Navegando Posts publicados em abril, 2007

A Flandres Rejuvenescida
Fachadas de Nieuwbrugkaai, em Gent, às margens do Leie.

Toda a realidade existente
coincide com o momento aqui-agora.

Boudewijn Buckinx

Em Julho de 1995, Paul Klinck e eu gravávamos, nos estúdios da VRT (Rádio e Televisão Flamenga) da Bélgica, em Bruxelas, para o selo PKP, a integral para violino e piano do compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931). Conheci Klinck no aeroporto da capital belga e de lá seguimos para Gent. No mesmo dia já estudávamos o repertório e lembro-me de que, cinco minutos após, Paul Klinck, de costas para mim, participou intensamente durante cerca de três horas das necessárias repetições. A uma pergunta minha a respeito, respondeu: não há necessidade de nos olharmos, pois nos entendemos musicalmente. No dia seguinte, um sábado quente e ensolarado, Paul se casava e fui às festividades. À noite, novo ensaio até altas horas e, na segunda-feira, em dois dias, registrávamos entusiasmados o CD.
Coordenado por Álvaro Guimarães e patrocinado pelo grupo Novecanto, dirigido por Katrijn Friant, deu-se aos 18 de Novembro daquele ano, no Musiekconservatorium de Gent, um concerto unicamente dedicado a Henrique Oswald: Sonata para violino e piano, Sonata op.44 para cello e piano, o Quarteto op. 26 para trio e piano, o ciclo de canções Ofélia para canto e piano e a Missa de Réquiem para coro a cappella dirigido por Friant. Naquela noite era lançado o CD gravado em Julho. Era a primeira vez, pos mortem, que acontecia no exterior um concerto dessa envergadura dedicado ao grande compositor. Fui o pianista de toda a camerística.
À noite, fiquei horas a pensar nas circunstâncias do concerto e no fato de que tudo se evaporava, pois partiria no dia seguinte de volta ao Brasil e, possivelmente, a magia gantoise ficaria tão somente na lembrança. No exato momento em que estava a colocar a minha mala no táxi para o caminho até a estação ferroviária de St. Peters, para de lá me dirigir ao aeroporto de Bruxelas, um carro estacionou paralelamente ao veículo e um senhor de tamanho avantajado cumprimentou-me e lembrou a noite anterior. Agradeci, mas disse-lhe que estava a partir, pois tenho por hábito chegar muitíssimo cedo aos aeroportos. André Posman, sem cerimônias, retirou a minha mala do táxi e levou-me à sua organização, De Rode Pomp, que promove concertos, gravações e exposições de pinturas. Após, conduziu-me diretamente ao aeroporto de Bruxelas. Iniciava-se um longo relacionamento que me levou, nesses treze anos, aproximadamente vinte vezes à Bélgica para gravações e concertos.

A bela fachada às margens do rio Leie, ao anoitecer.

Há cerca de dez anos fico sempre hospedado em casa dos amigos Tony e Tânia, cuja bela morada, em frente a um dos muitos canais da cidade, fica a não mais de 100 metros de De Rode Pomp, com direito a um piano de armário para estudos necessários. A amizade fez Tony pintar a parte inferior da casa de verde e amarelo, como se observa na foto. Os dois outros andares tiveram como escolha o ocre, com detalhes amarelos. A família aumentou e são mais dois Ts, Trixie e Tycho, lindas crianças. Fico no último andar, a ver nos momentos de descontração, as grandes gaivotas brancas de bico amarelo que, em vôos rasantes, gritam e planam com elegância. Já presenciei desta janela, durante as muitas estadias, grandes nevascas, ventos uivantes e dias ensolarados da primavera. Os sons dos sinos das igrejas de St. Jacobs e St. Macharius, ou mesmo da Catedral de Saint-Bavon, podem ser ouvidos, dependendo das correntes de vento. Na bela Catedral está exposta uma das obras primas da pintura universal: O Cordeiro Místico, dos irmãos Van Eyck (1432). Em todas as estadas em Gent, sinto-me atraído e revisito o políptico, nele encontrando sempre um pormenor inédito aos meus olhares anteriores. Tem-se ainda, neste centro da cidade, construções medievais imponentes, como a austera Igreja de Saint-Nicholas e o Beffroi, um majestoso campanário. É um deslumbramento para os olhos.

