Do indivíduo ao coletivo
    Sísifo de Ticiano

E ao homem celestial que me condena
Dizei que houve em mim erro, mas não crime.

Ovídio

A causa do castigo a que foi submetido Sisuphos, o fundador mítico de Corinto, tem várias versões. A punição é consagrada pela mitologia. Condenado por Zeus, estaria destinado a levar eternamente uma enorme pedra ao cimo da montanha e, antes que esta lá chegasse, motivo não controlável a fazia rolar morro abaixo, obrigando-o a retomar a tarefa. Qual o seu pensamento ao subir levando a pedra colossal e qual aquele que o levaria a descer, sem esforço, o nosso imaginário está a enriquecer há milênios, à mercê dos contextos.
São tantos os sísifos existentes, que particularizá-los em suas trajetórias repetitivas e dramáticas transporta-nos a uma triste realidade. Mauro Chaves, na Introdução de A Saga das Mãos, de João Carlos Martins (Campus, São Paulo, 2007), compara o pianista a Sísifo, mercê de seus recomeços pianísticos, após dramas físicos passados. Hoje, atuando como regente, parece ter sido perdoado pelos deuses. Milhares de sísifos diariamente transitam pela cidade durante horas, nessa rotina que os faz permanentes em ônibus, trens, metrôs, sem a esperança de melhora, enquanto deuses oportunistas de um Olimpo sem glória proliferam nas moradas da vida política. Há também sísifos drogados, alcoólatras, fumantes e jogadores do azar, que tentam um recomeço digno, mas sucumbem à triste sina do levar a pedra.
Em meados de 2006, escrevia a alguns amigos, relatando a saga de um sísifo exemplar. Conheço-o há muitos anos. É um homem simples, a viver o drama da repetição sem qualquer possibilidade de esperança. Personagem atemporal, devido às agruras, tem aparência mais envelhecida, a esconder a idade real. Cabelos brancos desalinhados, tez escura pelas intempéries, sulcos largos e profundos a percorrerem um rosto sofrido, corpo emagrecido e recurvado a ocultar uma cabeça quase sempre inclinada que, ao erguer-se, expõe um olhar triste e conformado.
Possivelmente morador de rua, o Sisuphos percorre vários bairros da Zona Sul: Campo Belo, Brooklin, Vila Olímpia, Itaim, Vila Nova Conceição. Já o vi muitas vezes em alguns lugares dessa extensa região. Quase que diariamente sobe a minha rua em direção à Av. Santo Amaro. Não há um horário fixo. Durante as horas quentes, em que o sol mostra-se implacável, repousa, dorme na calçada e, ao acordar, faz anotações em uma folha. No inverno, vestido de velhos agasalhos rotos, encolhe-se e adormece nos mesmos locais. A chuva é como se não existisse, pois o nosso Sisuphos absolutamente desconhece-a. Seria mais um dos milhares ou milhões de clones desse personagem mítico personificado no presente, não fosse a pedra metamorfoseada em carrinho de construção, a tipificar o estado pleno do exemplo. O Sisuphos está sempre a sustentar, com as duas mãos enervadas, escuras e calejadas, o velho carro de mão, igual a esses outros em ferro e com roda de borracha, que vigorosas mãos da construção civil utilizam todos os dias no transporte de material apropriado. Diferencia o nosso Sisuphos Paradigma o fato de carregar sempre as mesmas coisas. Um amigo – aquele que mensalmente corta os meus ralos cabelos há tantos anos – a uma observação que fiz, disse-me que já notara a imutabilidade. Sim, o Sisuphos leva consigo, dia e noite, seu destino já traçado. Basicamente, nada é retirado de seu veículo, tampouco nele acrescentado. Papelão amarrado com fitas de plástico, sacos de supermercado contendo segredos, um velho par de tênis, outros papéis e mais objetos compõem os seus pertences. Serviriam de abrigo quando a noite desce? O certo é que pesam, e muito, sobretudo após aguaceiros. Por vezes, e isso o Sisuphos primeiro não fazia pela qualidade do material de sua pena, o Paradigma retira tudo do carrinho, atravessa a rua com ele vazio, e transporta novamente os objetos, amarrando-os ao veículo, após outros passos para lá chegar. Vê-lo subir a inclinação da Jesuíno Maciel a partir da Av. Santo Amaro, sem aceitar qualquer ajuda no mister, é a constatação da revivificação do mito de Sisuphos em sua plenitude.
Ao longo dos anos, dele me aproximo. Se aceita umas moedas, uma camiseta ou um agasalho, sempre o faz fixando-me com um olhar que já percorreu, durante milênios, no desalento, outros olhares, outros lugares. Um sorriso apenas esboça-se, e quase que imperceptivelmente ouve-se um “obrigado”. Nada mais aceita. Recusa alimentos, pois determinados bares lhe oferecem algo que o sustenta. Nesses recantos, sempre os mesmos, encontra bons samaritanos a ajudá-lo. Certo dia perguntei-lhe o nome. Não se recusou a dizê-lo, sem mais.
Chamou-me a atenção o Sisuphos quando, ao regressar da feira-livre que é montada aos sábados no Campo Belo, vi-o em sua rotina. Dois indivíduos, a aparentarem má índole, passaram por ele dirigindo ao ancião veementes impropérios. Largou o carrinho, olhou para os dois e proferiu outras palavras, que não entendi. Caminhei até o agora trêmulo Sisuphos tentando reconfortá-lo. Como sempre, ouvi um surdo “obrigado”. Logo após, seguiu a sua sina. O Sisuphos original desconhecia esses outros constrangimentos.
Diferentemente daquele da mitologia, seu fim chegará. Assim como Fênix, os sísifos sempre estarão renascendo após incandescidos. Já o Sisuphos Paradigma, esse é mais raro, e seu carrinho-pedra imutável será a certeza de que pouco sabemos sobre o interior de cada homem. Mistério insondável…

The myth of Sisyphus.
Sisyphus today: unskilled workers, outcasts, drug addicts, gamblers.
The paradigmatic Sisyphus.