Uma releitura a trazer certezas
A música não é um fenômeno da natureza.
Ela é produzida pelo homem. É uma arte.
Igor Stravinsky
Paulatinamente estou a catalogar meus livros sobre música. Tarefa longa que, felizmente, não realizo isoladamente. Nossa vizinha e amiga Regina Maria, revisora de meus textos semanais e responsável pelos abstracts, tem-me ajudado com eficácia.
A minha faixa etária faz-me enfrentar essa redescoberta, pois muitos livros, apesar de lidos e anotados, não recebiam meu olhar há décadas. Curiosamente, como escreveu meu amigo António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide blog “Crônicas contra o esquecimento”, 03/08/2007). Centenas de livros sobre música, a maioria profusamente sublinhada, estão sendo catalogados por ordem alfabética e por categoria. Trabalho lento e que requer atenção redobrada. As primeiras leituras musicais datam do início da década de 1950. Àquela época, música e aventuras por terras e mares desconhecidos eram as minhas preferidas. Somei com o tempo outras preferências.
Ao retirar de uma prateleira os dois primeiros dos quatro volumes de “Plaisir de la Musique” (Roland-Manuel avec la collaboration de Nadia Tagrine – Paris, Aux Éditions du Seuil, 1947-1950), recordei-me da leitura durante os anos parisienses (1958-1962). Folheei-os no presente e instantaneamente os temas voltaram transparentes à memória. Deduzo, sessenta anos após, tratar-se de verdadeiro manancial. “Plaisir de la Musique” é o resultado de entrevistas radiofônicas conduzidas pelo compositor, professor e crítico musical Roland-Manuel (1891-1966), com a colaboração da pianista e professora Nadia Tagrine (1917-2003), durante as quais figuras exponenciais da música em França colocavam suas posições. Os capítulos dos livros seguem uma orientação clara e, basicamente, de maneira agradável e competente, os dois notáveis entrevistadores perpassam parte substancial dos problemas a envolver a Música, sua História, interpretação, instrumentos, técnica e teoria, compartilhando com os ouvintes dos ilustres convidados as conversas sobre música clássica ou erudita transmitidas ao vivo aos domingos. O público participava e os programas eram transmitidos diretamente da Salle Favart, em Paris. A programação estendeu-se de 1944 a 1966. Havia a audição de composições mencionadas durante o decorrer das entrevistas. Ao leitor diria que, entre os entrevistados dessa programação radiofônica, há nomes que perduraram pela excelência: Francis Poulenc, Henri Dutilleux, Arthur Honegger, Jacques Chailley, Marc Pincherle, Claude Rostand, Jean Rivier, Henri Barraud e tantas outras relevantes figuras. Durante as entrevistas, os convidados abandonam o tom professoral, transmitindo ao público, aos ouvintes e aos futuros leitores a essência de temas fulcrais que se tornam bem palatáveis ao se ler os livros em questão. Todavia, há profundidade nas abordagens, a revelar que não há necessidade do discurso tantas vezes enfadonho das Academias, camuflagem a evidenciar a ausência do raciocínio lógico e transparente.
No primeiro volume, os envolvidos debatem em cada programa problemas essenciais relativos à Música: De onde vem a música? Porque a realizamos? A seguir, compartimentam os vários instrumentos e discutem suas características. A cada domingo o convidado especialista expressava suas opiniões profundas, mas de maneira palatável. Como exemplo, ao notável compositor Francis Poulenc foi destinado o Piano como tema. De maneira tranquila Poulenc afirma sua predileção. A uma indagação de Roland-Manuel sobre o compor ao piano de maneira natural, Poulenc diz ser questão de temperamento e que ele sempre o fez desde a infância, como aliás Stravinsky e tantos outros. A conversa a três se prolonga com várias citações históricas, qualidades estilísticas dos compositores que escreveram para piano, capacidade do instrumento, a importância dos pedais como recurso sonoro e a maior dificuldade durante a interpretação representada pelo pianissimo ou as baixas intensidades. Poulenc observa as heranças musicais “transmitidas” por Chopin e Liszt para Debussy e Ravel, respectivamente.