Rode Pomp e a Galeria La Perseveranza

De volta a Gent pois, capital da província da Flandres Oriental, uma das maiores cidades da Bélgica, terei recital, gravações e convívio. Nesta cidade de aproximadamente 240.000 habitantes, De Rode Pomp é uma das Sociedades de Concerto, entre muitas.
A programação anual abriga mais de uma centena de recitais e concertos. Basicamente os principais conjuntos de câmara da Bélgica Flamenga lá se apresentam. Entre os intérpretes belgas, poderíamos citar alguns realmente extraordinários e desconhecidos no Brasil. Em todas as temporadas o gantois pode ouvir, na excelência, pianistas como Bernard Lemmens, André de Groote, Claude Coppens, Luc Devos, Jean-Claude van den Eyden, Peter Ritzen. Artistas russos tem-se algumas dezenas, de alto mérito. Com a maior convicção poderia afirmar que no Brasil não temos nenhuma sociedade de concertos que possa apresentar, quantitativa e qualitativamente, essa programação expressiva (visite De Rode Pomp Concertagenda e CD’s pagina). Os grandes ciclos do repertório tradicional para instrumento solo ou dedicado à música de câmara já foram lá interpretados, alguns deles várias vezes. Destaque à intensa atividade de divulgação do repertório alternativo de todas as épocas, assim como da música hodierna. Frise-se, De Rode Pomp é uma sociedade entre outras tantas, que vive da renda das atividades musicais, dos assinantes e da subvenção do Estado Flamengo, em uma cidade com um quarto de milhão de habitantes. Na realidade, todo esse intenso fluxo de apresentações faz parte da respiração desse país diminuto em dimensão territorial, comparando-se ao Brasil. O convívio com os músicos flamengos já me levou a gravar para De Rode Pomp – entre outros CDs já registrados – dez dos excelentes compositores belgas contemporâneos ( New Belgian Etudes – Gents Muzikaal Archief vol. 24). De tendências várias, há neles, certamente, uma intensa pulsação, mercê, com acréscimo de uma enraizada tradição composicional.
Sob outro aspecto, há na Rode Pomp uma sala de convívio que, de quinta à sábado, transforma-se num restaurante para o ouvinte que previamente agenda o jantar, magnificamente preparado pelo maître Philippe. Após o recital de ontem à noite e do lançamento de meu novo CD Schumann-Scriabine, André Posman comoveu-nos ao organizar um jantar dedicado aos 44 anos de casamento que Regina e eu comemorávamos.
Abriga ainda De Rode Pomp, em sua Galeria no mesmo endereço, La Perseveranza, exposições temporárias de artistas como Boris Chapovalov, Oxanna Giliuk (Rússia), Ives Dendal, Hugo Deleener (Bélgica), Jan De Wachter (Holanda) e outros mais que empregam técnicas diferenciadas e exibem tendências as mais variadas. Poder-se-ia dizer, enfim, que toda essa programação está sob a égide de uma profunda simplicidade em todos os aspectos, pois não há o menor clima de sofisticação em De Rode Pomp. Tenho inclusive, as chaves da organização, o que me faz entrar até mesmo na madrugada, a fim de estudar na sala de concertos.

Este permanente contato com a cultura flamenga é motivo para reflexão. Contudo, mais e mais sinto as derivas acentuadas que se processam no Brasil em todas as áreas. Certa vez, Roberto Campos, embaixador, senador e sobretudo um brilhante pensador, disse uma frase paradigmática a designar nossa mentalidade propensa ao ufanismo vão: tudo vai mal onde tudo vai bem.


Gent : My first visit to Gent, in Belgium, was in November 1995, for a concert entirely dedicated to the Brazilian composer Henrique Oswald. On the next day, an unexpected meeting with André Posman, the manager of De Rode Pomp, one of the many musical associations of this small but bustling cultural center of Flanders, was the beginning of a long association which, since then, resulted in nearly twenty visits to Belgium for recordings, concerts and also to meet the many friends I have made in all these years. This permanent contact with the Flemish culture led me to unavoidable reflections upon the differences between the two countries, Belgium and Brazil. I can only feel sorry for my country and its long history of unmet expectations

Super Constellation, da Air France.

