O mistério a envolver a origem originária

A inspiração não é condição da criação: ela o é de fato.
Jean Rivier (1896-1987)
Compositor francês

Teria sido de Claude Debussy o posicionamento a admitir que só escrevia movido pela absoluta necessidade de compor. A vontade de conduzir o pensamento a um resultado poderia também ter um impulso telúrico, como viria a escrever Guerra Junqueiro, ao admitir não fazer versos “por vaidade literária. Faço-os pela mesma razão por que o pinheiro faz resina, a pereira, peras e a macieira, maçãs: é uma simples necessidade orgânica”.

Ao longo dos séculos continua-se a discutir a origem da inspiração ou a sua ausência. A partir da segunda metade do século XX, mais acentuadamente tentou-se descaracterizar a criação como atitude romântica ou mística, originária de conceitos voltados aos sentimentos ou à espiritualidade. Essa posição, mais vigente outrora, ficaria evidente em quantidade de missivas escritas por compositores e literatos, a depender de engajamentos sensoriais às duas possibilidades apontadas, entre outras.

Parece evidente que a inspiração sensorial, preenchendo títulos de composições, indicaria que um lampejo ou visão acompanhava o desenrolar da criação. Clémet Janequin (1485-1558) inspirou-se na poesia ou na natureza para compor suas canções polifônicas, como Le Chant des Oiseaux, Les Cris de Paris, Le chant de l’Alouette, La Chasse, La Guerre ou La Bataille de Marignan, entre tantas. Batalhas que seriam vertidas para o papel pautado por Johann Kuhnau (1660-1722) em suas célebres Sonatas Bíblicas. Se os cravistas franceses, entre os quais figuram especialmente François Couperin (1668-1733) e Jean-Philippe Rameau (1683-1764), penetraram plenamente no universo descritivo e as titulações de suas peças testemunham essa prática, não menos significativa é a adesão aos sentimentos. Couperin, em suas inúmeras suítes, denominadas “Ordres”, recorre insistentemente ao apelo desse visual ou da interiorização dos sentimentos. A seguir, Rameau, em peças como La Poule, La Boîteuse, Le Rappel des Oiseaux, Les Tendres Plaintes, obtém ao cravo a “reprodução” do gesto, do som emitido pelas aves domésticas ou da lamentação humana, como fontes que levaram às suas criações.

Franz Liszt (1811-1886) saberia aproveitar no limite extremo o contexto enredo-música, sem se descartar a explosão dos sentimentos. As titulações que imprime em suas composições evidenciam o pensamento literário ou seguem escolha puramente pessoal. As duas lendas franciscanas para piano induzem o ouvinte a ouvir gorjeios de passarinhos rodeando S. Francisco de Assis ou a imaginar mar revolto na travessia sobre as ondas de S. Francisco de Paula. A cavalgada, no magnífico Estudo Transcendental Mazeppa, transforma o piano num frenesi fantástico. Hector Berlioz (1803-1869) conduz o ouvinte à viagem mágica em sua Sinfonia Fantástica. Os dois, ao comporem, já pressupunham a ação após a origem misteriosa, a ideia que leva à criação. Chopin (1810-1849) atinge o limite extremo desse externar sentimentos e a aceitação plena de suas composições testemunha a assertiva. Não há o programático como procedimento utilizado pelos seus coetâneos citados, mas o abstrato de suas titulações apreende terminologia corrente. Não menos imbuído de pleno romantismo, as inspirações de Robert Schumann sofreriam um forte apelo literário.

Durante décadas as composições de Claude Debussy estiveram sob a égide do termo impressionismo, que na realidade o autor negava. Foi mais acentuadamente após exaustivos aprofundamentos do saudoso amigo e notável musicólogo francês François Lesure (1923-2001) que se passou a considerar efetivamente Claude Debussy (1862-1918) como um compositor envolvido substancialmente com o movimento simbolista. Considere-se que sua “inspiração” tantas vezes surgiu da visão da natureza ou foi consequência de leituras, mormente a poética. Debussy sugere, não impõe, e em carta à sua mulher, Emma Bardac, não admitiria até uma retificação de título de um determinado Prélude para piano?

O compositor e professor belga André Souris (1899-1970), em “Conditions de la Musique”, menciona fato curioso ocorrido com seu conterrâneo, o também compositor Fernand Quinet (1898-1971), que, ao ser questionado por uma senhora idealista, segundo Souris, sobre o que ocorria no ato de compor, recebeu como resposta “é bem simples, exatamente como a senhora durante a preparação de uma sopa”, o que a deixou vexada. Souris acrescenta que, apesar de “ignorarem as práticas verdadeiras da composição, confere-se a elas um caráter misterioso, mágico, completamente distante do comportamento cotidiano do comum dos mortais”.

