: O Casarão, ao lado do hotel e com aconchegante fogão a lenha, e o excelente Cantina Bella Italia, tendo bonita vista para o lago. Meu amigo Lino há tempos prepara pratos especiais da cozinha italiana, pois estagiou durante anos no restaurante de seu pai no belo país do Mediterrâneo. Sem falar da “lendária” lingüiça bragantina.
No Grande Hotel Bragança - tem esse nome pomposo desde décadas – encontro paz para aquilo que pretendo realizar. Agradável, muito bem cuidado e com um pessoal que já se tornou familiar, fica bem em frente à Praça José Bonifácio que, contígua, após a matriz ganha o nome de Raul Leme. Sempre reservo um apartamento com janela a abrir-se para a praça. Esta pulsa, e ver e ouvir a cidade acordar, as portas de metal das lojas se erguerem, o burburinho pacato das pessoas, o movimento a aumentar, sentir as transformações durante o dia e assistir ao adormecer da praça após a saída de seus freqüentadores, à noite, é gratificante. Da janela vê-se o Museu do Telefone, visita obrigatória. Essas considerações todas decorrem dos descansos que necessariamente tenho de fazer durante minhas tarefas ligadas à música e a janela torna-se meu observatório das imediações de que tanto gosto. Sinto apenas falta dos meninos engraxates com quem conversava quando, sentado em um banco e rodeado de livros, ficava a ler ou a escrever meus artigos sobre música. Tinham histórias muitos semelhantes, às quais não faltavam famílias numerosas, agruras da vida, escolaridade precária no ensino público e busca de um emprego decente. Como o tempo é mais generoso nas cidade do interior, os sapatos ficavam a brilhar. Nunca assisti nessa praça a incidente no que tange à segurança.
Dela despencam ruas estreitas que vão até a baixa, dos dois lados. Algumas têm inclusive trânsito restrito apenas aos moradores locais, pois certos aclives são de assustar. Contudo, os residentes já desenvolveram mecanismos especiais para chegar às suas moradas, dirigindo até mesmo de marcha à ré.
Nesse ambiente, desenvolvo uma terceira etapa no que se refere às gravações: a primeira, relacionada à longa preparação; a seguir, a gravação em Mullem, cercado pela tecnologia mais avançada na capela de Sint Hilarius (ver textos: Mullem, de 01/05/07, e A Comunhão das Pedras, 03/05/07, categoria Impressões de Viagem deste blog); a terceira, mas não última, a edição que faço, a assinalar minhas opções na partitura, na tranqüilidade de Bragança Paulista. Realizo-a com bons fones de ouvido AKG – e um CD Player Sony, não o fazendo em um computador, tarefa posterior reservada ao extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé, responsável em Mullem por todas as minhas gravações nos últimos 10 anos. A ele cabem a montagem e a elaboração da Imagem Sonora, trabalho ímpar desse talento que é Johan. A seleção pessoal do material gravado acura meu sentido de referências, exercício mental e auditivo importante para quem se aproxima da sétima década. Entendo intransferível o estágio de escolha dos melhores takes, pois a interpretação é o próprio respirar, o de profundis que aflora, a acreditar, pois, que o executante, apenas ele, compreende seus batimentos, nos mágicos instantes passados durante as sessões dos registros fonográficos. Ao concluir a edição, dirigi-me imediatamente a um cyber-café e transmiti ao amigo Johan a boa nova. Fizera-o exatamente há um ano, quando do CD Schumann e Scriabine, já lançado na Bélgica (De Rode Pomp – Gents Muzikaal Archief Vol.32). Quando ele finda sua ourivesaria, dou então o nihil obstat e o master está, pois, concluído.
Tais divagações fazem-se necessárias, pois elegi Bragança Paulista como o espaço ideal para essa fase de minúcias. Continuarei a visitá-la, pois ainda tenho artigos a escrever, CDs a editar e…espero, sapatos a receberem graxa dos meninos que, talvez, um dia retornem à praça.
Bragança Paulista: the small town near São Paulo which has been my destination for the last 20 years when I need peace of mind to edit my CDs or to write articles on music. Its main attractions for me are the central square – where my hotel is located and a gathering place for locals -, a few favorite restaurants, the lake with its large area for leisure, walking and jogging and, of course, the quietness of the whole place.
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