Atravessar o oceano em direção ao Velho Continente pressupõe uma série de preparativos, mormente se a atividade fulcral é a Música. Bélgica, França e Portugal serão os países visitados, a continuar um cinqüentenário desses deslocamentos. Se os recitais de piano e um júri de concurso internacional fazem parte do roteiro, é contudo a gravação que está a me proporcionar a relação mais íntima nestes últimos treze anos, sobretudo quando esta se processa em um lugar mágico e pleno de misticismo, encravado no coração da Bélgica flamenga.
Buscarei externar impressões de viagem plena de atividades musicais. Aquelas estarão a traduzir menos a apresentação pública, que realizo sempre prazerosamente e com emoção, do que o pormenor observado nessas andanças. São os detalhes, os fragmentos que me causam espanto desde a juventude. Tentarei compartilhar esse olhar com os meus leitores. Trata-se de acúmulos somados a outros a dimensionar a vida, o relacionamento familiar, assim como aquele com a Música e com os amigos. Sob outra égide, o tempo nem sempre é aquele que rotineiramente elegemos, o que provocará, quando se fizer necessário, o texto sucinto, concentrado, o flash do momento que resultou em atenção maior. Dois livros me acompanham. Um deles tem um tema recorrente, que me fascina quando em aviões ou hotéis: o teto do mundo, as tantas narrativas sobre o Himalaia. Alexandra David-Néel, Maurice Herzog, Jon Krakauer, Bill Nothdurft – contando a história que lhe foi narrada da busca de Mallory e Irvine -, Thomaz Brandolin, Luciano Pires, Carlos Tramontina já foram percorridos, e outros, agendados, para a imaginação alçar vôos. De Paul Brunton (1898-1981), pois, Un Ermite dans l’Himalaya (France, du Rocher/Motifs, 2006), na tradução francesa de A Hermit in the Himalayas; o segundo, de Luís Guerreiro (1929- ), Oitavo Dia da Criação, recém lançado (2007) pela Editora Ser, de Brasília, aborda o dia do homem, de sua trajetória, “da busca da sua plena humanidade”. Foi-me vivamente recomendado por amigos de Lisboa. A ser a Música tão onipresente nessas viagens, a leitura outra propicia uma categoria que enriquece o pensar, levando ao despertar de novas reflexões.

Rabiscos de Benedito Lima de Toledo

    Nosso Cantinho Possível


Conforme fores lendo
Assim irás vendo.