O compositor e musicólogo francês Roland-Manuel (1891-1966) com cautela observa: “penso, como Stravinsky, que esse problema emotivo, denominado impropriamente inspiração, não é, como se crê, a origem do ato criador. Trata-se de uma reação emotiva que acompanha a proximidade da descoberta”.

O termo inspiração é entendido por muitos compositores hodiernos como pejorativo, pois o compreendem como destituído de relevância. Contudo, mesmo a se considerar três compositores basicamente na mesma faixa etária, pois nascidos na década de 1960, François Servenière (1961 – França), Eurico Carrapatoso (1962 – Portugal) e Maury Buchala (1967 – Brasil), mas com escritas distintas, o primeiro a eleger, entre aqueles que o influenciaram, Debussy e Ravel; Carrapatoso a encontrar na música polifônica portuguesa dos séculos anteriores a fonte segura para algumas de suas criações mais significativas; Buchala a sorver ensinamentos decorrentes das tendências que fluíram em França mais acentuadamente a partir da segunda metade do século XX, o termo inspiração pode ter interpretações diferenciadas. Como exemplos, mencionaria de Servenière as Tribulations d’un Écureil Lambda (2002), testemunho claro da existência da inspiração, como descreve o próprio autor: “Passeando em torno de um de meus lagos preferidos, repentinamente deparei-me com um esquilo. A ginástica criada pela agonia do roedor frente à minha presença deixou-me espantado, divertiu-me e após, inspirou-me. Aquele esquilo lambda, assim passei a designá-lo, tornar-se-ia imediatamente 7 peças transcendentes para piano, que acompanham o esquilo do amanhecer ao crepúsculo. Como todas as minhas composições para meu instrumento, a inspiração surge diante do teclado. Não é o caso de meu trabalho orquestral, onde o lápis e a partitura são os únicos mestres”. Carrapatoso, ao escrever a “Missa sem palavras” para piano partindo do texto canônico, nele tendo a inspiração, não o verbaliza. “Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta”, como afirma o autor. Buchala adquiriu o domínio escritural em grande parte a partir do acervo de ascendentes musicais escolhidos. A inspiração viria de esmerada seleção e, ao escrever, tem também a noção do fragmento, essa possibilidade cara para tantos compositores, inclusive Debussy. Em mensagem enviada, Maury Buchala explica suas ascendências musicais: “A reflexão sobre a inspiração na concepção de uma obra vem do fato de um acúmulo de experiências musicais vividas. No meu caso, a música depois dos anos 50 foi um fator relevante para isto. Fui influenciado principalmente por Boulez, Ligeti, Carter. Diria que esta influência compreende também o aspecto formal com a utilização de fragmentos na construção da forma global nas minhas obras”.

O compositor Gilberto Mendes (1922-2016), ao compor O Pente de Istambul para vibrafone, marimba e percussões (1990), obra que seria apresentada em festival na Alemanha a partir de convite do percussionista Carlos Tarcha, poucos dias antes da performance recebeu telefonema do músico, preocupado com a ausência de um título para a composição. Falava ao telefone quando sua esposa Eliane diz-lhe que encontrara “o pente de Istambul”, objeto de plástico comprado na cidade durante viagem do compositor à Turquia. Imediatamente transmitiu ao percussionista o título da peça. Como a escrita da composição se daria muito bem ao piano, pedi a Gilberto uma versão. Durante a escrita um amigo meu viajou para a Turquia. Pedi-lhe que me trouxesse um pente mais sofisticado. Ao regressar de Istambul com o belo exemplar, ofereci-o a Gilberto. Dias após entregou-me a versão com o título O Pente de Istambul. O outro. O compositor francês Éric Satie (1866-1925) não empregou inúmeras vezes títulos aleatórios? Apesar de partir de uma ideia precisa para as suas composições (inspiração?), Gilberto Mendes tinha certo prazer em criar titulação inusitada. Fê-lo muitas vezes.

Acredito na inspiração. Parece-me que, assim pensando, dá-se uma determinada aura à criação. Existindo ou não, o ato inspirador será benvindo, tanto para o compositor como para o intérprete.

This post discusses the role of inspiration – or its absence – in classical music creation.