Um tema recorrente em tantos dos meus blogs ao longo de mais de uma década concentra-se no repertório não frequentado. Roland-Manuel abre um de seus programas com frase de Debussy sobre a glória de um autor desconhecido vir a ser redescoberto. A seguir, menciona Georges de Latour (1593-1652), pintor no reinado de Louis XIII, célebre no período e esquecido durante os três séculos subsequentes, mas hoje uma das glórias do Louvre. A partir do exemplo e de intervenções de Nadia Triguine, Roland-Manuel comenta que temos hoje (década de 1940, no caso) “maior curiosidade sobre o passado do que nossos pais. Interessamo-nos pela música dos séculos XV e XVI e temos prazer nesse mister, inclusive na escuta do canto gregoriano”. O ilustre convidado Claude Rostand (1912-1970), musicólogo, musicógrafo e crítico musical, acrescenta realidade tão presente ainda hoje, setenta anos após: “O espírito rotineiro, o medo da aventura são, infelizmente, difundidos, mesmo na juventude. Pude comprovar recentemente a assertiva na Comissão literária das ‘Juventudes Musicais’, empreendimento aliás digno de interesse. Propusemos aos jovens delegados inscrever em seus programas algumas obras distantes da rotina ordinária. Responderam que não seria possível, pois não gostariam de ouvir músicas desconhecidas”. Roland-Manuel acrescenta “Infelizmente! Eis um vício burguês. Hesitamos viajar pelo fato de sermos prisioneiros de nossos hábitos. Amamos a música e nos esquecemos que não há verdadeiro amor sem risco. Amamos Debussy e nos contentamos em ouvir L’Après-midi d’un Faune. Todavia, quem se preocupa em ouvir Gigues?” ( Gigues -1909-1912 – é a primeira peça das Images pour orchestre de Debussy). Entrevistado, o compositor Henri Barraud (1900-1997) observa algo que era bem sentido na sociedade francesa que frequentava concertos “Infelizmente, o francês da classe média considera a música uma coisa morta. Não parece singular que esse mesmo público, que não lê livros antigos e que raramente assiste às tragédias clássicas, limite sua curiosidade musical às grandes obras do romantismo alemão?”
A leitura de “Plaisir de la Musique” provoca momentos de verdadeiro prazer, como bem atesta o título dos livros. Nessas entrevistas, Rolland-Manuel e Nadia Tagrine perpassam a História da Música, os elementos constitutivos da escrita musical, os instrumentos e suas peculiaridades, discutem Estética, Estilo e Sociedade de maneira natural só possível se a competência plena existir, transmitindo autenticidade e confiabilidade. A formação musical e humanística de todos os envolvidos na programação, entrevistadores e convidados, não os faz hesitar. Sob outra égide, as temáticas precisas e por vezes técnicas apenas dimensionam a qualidade dos programas. Felizmente o livro, quando tesouro, torna-se essência essencial para o aprimoramento humanístico. Por maiores que sejam os avanços da tecnologia, o livro deverá permanecer como guardião do conhecimento.
Estou a me lembrar de ter frequentado durante três meses (1º de Fevereiro- 30 de Abril de 1959) curso de Estética Musical ministrado pelo eminente Roland-Manuel no Conservatoire National de Musique, na Rue de Madrid em Paris. Impressionou-me sua vasta cultura multidirecionada. A seguir interessei-me não unicamente pelo piano – fulcro central –, mas por outras áreas musicais e humanísticas, passando a adquirir doravante livros pertinentes, lidos e anotados e que presentemente visito com renovado prazer, a fim da catalogação.
No próximo blog comentarei a participação de dois ilustres compositores, Henry Dutilleux (1916-2013) e Arthur Honegger (1892-1955). Entrevistados por Roland-Manuel e Nadia Triguine, de maneira transparente, debatem temas musicais relevantes.
The post of this week addresses the book “Plaisir de la Musique”, derived from a radio broadcasting that took place every Sunday at the Salle Favart, in Paris, from 1944 to 1966, hosted by composer and critic Roland-Manuel and pianist Nadia Tagrine. The pair has invited prominent figures in French classical music to talk about music: its history, instruments, styles, aesthetics, elements of music writing. Among the personalities invited we can mention Francis Poulenc, Henri Dutilleux, Arthur Honegger, Jacques Chailley, Marc Pincherle, Claude Rostand, Jean Rivier and Henri Barraud. All of them speaking in a language accessible to a l ayperson, without jargon-filled vernacular. Depth without pedantry. Re-reading the book has been a real pleasure that reminded me of Vargas Llosa’s views on the decline of culture. Radio programs such as “Plaisir de la Musique” do not exist anymore because culture today tends to be just entertainment and frivolity.
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