Adagiário Popular Açoriano

Parque, praça, jardim, logradouro ou um simples cantinho público, tudo se entende como um espaço onde pode haver o congraçamento. Nos países que cultivam a segurança do cidadão como cláusula pétrea, praças, parques e jardins das grandes cidades podem oferecer esse refúgio, a abrigar o relacionamento das pessoas. Contudo, é nas cidades menores, nas vilas, ou mesmo nas aldeias que o prazer do convívio humano rotineiro se faz nesses locais.
Há décadas, mercê dos deslocamentos geográficos que a atividade musical proporciona, freqüento praças e jardins públicos. De Varna, às margens do Mar Negro, na Bulgária, de Târgu-Jiu na Romênia, ou de San Juan – Província de San Juan – na Argentina, ou mesmo das pequenas cidades ou vilas de Portugal continente e dos Açores, exemplos me vêm à memória. Contudo, é na semelhança dos personagens em suas aspirações cotidianas, nesse dia a dia repetitivo, que compreendo o encantamento.
Nos bancos desses espaços, aqueles que pertencem à terceira idade têm assiduidade. É o prazer diário de encontrar sempre os mesmos amigos, trocar impressões sobre a chuva ou a estiagem, as variações térmicas, o plantio ou a colheita, ou mesmo o incidente ocorrido ontem ou no instante. No arquipélado dos Açores há o acréscimo da pesca e dos sonhos dela decorrentes. Essa rotina monótona, mas necessária à existência dessa boa gente, torna-os atemporais, homogêneos e únicos. Quantos não foram os escritores, poetas, músicos e pintores que registraram esse pulsar lento, mas perene? O grande poeta açoriano Antero de Quental (1842-1891) buscaria em um banco de praça em Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel, seu voluntário último instante.
Como observador, se o idioma é para mim um empecilho, busco sempre alguém que entenda um pouco de inglês ou francês e faço as indagações aos freqüentadores. Basicamente respondem as mesmas coisas, seja qual for o país ou a região. Quando indago sobre a amizade que os faz reunidos, mencionam igualmente aqueles que se foram e daí a falar nessas faltas é conseqüência, sendo que a morte passa a ser entendida, pois, como um caminho natural, sem traumas maiores, pelo menos aparentemente. Sob contexto outro, como arabescos de um quadro, música ou tapeçaria, crianças correm, mães conversam outras conversas e senhoras devem falar de assuntos pertinentes.
No imenso interior deste país, tudo se processa em bem próximas pulsações. Bragança Paulista, cidade distante cerca de 100 km de São Paulo, é por mim freqüentada há décadas. Absolutamente anônimo, minha referência para as conversas é a do bom pessoal do Grande Hotel Bragança, em frente à Praça José Bonifácio. Sempre que estou a escrever um longo artigo para revista especializada do Exterior, ou tenho que ouvir o material gravado de um CD a fim de edição, o que me impele à solidão e à serenidade, é para Bragança que me dirijo. A praça, ainda “aparentemente” livre da violência que se espalha célere para o nosso interior sem o elementar controle do governo, possibilita a reflexão e, ao espalhar meus livros em um banco, tenho a sensação de que as idéias fluem num outro ritmo. Nos momentos de repouso, ouço as vozes dos freqüentadores. Os assuntos, quase idênticos aos de outras tão distantes praças. Em nossas terras, inclua-se o futebol.
O dramaturgo e escritor Plínio Marcos (1935-1999) comentou certa vez que sua cidade era a região central de São Paulo, até onde pudesse caminhar, pois lá estavam suas referências. O resto da cidade parecia-lhe estranho, pois essas amarras não existiam.
Se as praças ou logradouros públicos, em São Paulo e outras grandes cidades do país, ficaram basicamente inacessíveis – mercê da violência à espreita -, os freqüentadores refugiam-se em botecos, cafés e bares, espaços privados onde, ao menos assim parece, haveria maior segurança. Se as burras do governo ficam repletas do dinheiro arrecadado através de impostos e taxas extorsivos, nem por isso há qualquer retorno quanto à segurança sempre em crise. Todavia, necessita o homem de suas áreas públicas, a fim de poder conversar, pensar ou simplesmente ver o mundo passar.
A dinastia de Nélson, o bom jornaleiro, vem dos anos 50. Desse período, já havia a banca de seu pai e de seu irmão em plena Av. Santo Amaro, no coração do Brooklin. Hoje, Nélson tem sua estrutura montada uma quadra abaixo da Avenida, a atender, sempre com a mesma atenção, os moradores da proximidade. Conheço-o desde o início de suas atividades, há 50 anos certamente. Sua banca de jornais oferece uma infinidade de publicações, encontráveis também nas congêneres da vizinhança. A oferta é bem maior na atualidade e, quando pergunto se tal revistinha escondida lá no alto e tratando de um assunto absolutamente específico é procurada, responde Nélson sabiamente: tudo se vende, há sempre o freguês certo que vem à busca de seu interesse.
A ladear sua banca há pedras de granito liso, que servem de parapeito a uma espécie de vitrine, vidraça de farmácia. Local ideal, tendo-se em conta essa escassez de um canto seguro. Sucedâneo dos bancos de praça pública. Os personagens que freqüentam essa pedra de granito são sempre os mesmos. Retrato das praças citadas. Todos acumulando muitas décadas. Em torno do Nélson, que tudo sabe, pois tudo lê, há Jorge, permanente, a tudo observar até quase o fechamento. Viajou mundo afora e, instigado, tem sempre algo interessante a narrar. Todos os outros personagens que gravitam ao redor do Nélson, o Sábio, são mais ou menos freqüentes, mas encontráveis, dependendo dos horários. Juracy, Marcos, Gil, Uyara, Ari, Benedito passam, sentam-se para um dedo de prosa e continuam os seus caminhos. Após horas de estudo, ou depois de caminhada e trote em um pequeno bosque nas proximidades, chego ao nosso cantinho e também entro nas conversas durante certo tempo. Chuva, variações térmicas, a acentuada estiagem política e, igualmente, os incidentes de ontem ou do instante são constantes. Ou seja, pequenas variações de um tema eterno a povoar praças, logradouros ou cantinhos. Graças à idade, sinto-me bem em ser, hoje, partícipe.
E a vida continua…

Public parks, squares, street corners are sites usually turned into meeting points for those living in their immediate surroundings. This is particularly true in small towns, but even in large cities – at least those in countries that ensure their citizens’ safety – such places are havens where everybody, the old in special – meet daily to talk about the weather, politics, football, the news, all sorts of trifling matters. In São Paulo, as in other megacities in Brazil, public recreation grounds are threatened by increasing crime rates and omission of local authorities. But the population finds other alternatives: bar-rooms, coffee shops. At a street corner one block down from my house there is a newsstand. It has been there for the last 50 years, the time of my friendship with its owner. It was lately turned into a gathering place for half a dozen men who live nearby, myself included. I enjoy stopping there a few minutes every day for some small talk with other frequent visitors, sat on the windowsill of the neighboring drugstore. Our topics? The weather, politics, football… Slight variations on the eternal themes of those linked by a sense of community throughout the world.